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Resistência intelectual e engajamento político em Michael Löwy e Daniel Bensaïd : afinidades benjaminianas

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

FABIO MASCARO QUERIDO

RESISTÊNCIA INTELECTUAL E ENGAJAMENTO POLÍTICO EM

MICHAEL LÖWY E DANIEL BENSAÏD: AFINIDADES

BENJAMINIANAS

CAMPINAS 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 23 de março de 2016, considerou o candidato Fabio Mascaro Querido aprovado.

Prof. Dr. Marcelo Siqueira Ridenti

Prof(a). Dra. Isabel Maria Loureiro

Prof. Dr. Alvaro Gabriel Bianchi

Prof. Dr. José Corrêa Leite

Prof(a). Dra. Maria Elisa Cevasco

A ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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inestimável de diversas pessoas que, no plano particular, acadêmico e/ou intelectual, contribuíram de modo decisivo, direta ou indiretamente, para o bom andamento da pesquisa.

Antes de tudo, devo agradecer ao meu orientador, professor Marcelo Ridenti, cujo apoio – não isento de críticas, sempre construtivas e respeitosas - foi inestimável para a realização da pesquisa. Sem o seu apoio, a realização deste trabalho teria sido certamente um intento muito mais difícil, e os avanços da pesquisa, bem mais escassos.

Agradeço, em seguida, à professora Isabel Loureiro, com que tive a oportunidade de estabelecer, nos últimos anos, frutífera relação de diálogo intelectual, e a cujas leituras críticas e sugestões devo alguns dos principais achados da pesquisa.

Agradeço igualmente aos professores membros da banca de avaliação, cujas críticas, sugestões e/ou comentários certamente serão de profunda relevância para a elaboração da versão definitiva da tese.

A Michael Löwy agradeço pela disponibilidade e pelas ajudas com livros e materiais relacionados à obra e ao percurso político-intelectual de Daniel Bensaïd, assim como pela acolhida no âmbito da École des Hauts Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris.

Agradecimento especial dispenso a Sophie Bensaïd, viúva e companheira de Daniel desde 1972. Ao longo da minha estadia em Paris, Sophie ajudou-me inestimavelmente não apenas através do acesso a materiais inéditos de Daniel Bensaïd, senão também de conversas e depoimentos sobre a sua trajetória.

Agradeço igualmente a todos os entrevistados e/ou aqueles com os quais conversei sobre algum aspecto das obras/trajetórias de Löwy e de Bensaïd, tais como André Tosel, Alain Krivine, Olivier Besancenot, Edwy Plenel, Lucien Sanchez, Antoine Artous, Jaime Pastor Verdú, Gérard Filoche, Paul Alliès, Sebastian Budgen, Phillipe Corcuff e Fernando Matamoros Ponce.

A Razmig Keucheyan agradeço pelas conversas sobre marxismo e pensamento crítico contemporâneo, assim como pelos convites para participar de seminários e colóquios em Paris.

Ao amigo Darren Roso, companheiro de estudos sobre a obra bensaïdiana em Paris, agradeço pelas conversas, pelos textos e projetos em comum, tanto quanto pelo encorajamento.

Agradeço aos meus amigos de toda hora Rubens José Ferreira Júnior, Luiz Henrique “Pitú”, Bruna, Renata e Débora Taño, Lucas Bevilaqua, Luís Martinez Andrade, assim como a Bruno Rubiatti, Daniela Vieira dos Santos, Caroline Gomes Leme, Adriana Cardoso, Ettore Medina, Luciana Aparecida dos Santos, Camila Massaro e Maurício “Ceará”, dentre outros e outras.

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pelas bolsas de doutorado regular (no país) e de estágio doutoral (1 ano) na EHESS, em Paris, as quais foram fundamentais para a realização da pesquisa ora apresentada na forma de tese de doutorado em sociologia.

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temos de acreditar no Juízo Final [...]”.

Carta de Max Horkheimer a Walter Benjamin, 16 de março de 19371.

“[...] a história não é apenas uma ciência, ele também uma forma de rememoração. O que a ciência ‘constatou’, a rememoração pode modificar. A rememoração pode transformar o que se encontra não consumado (a felicidade) em algo consumado e o que é consumado (o sofrimento) em algo não consumado. É teologia; mas a experiência que fazemos na rememoração nos proíbe de conceber a história de modo ateológico, mesmo se não temos, pelo instante, o direito de tentar escrever com conceitos imediatamente teológicos”.

Comentário de Walter Benjamin sobre a carta de Horkheimer, inserido nas notas do projeto das

Passagens2.

“A todo momento, vocês supõem um outro momento seguinte que não aquele que aconteceu: a todo presente imaginário em que se colocam, imaginam um outro futuro que não aquele que se realizou”. Paul Valery, “Discurso sobre a história”, 19383

.

1 In: Walter Benjamin, O anjo da história. Organização e tradução: João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica,

2012, p.240.

2 Walter Benjamin, Paris, capitale du XIXe siècle. Le livre des Passages. Paris: Cerf, 1989, p.489. 3 Paul Valery, “Discurso sobre a história”. In: Variedades. São Paulo: Iluminuras, 2007, p.114.

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o objetivo desta tese é analisar a obra e o percurso de dois intelectuais contemporâneos, Michael Löwy (1938- ) e Daniel Bensaïd (1946-2010), destacando a forma como ambos se confrontaram – através de uma atualização benjaminiana do marxismo – à mudança de época que inicia a partir do final dos anos 1970, consolidando-se na década seguinte, com a queda do Muro e a derrocada do “socialismo realmente existente” entre 1989 e 1991. Busca-se – por meio da análise da obra e da reconstituição da trajetória em suas relações com as mudanças no contexto histórico-social, na “visão de mundo” dos autores, assim como no campo intelectual correspondente – investigar o reposicionamento político e intelectual levado a cabo por Löwy e por Bensaïd a partir de meados da década de 1980, reposicionamento estimulado, em ambos os casos, por uma interpretação seletiva e singular do pensamento de Walter Benjamin (1892-1940). Analisando as afinidades tanto quanto as diferenças, as grandezas tanto quanto os limites de suas obras posteriores à incorporação de Benjamin, almeja-se assim contribuir para a compreensão dos dilemas dos intelectuais engajados hoje.

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intellectuals, Michael Löwy and Daniel Bensaïd in light of the historical, political, cultural-ideological transformations of recent decades, by outlining the way both confronted the change of historical period that began in the 1970s. Through the comprehension of their oeuvres and the reconstruction of their itineraries with respect to the changes in historical and social context, the worldview of the respective authors, together with the intellectual field itself, it aims to analyse the political and intellectual repositioning Michael Löwy and Daniel Bensaïd undertook from the 1980s. This repositioning was stimulated, in both cases, through a selective and singular interpretation of Walter Benjamin’s thought. In analysing both the affinities and differences, the grandeurs and limits of their post-Benjaminian works, in order contribute to the comprehension of the dilemmas of engaged and/or militant intellectuals today.

