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os soNaciremas, um filme-dispositivo

No documento Narrativas Sensoriais – Editora Circuito (páginas 59-62)

Alguns cineastas pertencentes ao Situacionismo e ao Letrismo radicalizaram certos aspectos relacionados ao disposi- tivo, introduzidos pelo cinema estrutural (Holis Frampton, Paul Sharits e Peter Kubelka) e pelas videoinstalações de circuito fe- chado (Bruce Nauman, Dan Graham e Peter Campus). Em vez de criar uma imagem puramente luminosa e gasosa – com efeitos de flicagem muito rápidos que fazem a imagem cintilar até nos deixar num estado de transe sensorial –, eles criaram situações outras de frustração e / ou desocultamento do espetáculo cinema- tográfico. Em 1952, Guy Debord faz um filme chamado Hurlements

en faveur, de Sade, em que vozes falam de forma monocórdica

enquanto vemos um filme sem imagens: a tela se ilumina apenas nos momentos em que há falas. Mas as falas são tão dispersas e digressivas quanto as imagens. De Le film est déjà commencé? (1951) a Toujours à l’avant-garde de l’avant-garde jusqu’au paradis et au delá (1970), Maurice Lemaitre faz uma série de filmes e de sessões de cinema em que o espectador é solicitado a participar de várias formas, inclusive como parte do espaço em que é projetado o filme (ele pede que os espectadores vistam-se de branco). Todos estes projetos tinham em comum criar uma situação de desocul- tamento do dispositivo do cinema espetáculo. Neles, o cinema é, em grande parte, o próprio processo de experiência da obra.

O filme Os Sonaciremas (1978), realizado por mim em 35mm, é um documentário experimental / conceitual sobre uma tribo imaginária que se estende do Oiapoque ao Chuí. O som do filme é constituído por uma narração realizada por quatorze pessoas que leem o texto que descreve uma tribo obcecada pelos cuida- dos com o corpo. Este filme foi inspirado, sobretudo pelos vídeos conceituais dos pioneiros da videoarte, uma vez que neles, como veremos mais adiante, a questão de um cinema do corpo é cru- cial. Mas também porque no momento em que fiz este filme eu desconhecia completamente o cinema dos letristas, dos situacio- nistas e do grupo Fluxus.

O filme é baseado em The ritual body among Nacirema, texto do antropólogo americano Horace Minner, publicado originalmente em 1956 no American Anthropologist e que descreve uma tribo que vive na América do Norte e desenvolveu uma série de obsessões em torno do corpo. Segundo Miner, as crenças e práticas mágicas dos “Nacirema” (anagrama perfeito de “american”) apresentam as- pectos tão inusitados que descrevê-los pode nos permite discutir os extremos a que pode chegar o comportamento humano.

Como num texto situacionista, em The ritual body among

Nacirema, Miner nos leva a repensar não apenas os limites entre

o “normal” e o “patológico”, mas, sobretudo, os próprios instru- mentos (dispositivos) utilizados para descrever os comportamen- tos culturais. Na verdade, o texto fala sobre a cultura ocidental como se ela fosse uma cultura “primitiva”. É, sobretudo a obje- tividade da descrição dos nossos gestos do dia a dia que produz a nossa cegueira quanto ao objeto do texto, como se ao olhar no espetáculo especular desta “tribo de bárbaros que vieram do les- te” não nos reconhecêssemos.

O filme, um falso documentário, usa a tela de cinema para fazer “refletir”, literalmente, os espectadores, verdadeiros obje- tos do filme. Na verdade, o filme não possui imagens figurativas, apenas pontas pretas e transparentes, além de transições realiza- das por meio de fade-in e fade-out. Nele, não foram usadas câmara nem moviola (mesa de montagem de cinema).

O filme poderia ser comparado a uma tentativa de fazer uma imagem que viesse a espelhar a condição do espectador, como se este apenas alucinasse da sua posição / condição no dispositivo cinematográfico. Entretanto, o processo de ilusão que o cinema cria é tão forte, que o espectador não se reconhece nas imagens (sonoras) dele criadas.

É assim que, para Jean-Louis Baudry, o dispositivo do cine- ma – a projeção, a sala escura, a imobilidade do espectador – re- encena a “Alegoria da caverna”, ao passo que remete ao aparelho psíquico na medida em que, nele, o sujeito é uma ilusão produ- zida a partir de um lugar. Por se encontrar no centro do mundo que é projetado, “o espectador se identifica menos com o que é representado no espetáculo do que com o que produz o espetá- culo: com o que não é visível, mas torna visível”. Trata-se, tanto no cinema como na constituição do sujeito, de um sujeito trans-

cendental, que se constitui por meio da ilusão de se encontrar no centro e, estando no centro, se sentir como condição de possibi- lidade do que existe.

O filme Os Sonaciremas é ancorado na ideia de dispositivo, ou seja, de um cinema verdadeiramente estrutural. Como no dispo- sitivo de representação conhecido como campo / contracampo, o dispositivo cinematográfico é, ao mesmo tempo, um conjunto de relações no qual cada elemento se define por oposição aos outros (presente / ausente), e no qual o espaço do ausente (imaginário) se torna o lugar (é ele que torna visível) em que uma não presença se mistura, ou melhor, se sobrepõe a uma presença. O filme se dá como o canto das sereias, puramente virtual, a partir do qual o espectador, em contracampo, é convocado a imaginar o que seria essa cultura descrita, que é a sua própria, mas que ele, no entan- to, não pode perceber porque ela está sempre a distância, como o lugar a ser percorrido.

Em uma versão mais recente do filme Os Sonaciremas, intitu- lado Cinema Movido, criamos um happening intitulado Cine-movido (happening-instalação realizado na Escola de Audiovisual de Fortaleza em 2007), envolvendo os espectadores. Enquanto o fil- me é projetado, há uma câmera de vídeo que capta a imagem dos espectadores vendo o filme, de costas. Essa imagem é projetada por um videoprojetor sobre a imagem do filme.

Os espectadores levam um bom tempo para se dar conta de que a imagem projetada é a sua própria imagem captada em tem- po real. A imagem resultante é uma imagem em espelho, infinita, uma vez que a imagem em vídeo é feita e projetada em tempo real, criando um jogo de espelho com planos infinitos.

Esse tipo de situação nos faz pensar nos pioneiros da video- arte, como Peter Campus, Bruce Nauman e Dan Graham, que fi- zeram instalações nas quais o circuito fechado e as arquiteturas

constritivas levavam os espectadores a viver suas próprias presen- ças como sendo o ponto nodal da obra, uma experiência que de alguma forma confirmava a ideia, cara a Maurice Merleau-Ponty, de que “ver é ser visto”.

Os Sonaciremas – documentário experimental, um falso do-

cumentário, um filme sonoro processual – cria um processo de frustração do espetáculo cinematográfico instituído, ao passo que produz um desocultamento do dispositivo do cinema e do lugar do espectador, colocando-se como uma instalação especular na qual a experiência da obra é não apenas o centro, mas o especta- dor se torna espectador implicado que se vê como parte do filme.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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No documento Narrativas Sensoriais – Editora Circuito (páginas 59-62)