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LSI - Liga Socialista Independente (Brasil)

OMR-POLOP - Organização Marxista Revolucionária–Política Operária (Brasil) PCB - Partido Comunista Brasileiro

PSB – Partido Socialista Brasileiro

UDS – União Democrática Socialista (Brasil) ED – Esquerda Democrática (Brasil)

JUC – Juventude Universitária Católica (Brasil) JEC – Juventude Estudantil Católica (Brasil) AP – Ação Popular (Brasil)

POI - Partido Operário Internacionalista (Brasil) POR – Partido Operário Revolucionário (Brasil) POC – Partido Operário Comunista (Brasil)

COLINA – Comandos de Libertação Nacional (Brasil) VPR – Vanguarda Popular Revolucionária (Brasil) PT – Partido dos Trabalhadores (Brasil)

DS – Democracia Socialista (Brasil) PSOL – Partido Socialismo e Liberdade

MST - Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (Brasil) CPT – Comissão Pastoral da Terra

TL – Teologia da Libertação FSM – Fórum Social Mundial

EZLN - Exército Zapatista de Libertação Nacional (México) POI – Partido Operário Internacionalista (França)

PCI – Partido Comunista Internacionalista (França) JC - Juventudes Comunistas (França)

UEC – União dos Estudantes Comunistas (França) UNEF – União Nacional dos Estudantes da França JCR - Juventude Comunista Revolucionária (França) PCF - Partido Comunista Francês

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SU – Secretariado Unificado da IV Internacional NPA – Novo Partido Anticapitalista

PSU – Partido Socialista Unificado (França)

SFIO - Secção Francesa da Internacional Operária (França) PS – Partido Socialista (França)

GP – Esquerda Proletária (Gauche prolétarienne – França) UJCML – União das Juventudes Marxistas-Leninistas (França) AJR – Aliança dos Jovens Revolucionários pelo socialismo (França) OCI – Organização Comunista Internacionalista (França)

LO – Luta Operária (França)

PG – Partido de Esquerda (Parti de Gauche – França) FG – Frente de Esquerda (Front de Gauche – França) EELV - Europe Écologie Les Verts (França)

FHAR – Frente Homossexual de Ação Revolucionária (França) ON – Ordem Nova (França)

FN – Frente Nacional (França) AFA – Ação Antifascista (França)

JNR – Juventudes Nacionalistas Revolucionárias (França) CGT - Confederação Geral do Trabalho (França)

SUD - União Sindical Solidariedade (França)

CFDT - Confederação Francesa Democrática do Trabalho (França) EHESS – Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (França) ENS – Escola Normal Superior (França)

CNRS – Centro Nacional de Pesquisa Científica

SPRAT – Sociedade pela Resistência ao Ar do Tempo (França)

ATTAC – Associação pela taxação das transações financeiras e pela ação cidadã SDS – União Estudantil Socialista (Alemanha)

ETA – Pátria Basca e Liberdade (Euskadi Ta Askatasuna – País Basco/Espanha)

MIR – Movimento da Esquerda Revolucionária (Movimiento de la Izquierda Revolucionaria

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ERP - Exército Revolucionário do Povo (Argentina) PO – Partido Operário (Argentina)

SWP – Partido Socialista dos Trabalhadores (Socialist Workers Party - EUA)

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1. Trajetórias intelectuais entre passado e presente...15

2. Qual sociologia dos intelectuais hoje?...22

3. Intelectuais, política e classes sociais no debate sociológico...29

4. Intelectuais engajados ou militantes intelectuais...52

I Parte Intelectuais e política: em busca da subjetividade revolucionária 1. Entre a esquerda revolucionária e o marxismo ocidental: o itinerário intelectual de Michael Löwy nos anos 1950, 60 e 70...67

1.1. Tempos de formação: a infância e adolescência paulistana de Michael Löwy...67

1.2. Löwy, o jovem Marx e Paris: um rendez-vous non manqué...77

1.3. Anos 1970: um marxismo humanista, historicista e revolucionário...89

1.4. Admissão no CNRS e sociologia do conhecimento...106

1.5. Virada benjaminiana e entrada em “sociologia da religião”...118

2. Um “intelectual orgânico” da extrema-esquerda: Daniel Bensaïd ou o primado da política leninista 2.1. Infância e adolescência toulouseanas: do PCF ao “trotsko-guevarismo”...124

2.2. Pós-68: o “leninismo apressado” e a tentação militarista...132

2.3. 1974 e a criação da LCR: a atualização da estratégia leninista-revolucionária...159

2.4. Os sombrios anos 1980: entre política e profissão...168

3. A “última geração de outubro”...174

3.1. Maio de 68 e o trotskismo ultraleninista da Liga Comunista (1969-73) ...176

3.2. LCR: lócus de intelectuais revolucionários? ...183

3.3. Travessia no deserto: resistência e renovação nos anos 1980...187

II Parte Pensar a derrota sem perder a esperança: sociologia de uma inflexão benjaminiana...199

4. Walter Benjamin: um intelectual “out of joint”……….201

4.1. Benjamin e Paris: esperança e melancolia...213

4.2. Recepção, atualização e reinterpretação: Qual atualidade benjaminiana? ...222

5. Romântico, marxista e messiânico: o Benjamin de Michael Löwy 5.1. Intelectuais judeus, párias e rebeldes na Europa Central...232

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6. À esquerda do possível: o Benjamin de Daniel Bensaïd

6.1. O passado (no presente) em questão...258

6.2. “Razão messiânica”: estratégia intelectual no coração da catástrofe...265

6.3. Messianismo estratégico contra a utopia...270

6.4. Uma virada sem volta: continuidades e descontinuidades...273

6.5. Convergências (e discordâncias) benjaminianas: entre política e teologia...278

III Parte Reverberações benjaminianas...289

7. Marxismo e críticas da modernidade em Michael Löwy 7.1. Romantismo e marxismo: dilemas do anticapitalismo...290

7.2. O espectro weberiano: distâncias e aproximações...309

7.3. Crise civilizatória, questão ecossocialista e movimentos sociais: o marxismo na berlinda...325

8. Daniel Bensaïd entre resistência intelectual e reposicionamento político 8.1. Ética e política da resistência...345

8.2. Engajamentos e polêmicas intelectuais...360

8.3. Da “atualidade da revolução” à política profana dos oprimidos...378

9. O despertar da esquerda radical 9.1. O novembro de 1995 francês e o renascimento da LCR...398

9.2. Passagem de gerações: de Löwy e Bensaïd a Olivier Besancenot...405

Considerações finais - Afinidades e antinomias benjaminianas: Michael Löwy, Daniel Bensaïd e os dilemas do marxismo contemporâneo...412

Bibliografia...418

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Introdução

1. Trajetórias intelectuais entre passado e presente

O objetivo desta tese, ora apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia do IFCH, da UNICAMP, e para cuja realização foi possível contar com um estágio de um ano na École de Hauts Études en Sciences Sociales, em Paris, é analisar a obra e a trajetória de dois intelectuais contemporâneos cujos percursos sintetizam, em alguma medida, as grandezas e os limites da condição de intelectuais engajados à extrema-esquerda do espectro político hoje, espreitados entre a respeitabilidade acadêmica-intelectual (com seu habitus específico) e a convicção político-anticapitalista inescapável: Michael Löwy e Daniel Bensaïd.

Trata-se, como se sabe, de dois herdeiros tanto da tradição da esquerda política revolucionária – oriunda de marxistas “clássicos” como Marx, Lênin, Rosa Luxemburgo e Trotsky –, quanto da tradição filosófica e sociológica vinculada ao “marxismo ocidental”, que vivenciaram as transformações resultantes no declínio dessas duas tradições político-intelectuais a partir do final dos anos 1970, sem renegá-las, buscando ao contrário reativá-las, renovando-as à luz das novas condições de possibilidade que se impunham gradativamente aos intelectuais marxistas “críticos”. A análise da obra e do percurso de ambos, dos anos 1950/60 até 2010, data da morte de Bensaïd, destacando as transformações pelas quais passaram e, em especial, a forma como – através, em grande medida, de uma interpretação bastante singular de Walter Benjamin – enfrentaram os novos desafios ao marxismo a partir dos anos 1980, pode significar, portanto, se bem efetuada, uma contribuição relevante para a história e a sociologia dos intelectuais e suas ideias nas sociedades contemporâneas, permitindo, ao mesmo tempo, visualizar algumas de suas possibilidades futuras, uma vez que se trata de um processo de transição histórica, cultural e ideológica ainda em andamento, e cujo desfecho (ainda) é incerto.

Nascidos, respectivamente, em 1938 e 1946, o primeiro em São Paulo, o segundo em Toulouse, Löwy e Bensaïd optaram desde muito jovens, pelas razões que veremos, por se tornarem militantes socialistas: em grande medida, a escolha pelo trabalho intelectual, e em especial por carreiras acadêmicas que melhor o propiciam (as ciências sociais e a filosofia) decorre dessa perspectiva política “fundacional”, a qual delimitou o campo de possibilidades sob o qual se moveram os dois intelectuais quando jovens. Com apenas 16 anos, ambos iniciaram suas trajetórias político-militantes, Löwy em pequenas organizações da esquerda revolucionária anti-stalinista brasileira (a LSI e, depois, a POLOP), Bensaïd na organização de juventude (as JCs) do então imponente PCF, que ainda colhia os frutos – malgrado os abalos

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causados pelas revelações de Khrushchov no XX Congresso da URSS e pela invasão soviética da Hungria, em 1956 – da popularidade conquistada após a Liberação.

Desde então, e com mais intensidade no caso de Daniel Bensaïd, a ótica da luta política condicionaria em larga medida suas perspectivas, assim como suas trajetórias intelectuais, de tal forma que não se pode abordar uma sem revelar suas conexões com a outra. Tanto quanto, ou ainda mais, do que as inferências específicas do campo acadêmico ou intelectual, os acontecimentos e/ou os debates político-ideológicos extra-acadêmicos jogam um papel determinante nas bifurcações e possibilidades que foram se abrindo (ou se fechando) ao longo de seus percursos, os quais não estavam, muito pelo contrário, definidos de antemão. Investigar as possibilidades não efetivadas, quer dizer, aquilo que poderia ter sido mas não foi, constituiu evidentemente também uma das preocupações da pesquisa, uma vez que essa abordagem, se não evita, ao menos desestimula a tentação à “ilusão biográfica”, na qual o percurso do intelectual em questão reduz-se a uma sucessão de etapas de um desenvolvimento necessário, como se o que aconteceu no passado estivesse destinado a desembocar naquilo que se apresenta no presente.

Oriundos de uma geração que despertou para a vida política sob os impulsos da radicalização das lutas “terceiro-mundistas” (Cuba, Argélia, Vietnã), a partir da virada para os anos 1960, tanto Löwy quanto Bensaïd puderam usufruir de uma formação teórico-cultural viva, em contato permanente com os (não poucos) acontecimentos da época. Seja como ativista político na linha de frente da batalha (como Bensaïd em “maio de 68”) ou como espectador engajado e/ou interessado (tal qual, por exemplo, Michael Löwy na revolução portuguesa em 1975, na condição de “observante participativo” enviado pela IV Internacional), ambos vivenciaram, de fato, alguns dos principais acontecimentos políticos das décadas de 1960 e 1970 e, mais tarde, dos anos 1990 e 2000. Ainda mais porque, por motivos sobretudo políticos, mas também intelectuais-acadêmicos ou mesmo pessoais, tanto Löwy quanto Bensaïd estabeleceram fortes laços internacionais, em especial nos outros países da Europa e na América Latina, esta última uma espécie de paixão obsessiva dos dois intelectuais. Essas relações – mais do que do apenas com pessoas, com círculos políticos ou intelectuais – permitiram-lhes alargar na medida do possível o horizonte não apenas de seus interesses, senão também da ótica através da qual abordá-los.

Politicamente, ambos pertencem a uma geração de transição, que entra para a militância por volta da virada dos anos 1960 (ou um pouco antes, no caso de Löwy), vivencia a ascensão, após 1968, do marxismo e da esquerda política revolucionária anti-stalinista na Europa,

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sentindo os impactos, na virada para a década de 1980, do refluxo das lutas políticas e do declínio vertiginoso do marxismo no interior do campo intelectual francês e europeu. Espectadores engajados dessas transformações históricas, Löwy e Bensaïd fizeram parte da “última geração de Outubro”, conforme a expressão de Benjamin Stora, última geração da esquerda a tomar como modelo hegemônico a revolução russa de outubro de 1917, no âmbito de um período até então caracterizado como o da “atualidade da revolução”, segundo o termo cunhado por Lukács em referência ao pensamento político de Lênin4.

Após os sombrios anos 1980, essa época histórica se fecha definitivamente em 1989-1991, sem que uma nova tenha ainda emergido: não se trata, bem entendido, do esgotamento definitivo das energias revolucionárias, sobre cujo futuro pouco se pode prever, mas sim do fim de uma determinada época histórica, na qual, para uma parcela nada desprezível da esquerda político-revolucionária, tratava-se de se estimular um processo de ruptura com o capitalismo semelhante ao impulsionado pelos bolcheviques russos em 1917. A desagregação da URSS e dos países do leste, sintomas da derrocada final do stalinismo, em vez de estimular o renascimento do modelo de 1917, como apostavam alguns trotskistas, significou o início de uma rediscussão das condições de possibilidade de uma estratégia revolucionária, deslocando o eixo do debate para aspectos até então tidos como cláusulas pétreas, signos de distinção dos revolucionários em relação às outras forças sociais se reclamando das classes trabalhadoras.

Vivenciando direta ou indiretamente esses acontecimentos políticos, assim como seus efeitos no plano dos debates intelectuais ora em curso, Michael Löwy e Daniel Bensaïd visualizaram no tournant que começara a se anunciar já na virada para os anos 1980 um momento no qual se impunha a mise en œuvre de um processo de renovação do marxismo, tanto no que se refere à sua abordagem teórica quanto à sua capacidade de diálogo com outras tradições do pensamento crítico. Assim, após passarem por esta transição de época, buscando dela extrair a matéria para um marxismo afinado ao novo tempo, ambos os intelectuais se afirmaram nas décadas de 1990 e 2000, momento de reemergência da crítica social e política, como importantes representantes do que o sociólogo franco-suíço Razmig Keucheyan designou como “pensamentos críticos contemporâneos”, no plural, em decorrência da diversidade inevitável dos autores que compõem essa categoria.

Como demonstra muito bem Keucheyan, em um trabalho por ele mesmo denominado de “sociologia das ideias”, os principais “pensadores críticos contemporâneos” pertencem,

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grosso modo, às mesmas gerações de Michael Löwy e Daniel Bensaïd: “As teorias críticas de hoje não são elaboradas por ‘novos’ teóricos”, ou seja, por “intelectuais biologicamente jovens”. É bem verdade, diz ele, que “existem atualmente jovens autores que desenvolvem pensamentos críticos inovadores, mas os pensadores críticos reconhecidos no espaço público passaram, na maior parte dos casos, dos 60 anos, e às vezes até mesmo dos 70”. Não por acaso, por mais “contemporâneos” que eles sejam, “as análises desses autores são, para uma parte importante dentre eles, o fruto de experiências políticas no âmbito de um ciclo político passado, aquele dos anos de 1960 e 1970”5. Em outras palavras: “As novas teorias críticas são elaboradas

pelos ‘veteranos’ do pensamento crítico, quer dizer, por pensadores cujas características sociológicas e cujas ideias são originárias do período anterior”6.

Trata-se, assim, de uma geração de passeurs, que, tendo vivenciado maio de 68 e o apogeu do marxismo intelectual francês nas décadas de 60 e 70, buscaram reelaborar a reflexão crítica sobre o capitalismo à luz das novas possibilidades abertas pelo renascimento das lutas sociais a partir de meados da década de 1990. “As novas teorias críticas consistem assim no esforço efetuado por intelectuais formados ao longo de um ciclo político já finalizado de pensar a abertura de um novo ciclo, que nasce em algum momento entre a insurreição zapatista de 1994, as greves de dezembro de 1995 e as manifestações de Seattle de 1999”7. No interior da tipologia construída por Keucheyan para designar as reações - no âmbito desse conjunto plural que são os “pensadores críticos contemporâneos” - ao refluxo dos movimentos políticos e sociais a partir do final da década de 1970 (“convertidos”, “pessimistas”, “resistentes”, “inovadores”, “experts” e “dirigentes”), Michael Löwy e Daniel Bensaïd filiam-se ao mesmo tempo, e num equilíbrio inelutavelmente instável, tanto aos “resistentes” quanto aos “inovadores”, no primeiro caso porque – tal como boa parcela dos trotskistas8 – eles

mantiveram, mesmo após as derrotas e o tournant do final da década de 1970, suas posições políticas e intelectuais de orientação marxista, e no segundo porque incorporaram, nesse

5 Razmig Keucheyan, Hémisphère gauche. Une cartographie des nouvelles pensées critiques. Paris: La

Découverte, 2013, p.51. Tradução livre. Salvo indicação em contrário, todas as citações de obras de línguas estrangeiras deste trabalho foram traduzidas livremente por mim.

6 Idem, p.52. 7 Idem, p.51.

8 “Dentre os marxistas, os trotskistas fornecem um contingente importante de resistentes. Os comunistas se

referiam à URSS e seus países satélites, os maoístas à China, os terceiro-mundistas à Argélia ou Cuba, e os socialdemocratas aos países escandinavos. Os trotskistas nunca puderam se referir a um regime ‘realmente existente’ deste tipo, à exceção dos primeiros anos da revolução russa. Este fato explica de uma parte sua debilidade numérica ao longo do século XX, mas também [porque] eles [foram] pouco afetados pelo colapso do socialismo real. O trotskismo sempre foi uma corrente projetada para o futuro, que opôs à ‘traição’ stalinista uma forma de autenticidade revolucionária”. Idem, p.92.

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período, um conjunto heterogêneo de referências teóricas e temáticas “externas” visando à renovação ou enriquecimento do marxismo.

No plano teórico, “resistentes” como Michael Löwy e Daniel Bensaïd inscreveram suas atividades teóricas no âmbito de uma “dialética aliando conservação e inovação”, da qual o resgate da figura do “marrano” por parte de Bensaïd constitui – como veremos em detalhe mais adiante – um exemplo quase ideal-típico. Judeus sefarditas, convertidos à força ao cristianismo sob a Inquisição, os marranos conservaram secretamente a fé judaica praticando os rituais de modo clandestino. Aos olhos do “resistente”, “inovador” e do “dirigente” Bensaïd ao longo dos anos 1990 e 2000, o marrano caracteriza-se exatamente pela dialética entre continuidade e ruptura em relação à tradição e ao passado, na qual se conserva o núcleo básico da tradição revolucionária, transmitindo-a às novas gerações, mas, ao mesmo tempo, busca-se dotá-la de condições para confrontar o novo “tempo-de-agora”, para utilizar a expressão benjaminiana. Essa relação ativa com a tradição marxista – em uma dialética entre, de um lado, a resistência e a fidelidade a um passado coletivo e, de outro, a necessidade de colocá-lo à prova dos desafios políticos e intelectuais contemporâneos, sob pena do ostracismo – também caracteriza a trajetória de Michael Löwy, em seu caso já a partir do início da década de 1980.

Ainda mais porque, desde meados dos anos 1970, o marxismo não constitui mais a principal referência central dos pensamentos críticos contemporâneos, o que não é pouca coisa quando se tem em conta que, desde a segunda metade do século XIX, ele havia se constituído como a mais influente das teorias críticas9. Com a ascensão do estruturalismo, e depois do pós-estruturalismo, na França na década de 1970, o marxismo, “pela primeira vez na sua história, encontrou um concorrente digno desse nome, perdendo a hegemonia teórica da qual dispunha até então na esquerda”. Segundo RazmigKeucheyan, “vários dos teóricos críticos reivindicam hoje uma forma ou outra de estruturalismo ou de pós-estruturalismo”.

Nesse processo, o próprio marxismo, mais do que nunca, diversifica-se em uma pluralidade de vertentes, levando às últimas consequências uma característica que lhe é inelutável desde seus primórdios – um marxismo como o de Kautsky, por exemplo, pouco tem a ver com o de Benjamin ou o de Adorno. Simultaneamente ao seu declínio como corrente capaz de influenciar o debate político e/ou intelectual, verifica-se então a irrupção do que André Tosel – inspirando-se em expressão cunhada originalmente por Immanuel Wallerstein –

9 “Seu reinado [do marxismo] era indiscutível, inclusive nas regiões onde teorias críticas concorrentes, como o

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chamou de “mil marxismos”, desde pelo menos 1989. Muito além do “fim do marxismo”, como aventado por alguns neoliberais eufóricos na virada para os anos 1990, assistir-se-ia nas últimas décadas, segundo Tosel, à floração dispersa e sem grande influência na prática social concreta, de uma pluralidade de marxismos, que significam o fim não do marxismo, e sim de um ciclo de sua história, marcado pela “dialética” entre o “marxismo-leninismo como ortodoxia una e dominante” e as “grandes heresias marxistas” envoltas com a esperança de um marxismo igualmente unificado mas autêntico10.

Se o fim do ciclo do “marxismo ocidental” se manifestou, na França, em meados da década de 1970 (tendo já sido abalado em maio de 68), o esgotamento das ortodoxias “marxista-leninistas”, embora também iniciado em 1968 e nas décadas seguintes, não se efetivou plenamente senão com os acontecimentos políticos de 1989-1991, que colocaram por terra as ditaduras burocráticas na URSS e no leste europeu. Mais amplamente, esses “mil marxismos” desenvolvem-se simultaneamente à ascensão e à crise do liberalismo, no âmbito do processo de mundialização capitalista que ganhou novo fôlego na virada para os anos 1990. Em outras palavras: “a queda do muro de Berlim seguida do fim da URSS, abre definitivamente o período dos mil marxismos, que se confrontam à mundialização capitalista e à vasta empresa de desemancipação que o acompanha”11. De onde, aliás, a tentativa de aproximação, por parte de

alguns dos representantes desses “mil marxismos”, com os chamados movimentos “altermundialistas”, que recolocaram em questão a crítica social através da crítica da mundialização capitalista, proporcionando um novo impulso à produção teórica marxista.

Após a desagregação do “marxismo ocidental” e o declínio das lutas do “movimento operário como movimento anti-sistêmico” (por um tempo substituído pelo “movimento nacional-popular anti-imperialista”), a emergência do período histórico dos mil marxismos “representa – segundo Tosel - a maior fratura da história do marxismo, e impõe a um só tempo o trabalho de luto de uma certa continuidade e a tarefa de pensar uma unidade [possível]”. Após 1968, até meados da década de 1970, desenvolveram-se as últimas tentativas de renovação da teoria marxista inscritas na esteira da III Internacional ou às suas margens12, dentre as quais se destacava aquela da Liga Comunista Revolucionária, através notadamente da pena de Daniel Bensaïd, principal responsável pela explicitação teórica da perspectiva política da organização. Esgotado esse último suspiro de um “marxismo-leninismo” hostil à sua versão stalinista e capaz

10 André Tosel, « Devenir du marxisme de la fin du léninisme aux mille marxismes (France et Italie) ». Le

marxisme du XXe siècle. Paris : Syllepse, 2009, pp.59-96 (p.64).

11 Idem, p.79. 12 Idem, p.59.

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de com ela rivalizar, um novo laço – mais frágil e instável – se estabelece com a tradição marxista-revolucionária do passado. “Afastados da prática política dos antigos partidos comunistas [e] em busca de novo vínculo da teoria e da prática”, os mil marxismos “constituem a forma frágil da continuidade interrompida e descontinua com a tradição marxista”13.

Michael Löwy e Daniel Bensaïd são ao mesmo tempo resultado e atores ativos desse processo de fim de um ciclo e de transição incerta para um outro, que já não apresenta, e nem poderia – dada a amplitude da derrota política e intelectual em questão –, as mesmas condições de possibilidade para a aliança entre atividade teórica marxista e prática política revolucionária. Daí uma abertura, na reflexão de ambos, abertura que é característica dos “mil marxismos”, para as novas formas de crítica teórica e de movimento social “anticapitalista” do final do século XX e começo do XXI. Os dilemas que eles enfrentam nessa empreitada, em se tratando de dois intelectuais para os quais a unidade entre teoria e prática (e, portanto, o engajamento intelectual) continua sendo um elemento decisivo do marxismo, refletem de alguma forma os limites a eles impostos pela própria fragilidade dessa unidade hoje, desprovida de bases concretas com relativo peso político (e intelectual).

Evidentemente, como já havia demonstrado Perry Anderson em seu ensaio sobre o “marxismo ocidental”14, a distância entre os intelectuais críticos e as organizações operárias

e/ou populares impacta de forma decisiva o tipo de teoria por eles produzida, ainda que esses intelectuais sigam militando seja em pequenos partidos da extrema-esquerda ou, no caso contemporâneo, no interior de alguma das diversas organizações ligadas ao movimento altermundialista. Mesmo porque, conforme sustenta Razmig Keucheyan, “ser membro do Partido operário socialdemocrata da Rússia no início do século XX não comporta as mesmas obrigações que a participação no conselho científico da Attac”15. No segundo caso, se o

intelectual em questão resguarda seu tempo para se tornar um professor e/ou pesquisador universitário, com um distanciamento que lhe garante maior percepção crítica da própria esquerda, ele perde, por outro lado, algo da oxigenação que, para todos os intelectuais identificados com o marxismo ou com alguma teoria crítica do capitalismo, significa a

13 Idem, p.64.

14 Perry Anderson, Considerações sobre o marxismo ocidental / Nas trilhas do materialismo histórico. São Paulo:

Boitempo, 2004. Sobre a relação entre derrota política e produção teórica dos intelectuais de esquerda, ver: Razmig Keucheyan, “Figures de la défaite. Sur les conséquences théoriques des défaites politiques”, in: Contretemps, n.3 (nova série), 2009.

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participação em uma organização capaz de influenciar os debates políticos e intelectuais da época.

Em larga medida, como se poderá conferir ao longo deste trabalho, a recorrência algo abstrata à aposta messiânica ou às utopias (no caso de Löwy) significa, na reflexão contemporânea dos dois autores, uma tentativa de preencher esse vazio, sob a forma de uma antecipação que, quiçá, poderá se materializar no futuro através de uma nova articulação entre teoria crítica e prática revolucionária. Essa aliança não pode mais ser visualizada como um desenvolvimento inelutável da dialética inscrita na lógica da dominação burguesa, mas sim como esforço consciente de uma resistência comum, entendida como um primeiro passo para a reconstrução, sobre novas bases, de uma unidade possível. Assim, como diz André Tosel a propósito de Bensaïd: “o comunismo não é mais pensado, ao modo marxiano positivo, como a realização dos possíveis impedidos pela dominação capitalista, mas como um esforço ético e político para resistir à catástrofe que ameaça”16. À diferença de muitos dos seus colegas, “que

frequentemente aderiram ao Partido Socialista para nele se dissolver”, tal como os “convertidos” de que fala Keucheyan, Daniel Bensaïd representaria, segundo Tosel, “um pensador da revolução na época do seu declínio”17. O mesmo se pode dizer, grosso modo, de

Michael Löwy: em linha benjaminiana, a revolução é concebida antes de tudo como ato de resistência e aposta na possibilidade de um outro futuro.

2. Qual sociologia dos intelectuais hoje?

Ora, se, por um lado, o fato de terem vivenciado esse conjunto de transformações históricas, políticas e intelectuais garante a relevância sociológica, por assim dizer, das trajetórias de Michael Löwy e de Daniel Bensaïd, essa condição de intelectuais marxistas contemporâneos impõe importantes dificuldades e desafios à análise. Em primeiro lugar, em função da proximidade temporal: embora constituídas, em seu período de formação, nas décadas de 1960 e 1970, suas trajetórias chegam até a época contemporânea, revelando questões e desafios que são aqueles do presente. Mesmo no caso de Daniel Bensaïd, já falecido (2010), trata-se de uma obra cujos contornos, em especial no que diz respeito à sua reflexão propriamente filosófica, elaborou-se em contato com um mundo em transformação que ainda

16 Idem, p.91.

17 Fabio Mascaro Querido, “Para uma história marxista do marxismo: passado e presente – Entrevista com André

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é, em grande medida, o mundo em que vivemos. Mais ainda em se tratando de Löwy, que segue vivo e, até o presente, em plena forma intelectual, já avistando as oito décadas de vida (que completará em 2018).

Com efeito, como analisar sociologicamente a trajetória de dois intelectuais cuja história ainda nos é basicamente contemporânea? Talvez uma primeira aproximação à resposta resida no fato de que Löwy e Bensaïd trilharam um percurso em cujo núcleo se encontram os traços de uma transição de época que, embora ainda esteja em aberto nas suas consequências finais, se completou no que diz respeito à distinção cultural em relação à época precedente, como buscaremos demonstrar. Em consequência, se elas “chegam” até nós, em particular até as jovens gerações de hoje (nas quais se inclui este que escreve), nos sendo, portanto, contemporâneas, suas trajetórias intelectuais carregam a marca de uma época cujo contraste com o mundo atual constitui um dos seus elementos definidores.

Outra dificuldade imposta à análise se deve ao fato de que tanto Löwy quanto Bensaïd constituíram seus percursos simultaneamente ao declínio não apenas da intelligentsia de esquerda, senão também dos intelectuais de uma forma geral. Em outras palavras, ambos são intelectuais em um momento em que estes não mais gozam da mesma aura e, sobretudo, do mesmo poder de influência que até outrora, meados dos anos 1970, eles detinham na França e na Europa. Como diz Enzo Traverso: “A figura do intelectual atravessou o século XX. Ela surge na aurora da modernidade e parece desparecer no início do século XXI, quer dizer, no período que se abre com a queda do muro de Berlim (1989). Ora, o século XX foi uma época de conflitos políticos e ideológicos, marcado pelos movimentos sociais de grande amplitude nos quais os intelectuais foram chamados a jogar um papel: a guerra da Espanha, a Resistência, a guerra da Argélia, a guerra do Vietnã, a luta pelos direitos civis dos negros americanos... Mas, ao final da guerra fria, a paisagem mudou”18.

Intelectuais em uma época caracterizada pela massificação do ensino superior e pela proletarização das camadas intelectuais, Michael Löwy e Daniel Bensaïd são contemporâneos de mudanças importantes no campo intelectual, tendencialmente reduzido à torre de marfim acadêmica em um momento em que esta perde importância social e política. Muitas vezes a única opção viável de carreira profissional capaz de assegurar um tempo mínimo para a pesquisa, essa inserção no espaço universitário doravante socialmente desprestigiado (em comparação com o passado) não poderia deixar de impactar a produção teórica dos pensadores

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críticos. Mais ainda porque, a essa situação seguiu-se uma mudança geográfica, com a ascensão das universidades norte-americanas em detrimento daquelas da Europa continental: “ora, uma vez que evoluem principalmente nos meios universitários, os teóricos críticos são submissos às leis que os regem. Dentre essas, há uma fundamental, que é a dominação, sobre o mercado mundial do ensino superior e da pesquisa, das universidades norte-americanas em matéria de financiamentos, de publicações e de facilidades infra-estruturais”19.

Esse deslocamento geográfico da produção intelectual em geral e, em grande medida, da produção intelectual dos teóricos críticos, já havia começado em meados dos anos 1970, na esteira do fim do ciclo do “marxismo ocidental”, momento em que, como afirmara Perry Anderson na mesma época, ao declínio da intelectualidade marxista-ocidental nos países da Europa Latina (em especial França e Itália) acompanha-se a ascensão relativa do marxismo nos países anglo-saxões, de início na Inglaterra e depois nos Estados Unidos. Mas o processo se acelera nos anos 1980, ganhando novo fôlego e nova configuração, o marxismo cada vez mais sendo suplantado por teorias críticas moduladas por outras formas de reflexão teórico-política, como o pós-estruturalismo, que, por exemplo, embora de origem francesa, condicionou os debates sobre as “políticas de identidade” nos EUA. A França, por sua vez, desde pelo menos a irrupção midiática dos “novos filósofos” em 1975/6/7, seria palco de um tournant conservador no plano intelectual, a tal ponto que Paris se torna, nessa época, “a capital da reação europeia”, como a designou o mesmo Perry Anderson.

Nesse cenário, tanto Michael Löwy – cuja trajetória acadêmica começa bem cedo, com o doutorado concluído aos 26 anos, ao qual se seguiu a carreira de professor em Israel, em Manchester, professor-assistente em Vincennes e, finalmente, pesquisador e, depois, diretor de pesquisas no CNRS em Paris, ao final dos anos 1970 –, quanto Daniel Bensaïd – que, ao contrário, não realizou seu doutorado em ciência política senão em 1983, na Universidade de Montpellier, já com 37 anos, começando a lecionar na mesma década na Universidade de Paris VIII, em Saint-Denis – ocupam, em especial no caso do segundo, uma posição não apenas objetivamente subalterna no campo acadêmico em geral, e nos círculos das ciências humanas em particular, senão também subjetivamente percebida e valorizada como tal, como se se buscasse deliberadamente uma demarcação diante de instâncias de consagração visualizadas

19 Razmig Keucheyan, Hémisphère Gauche, op.cit., p.36. O próprio Löwy atuou como professor-visitante em

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como conservadoras e hostis à vocação do intelectual militante, acusado de trazer para o interior do campo motivações e perspectivas que lhes são (ou deveriam ser) alheias20.

Deste ponto de vista, não constitui um acaso o fato de que, nesse contexto, de diferentes formas (um, com uma abordagem mais político-sociológica, através da análise de trajetórias, o outro, sob uma ótica mais político-filosófica), tanto Löwy como Bensaïd tenham se dedicado à reflexão sobre os intelectuais, talvez como uma forma de auto-análise, como que almejando responder aos seus próprios dilemas enquanto intelectuais militantes em um mundo no qual a especialização e a ascensão do “intelectual específico” são inversamente proporcionais ao declínio do “capital simbólico” do intelectual envolvido em causas “universais”.

Em sua segunda tese de doutorado (doctorat d’État), por exemplo, um estudo de “sociologia dos intelectuais revolucionários” a partir da análise da evolução político-ideológico do jovem Lukács da visão trágico-romântica de mundo até o marxismo, finalizada em 1974, Michael Löwy dedicou o último capítulo exatamente à reflexão sobre as transformações das condições de possibilidade de radicalização dos intelectuais nos anos de 1960, em relação à época de Lukács. Entre uma época e outra, poder-se-ia visualizar uma mudança substantiva nas possibilidades de tomada de posição político-ideológica por parte dos intelectuais, em meio ao processo de massificação e, mais importante ainda, de proletarização dos intelectuais. Se o jovem Lukács constitui um dos casos mais emblemáticos de grandes intelectuais “tradicionais”, humanistas, que, por força de uma recusa ética-moral individual de alguns princípios do capitalismo, aderem ao marxismo e à luta revolucionária, bem diferentes seriam as formas de engajamento socialista dos intelectuais no final dos anos 1960. Em comparação com a época de Lukács, em especial entre 1914 e 1924, a “oposição radical dos intelectuais” ao capitalismo e sua adesão ao movimento dos trabalhadores “assumiram um caráter mais de massa” a partir de meados da década de 1960.

A despeito de uma certa nostalgia em relação aos grandes intelectuais humanistas do passado, Löwy depositava – na esteira da vaga aberta em 1968 – significativas esperanças na possibilidade de uma radicalização político-revolucionária massiva dos intelectuais, que elevaria a um novo patamar aquilo que, no tempo de Lukács, restringia-se a alguns membros

20 Muito embora tenha tido uma carreira acadêmica bastante exitosa, com as consagrações correspondentes (ele

foi agraciado em 1994, por exemplo, com a “medalha de prata” do CNRS), Michael Löwy sempre manteve algo de outsider no plano institucional, em função, entre outras coisas, da sua total ausência de ambição burocrática ou de poder – mesmo sua integração no âmbito do grupo da sociologia de religião permanece parcial, talvez pela singularidade de sua trajetória política e intelectual em relação à de seus colegas. Por outro lado, estabeleceu laços sólidos com casas editoriais de todo o mundo (“consagradas” ou militantes), logrando um canal por onde publicar seus livros em diversos países, às vezes de modo quase simultâneo.

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da intelligentsia. Para ele, “o itinerário político-ideológico de Lukács [é], sob vários aspectos, exemplar e de uma espantosa atualidade. Hoje, mais do que nunca, extensas camadas de intelectuais (sobretudo jovens) entram para o movimento operário, para o marxismo, para a extrema-esquerda revolucionária, em consequência de certas determinações socioeconômicas e movidos por motivos ético-culturais, por uma ardente e, por vezes, romântica repulsa pelo capitalismo”21. Aos seus olhos, “mais do que no passado, hoje [1974] podemos contar com a

‘conquista ideológica’ dos intelectuais tradicionais pelo proletariado de que falava Gramsci, mesmo que grande parte da intelligentsia ainda esteja visceralmente atada à burguesia e continue a produzir e reproduzir a ideologia dominante”22.

Na ótica de Löwy, a explicação sociológica desse processo de radicalização dos intelectuais, particularmente na França, nos anos 1960, reside tanto em transformações estruturais objetivas do capitalismo, que atingem diretamente a categoria social dos intelectuais, quanto na dinâmica específica da intelectualidade, cuja proximidade subjetiva com os valores humanistas pode impulsioná-la na direção da oposição à realidade reificada e quantificada do sistema capitalista. Com efeito, desde o final da segunda guerra, tal como demonstrara Ernest Mandel em O capitalismo tardio, com a chamada “terceira revolução industrial” e a extensão massiva do setor “terciário” (dos serviços), observa-se um salto qualitativo na “industrialização” e “mercantilização” de todos as esferas da atividade social. Essas mutações “objetivas”, que acarretam a emergência de uma “nova fração do proletariado”, o “proletariado intelectual” – e não uma “nova pequena burguesia”, conforme a designação de Nicos Poulantzas –, significa a um só tempo uma submissão dos trabalhadores intelectuais a um poder exterior, obrigados a “traficar suas almas”, para parafrasear Balzac, e uma oportunidade para a sua radicalização político-ideológico, cuja efetivação, porém, dependeria de características específicas à categoria social dos intelectuais, cuja tomada de posição política passa por “mediações essencialmente ‘superestruturais’, ideológicos, ético-culturais e político-morais”23.

Embora mais próximos do proletariado que do antigo mandarinato universitário, os jovens intelectuais dos anos 60 também se ressentiam da contradição entre um “conjunto de valores éticos, estéticos, humanos e culturais” e um mundo, o capitalismo, regido pela quantificação mercantil, de tal forma que, também eles “se encontram, por assim dizer, naturalmente, espontaneamente, organicamente, em contradição com o universo do

21 Michael Löwy, A evolução política de Lukács (1909-1929). São Paulo: Cortez, 1998, p.259, 260. 22 Idem, p.261, 262.

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capitalismo, dirigido rigorosamente por valores quantitativos, os valores de troca”24. A

diferença é que, na década de 1960, simultaneamente ao avanço irresistível da mercantilização, poder-se-ia observar uma ampliação significativa da resistência dos intelectuais aos valores (ou à falta deles) identificados com o capitalismo. Nas palavras de Löwy: “Se a radicalização dos intelectuais (sobretudo os jovens) atingiu hoje [1974] proporções de massa, muito mais importantes que na época de Lukács, é porque a reificação, a dominação opressiva e irresistível das ‘coisas’, a quantificação e a mercantilização, a ‘capitalização do espírito’ (Lukács) e a comercialização da cultura desenvolveram-se numa escala muito maior”25. Os acontecimentos de maio de 68 não seriam senão o estopim dessa “grande recusa” dos jovens estudantes e intelectuais à beira da proletarização em face da dominação fetichista da mercadoria.

Segundo Löwy, em aliança com a classe operária, essa radicalização dos intelectuais poderia sinalizar uma “nova chance histórica da revolução socialista na França”. Portadores de um anticapitalismo radical, os intelectuais revolucionários poderiam tornar-se um “sustentáculo da vanguarda revolucionária”, levando às últimas consequências a “contestação total, política, cultural e moral do sistema capitalista”. Em suma, o intelectual radicalizado, anticapitalista, tornar-se-ia o legatário da “revolução total” de que falava Henri Lefebvre. Afinal, “o que o intelectual que se tornou anticapitalista recusa não é tal ou qual aspecto quantitativo, parcial, superficial, do modo de produção capitalista, mas seu fundamento: a dominação de toda a vida humana pelo valor de troca. O que deseja não é uma melhora, uma reforma ou uma acomodação do sistema, mas sua devastação total, e sua substituição por um modo de vida qualitativamente diferente. Donde o fato paradoxal de que a extrema esquerda do movimento operário seja composta frequentemente por grande número de intelectuais e estudantes”26.

Retrospectivamente, não é difícil visualizar a dimensão algo otimista e idealizada das esperanças depositadas por Löwy nas consequências políticas do processo de radicalização dos intelectuais, ainda que, à época, a aposta tinha alguma base real, tendo em vista as mutações socioculturais e universitárias na França dos anos 1960, as quais atingiam em cheio uma nova geração – nascida no pós-guerra –, os baby-boomers, que acabaram por revelar uma disposição então inesperada à politização e à adesão à extrema-esquerda revolucionária, em oposição ao “reformismo” identificado ao PCF. Na realidade, o próprio Löwy e, em maior medida, Daniel Bensaïd, constituem de alguma forma expressões desse processo descrito pelo primeiro.

24 Idem, p.29.

25 Idem, p.271. 26 Idem, p.283.

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Estudantes e intelectuais desde cedo engajados na militância socialista, ambos aderem à esquerda revolucionária anti-stalinista, acabando por se encontrar, já na França no final da década de 1960, nas fileiras da trotskista Liga Comunista, em um momento em que esta, assim como outras organizações (maoístas ou libertárias) oxigenadas pelo maio de 68, estavam em plena ascensão. Era compreensível, portanto, até certo ponto, que Löwy apostasse, na tese redigida nos primeiros anos da década de 1960, na possibilidade de uma nova aliança histórica entre o movimento dos trabalhadores e os intelectuais revolucionários, estes últimos servindo como caução face à tentação do reformismo. Vivia-se, afinal, talvez o último período da “atualidade da revolução”.

Ora, sabe-se bem que, a partir do final da década de 1970, as condições políticas para a radicalização e o engajamento dos intelectuais revelar-se-iam duramente transformadas. Ainda que de uma forma implícita, essas mutações políticas impactaram as trajetórias de Michael Löwy e de Daniel Bensaïd. Se este último ainda permanecia, à época, defendendo a unidade à maneira clássica entre trabalhadores e intelectuais revolucionários, Löwy, por seu lado, dá início a uma nova etapa de suas reflexões sobre os intelectuais anticapitalistas, cujo parâmetro ideal-típico será a figura de Walter Benjamin, autor que ele “redescobre”, como se verá, em 1979. Nessa mesma época, começam as suas pesquisas sobre os intelectuais judeus romântico-messiânicos e “esquerdizantes”, marxistas e/ou libertários, ou tudo isso ao mesmo tempo, como no caso de Benjamin, que, tal como se observa em um dos aforismos de Rua de Mão Única, “O caráter destrutivo”, encontrava-se no “cruzamento dos caminhos”.

Pelas razões que buscaremos (ao menos parcialmente) explicar e explicitar, Löwy visualiza em Benjamin, desde então, tal como o fará mais tarde Daniel Bensaïd, a um só tempo um exemplo concreto de intelectual radicalizado, heterodoxo, que carrega em si diversas formas possíveis de crítica do capitalismo, e uma bússola para a significativa abertura temática e teórica de suas reflexões futuras. De agora em diante, o espectro de Benjamin interfere tanto na escolha dos “objetos” quanto no tratamento dado a eles. Se até então a obra de Löwy se caracterizava por análises - à luz do método da “sociologia da cultura” de Lucien Goldmann - de intelectuais marxistas “clássicos”, por assim dizer, como – além do próprio Marx, tema da tese de doutorado – Rosa Luxemburgo, Lênin e Lukács, dentre outros, buscando destacar sua evolução político-ideológica, agora ele extrapola os limites do marxismo não apenas de um ponto de vista temático, senão também de uma perspectiva teórica, mais “aberta” a influxos “externos”, à procura das afinidades eletivas possíveis entre formas diferentes do anticapitalismo.

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É nesse contexto, no qual se perfilam em sua escala de interesses uma plêiade de intelectuais anticapitalistas “heréticos”, responsáveis por recusas frequentemente ambivalentes – e sem a caução do marxismo e da aliança com a classe operária – do capitalismo ou, ainda mais, da modernidade, que Michael Löwy intensifica sua valorização (parcial e condicionada, é bem verdade) da concepção dos intelectuais desenvolvida por Karl Mannheim em Ideologia e Utopia. Já manifestada em seus trabalhos anteriores, como a tese sobre Lukács ou, principalmente, em seus estudos sobre a sociologia do conhecimento, todos os dois realizados na década de 1970, esse elogio da óptica mannheimniana acerca dos intelectuais “sem vínculos”, “livremente flutuante”, assume sua máxima expressão a partir da virada para os 80, exatamente (não por acaso) quando Benjamin é alçado ao centro de seu horizonte intelectual.

Ainda que, à diferença de Mannheim, Löwy jamais acate plenamente a tese do caráter permanentemente “flutuante” dos intelectuais, insistindo sobre a necessidade, em um momento ou outro, de estes assumirem um dos pontos de vista em disputa – os quais estão sempre direta ou indiretamente vinculados a grupos ou classes sociais concretas –, ele parece visualizar nessa concepção bastante “positiva” dos intelectuais uma espécie de “resposta” a um declínio da categoria social dos intelectuais cuja raiz reside, na verdade, no declínio das “grandes narrativas” universais, das quais eram portadores os intelectuais “engajados” no auge do marxismo francês em meados da década de 1960. Em outras palavras, se a hipótese se confirma, essa fidelidade a uma visão dos intelectuais “humanistas” que, fiéis ao seu vínculo específico com os valores qualitativos que os definem, acabariam por questionar radicalmente o sistema capitalista e seus valores meramente quantitativos, seria uma forma de contrabalançar a virada conservadora do campo acadêmico e intelectual francês, que coincide com a desmoralização do velho intelectual engajado em causas mais ou menos “universais”.

3. Intelectuais, política e classes sociais no debate sociológico

Esse conjunto de fatores e especificidades relacionadas à condição dos intelectuais na época contemporânea condiciona, e nem poderia ser diferente, as possibilidades analíticas, por assim dizer, que se colocam ao pesquisador das trajetórias de Michael Löwy e de Daniel Bensaïd. De onde a necessidade de debater, à luz das singularidades dos intelectuais contemporâneos, as possíveis formas de análise histórico-social ou sociológica dos intelectuais e de suas obras e trajetórias.

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A questão dos intelectuais, e, em especial, o problema da relação entre intelectuais e engajamento político é ao menos tão antigo como o surgimento do marxismo e do movimento dos trabalhadores – embora o termo tenha se popularizado, de fato, apenas com o chamado affaire Dreyfus, no final do século XIX. Em particular porque os intelectuais, não pertencendo, enquanto tal (salvo casos específicos), nem à burguesia e tampouco ao proletariado, se apresentam sob o manto de uma autonomia relativa em relação às classes sociais, e, portanto, em relação à realidade social. Categoria social definida, antes de tudo, por seu papel ideológico, e não por seu posicionamento no processo de produção econômico, os intelectuais gozam de uma certa autonomia diante das condições materiais, uma vez que, dentre os grupos sociais estabelecidos, eles constituem aquele para o qual os valores, o mundo das ideias, detém maior importância27. Assim, quando Karl Mannheim apresenta, em Ideologia e Utopia, sua concepção

da intelectualidade “livremente flutuante”, capaz de escapar das determinações particulares das classes e grupos sociais, alcançando a “síntese” dos pontos de vistas diferentes, ele não faz senão “absolutizar” e tornar “estável”, de forma algo idealista, diga-se de passagem, a especificidade da condição dos intelectuais, mais próximos à pequena-burguesia, mas ainda assim sem um enraizamento social pré-definido (a princípio, um intelectual pode ser originário de não importa qual classe ou grupo social).

Todavia, se a categoria social dos intelectuais, à diferença das classes sociais, é irredutível às análises deterministas (“sociologistas” ou marxistas-economicistas) que reduzem a obra de um autor às determinações sociais de sua origem ou do seu “meio”, isso não significa, em revanche, que as obras e trajetórias dos intelectuais só possam ser analisadas em seu desenvolvimento puramente interno, cujo movimento independeria das agruras da exterioridade histórico-social. Como defendera Lucien Goldmann, a compreensão de uma obra pressupõe a sua integração à visão de mundo de um grupo e/ou classe social, a qual por sua vez remete à totalidade histórica, socioeconômica e político-social de uma época. A questão central aqui é como estabelecer as mediações entre o pensamento de um autor, a visão de mundo que lhe garante uma estrutura significativa, a cena política, os debates intelectuais e ideológicos e, enfim, o contexto histórico-social mais geral, condicionado pelo movimento articulado de uma totalidade concreta em movimento.

27 Como escreveu Gramsci, “a relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como ocorre

no caso dos grupos sociais fundamentais, mas é ‘mediatizada’, em diversos graus, por todo o tecido social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são precisamente os ‘funcionários’”. Antonio Gramsci,

Cadernos do Cárcere. Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Vol. II [edição e organização: Carlos

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No âmbito específico da sociologia, Pierre Bourdieu foi responsável pela construção de um modelo de análise que, sem dúvida, tornou-se, não apenas na França, uma das mais (se não a mais) influentes referências teóricas das investigações sociológicas sobre os intelectuais. Parte fundamental de sua sociologia reflexiva da cultura, a “sociologia dos intelectuais” que se perfila na obra de Bourdieu assenta-se rigorosamente nos mesmos pressupostos teórico-metodológicos que condicionam a sua tentativa ambiciosa de consolidar uma démarche epistemológica especificamente sociológica, capaz de defini-la nitidamente em face das outras disciplinas das ciências humanas, igualmente envoltas com questões referentes a aspectos da realidade social. Como diz Pierre Mounier, “se, para Bourdieu, nenhuma sociologia é possível sem uma sociologia da sociologia e, em consequência, sem uma sociologia dos intelectuais, isso se deve ao fato que, desde os primórdios de seu trabalho, ele se interrogou sobre as condições de possibilidade da cientificidade de tal disciplina”28.

Nessa perspectiva, um dos principais esforços de Pierre Bourdieu refere-se à sua tentativa de distinguir a sociologia científica das análises filosóficas ou político-doutrinárias, ambas, em especial no caso da primeira delas, formas de conhecimento que, para o sociólogo francês, recaem na “fetichização da razão teórica” que está na base do que ele designa, particularmente em suas Meditações pascalianas, como razão escolástica29. À diferença da lógica prática, que busca apreender as “disposições duráveis” - quase sempre não transparentes para os “sujeitos” - que constituem um habitus específico a um determinado grupo ou campo social, o “ponto de vista escolástico” concebe os agentes sociais como sujeitos racionais imbuídos de uma prática (intelectualmente) consciente. Legitimando-se através dos seus próprios critérios de consagração, a razão escolástica criticada por Bourdieu orienta-se pela busca de um universalismo já pressuposto de antemão, um universalismo racionalista, incapaz - em função de sua perspectiva intelectualista - de conceder a devida importância analítica às condições sociais de possibilidade nada universais das quais ele emergiu30.

Uma abordagem genuinamente sociológica, ao contrário, deve, na ótica de Bourdieu, ademais de elaborar uma teoria da sociedade (uma lógica da prática social), desvendar, por

28 Pierre Mounier, Pierre Bourdieu, une introduction. Paris : La Découverte, 2001, p.9.

29 Pierre Bourdieu, Méditations pascaliennes. Éléments pour une philosophie négative. Paris : Seuil, 1997.

“Reformulação dos principais temas abordados em Le Sens pratique, mas também em La Distinction, La

Reproduction, La Noblesse d’État, o livro organiza-se como uma confrontação com a filosofia”. Tratar-se-ia de

uma “critica a um só tempo sociológica e epistemológica ao que Bourdieu denomina ‘razão escolástica’, que se encontra no núcleo da produção filosófica”. Pierre Mounier, P. Bourdieu, une introduction, op.cit., p.171.

30 Cf. Pierre Bourdieu, “Le point de vue scolastique”. In: Raisons pratiques. Sur la théorie de la pratique. Paris:

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assim dizer, as condições sociais de produção do conhecimento científico, inclusive da própria sociologia enquanto disciplina. A sociologia implica, portanto, como condição de sua cientificidade, em oposição ao ponto de vista filosófico-escolástico, e como uma de suas dimensões fundamentais, a existência de uma sociologia da sociologia, uma sociologia reflexiva, na medida em que a revelação das condições sociais de sua produção já é um elemento relevante da investigação sociológica. Em face da pretensão escolástica à universalidade da razão pura, a análise sociológica almeja, segundo Bourdieu, destacar as condições sociohistoricas da emergência desta razão teórica. Trata-se, assim, da única forma de se evitar a fetichização (consciente ou inconsciente) da razão teórica, que pode então ser revelada naquilo que realmente é: a violência simbólica de uma razão que se impõe como a razão legítima através, entre outras coisas, da ocultação das condições sociais favoráveis à sua origem histórica.

Não surpreende, nesse cenário, diz Bourdieu, que a análise sociológica dos intelectuais, tal como por ele revelada em seus pressupostos fundamentais, tenha suscitado tamanha aversão entre seus pares, que se sentiram questionados naquilo que, simbólica e socialmente, parecia ser a garantia de sua superioridade espiritual: a autonomia ao menos relativa em face das contingências e urgências da vida social. Nas palavras de Bourdieu: “Parece-me que a resistência que tantos intelectuais opõem à análise sociológica, sempre suspeita de grosseria reducionista, e particularmente odiosa quando ela se aplica diretamente a seu universo, enraíza-se em uma espécie de questão de honra (espiritualista) deslocada que os impede de aceitar a representação realista da ação humana que é condição fundamental para um conhecimento científico do mundo social, ou, mais exatamente, em uma ideia perfeitamente inadequada de suas dignidades de ‘sujeitos’, que os faz ver na análise científica das práticas um atentado contra suas ‘liberdades’”31.

À sociologia caberia desmistificar essa reivindicação espiritualista de independência dos intelectuais, revelando os mecanismos através dos quais a possibilidade mesma da autonomia de certas camadas intelectuais depende de condições sociais favoráveis em um espaço agônico, no qual os agentes sociais se definem pela posição relativa por eles ocupada no interior do campo social. Mas, malgrado a tentação cientificista que ronda a concepção bouerdieusiana da sociologia e do seu papel de desvendamento das reais condições sociais que pressupõem a atividade intelectual, a sua análise sociológica dos intelectuais ambiciona, além da investigação

31 Pierre Bourdieu, “Avant-propos”. In: Raisons pratiques. Sur la théorie de la pratique. Paris: Éditions du Seuil,

Referências

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