• Nenhum resultado encontrado

a seNsação da tela: um espaço de luz

No documento Narrativas Sensoriais – Editora Circuito (páginas 63-65)

Para começar, e um pouco por provocação, por gosto pelo gesto radical, porque se trata de uma experiência sensível que é uma experiência da não-tela, ou da forma-tela como negati- vidade, me reportarei, primeiramente, ao formidável trabalho do artista plástico americano James Turrell, conhecido por seus “skyspaces”.1 O trabalho de Turrell, sobretudo suas instalações

dos anos 2001-2006 (Gap, Spread, Wide Out, End Around, a série

Tiny Town, etc.),2 se apresenta para quem o descobre como uma

experiência mais contemplativa em torno da questão das cores

1 A origem dos Skyspaces de Turrell vem da sua famosa experiência do Roden Crater em Arizona: ver, “do interior da cratera”, o céu como espaço de cor, de matéria luminosa enquadrada por um corte circular e se instalando diante dos nossos olhos e nosso es- pírito como uma sensação visual pura de luz-cor. Muitas outras obras serão em seguida construídas sobre cortes (naturais mas também arquitetônicos, em todo caso, sempre geométricos: circular, oval, quadrado, retangular), levando ao espaço do céu – lugar de emissão e reflexo de intensidades luminosas infinitamente variadas – tratado como matéria colorida.

2 Ver, entre outros, o livro de Georges DIDI-HUBERMAN, L’Homme qui marchait dans la couleur, Paris, Minuit, 2001.

(monocromático) como espaço. O espectador-visitante se encontra diante (e dentro) dos espaços de luz-cor muito intensos, dos quais ele tem uma experiência perceptiva bastante física. Diante dele, dentro das salas sempre isoladas, despojadas, limpas, onde ele

penetra, não há nada para “ver” a não ser a luz, muito sutilmente

organizada, e especialmente um retângulo colorido, uma espécie de “tela de luz” sobre uma parede da sala onde ele é convida- do a ficar. A palavra “ver” não convém realmente para descre- ver a sensação fortíssima que causa esse sentimento de luz-cor. Existe uma dimensão háptica na relação do sujeito com a matéria colorida que se recorta no espaço que ele “habita” (no sentido heideggeriano). Ademais, muito frequentemente o espectador é tentado a se aproximar, atraído pela luz que emana da tela, como uma borboleta noturna por uma lanterna, se aproximar porque está intrigado, porque procura entender de que natureza é esse retângulo luminoso que irradia sobre a parede, esse azul mais azul que aquele da sala em sua totalidade, esse vermelho mais in- tenso que parece vir da tela para iluminar o espaço, o espectador quer se aproximar porque, nesse mundo que não se sabe se é de luz ou de cor, ele é tomado por uma dúvida, e quer, então, tocar essa tela, tocá-la como São Tomás, para saber tanto quanto crer. E a surpresa vem então lhe capturar: não existe tela diante dele, nada de superfície material que brilha sobre a parede. Nada para tocar. Nada além de um vazio, um buraco na parede, como uma janela aberta. Essa tela que ele percebia como “física”, não é nada além de um retângulo sem matéria, feito unicamente de uma luminosidade intensa que vem de outra peça, situada do outro lado da parede e que ele não tinha percebido como uma segunda sala. Nada de parede, nada de tela, nada de palpável, somente um “vazio de luz” radiante, que enganou o olhar do sujeito. E, no entanto, a sensação de matéria luminosa é total, mais forte que

o conhecimento que temos do “vazio”. A percepção é bem física e o espectador não pode abandonar-se a ela. Tão logo realizada “a experiência do buraco” (passar a mão), o sujeito volta a se colocar no centro da peça, a “boa” distância, aquela onde ele goza da sen- sação de luz-cor, aquela onde o efeito da tela o fascina.

As experiências psíquico-perceptivas e fenomenológico-me- tafísicas de Turrell jamais evocam explicitamente o dispositivo cinematográfico (não existe um objetivo analítico ou crítico em seu trabalho). Mas me parece que elas são profundamente tra- balhadas por esse tal “efeito cinema” (e não apenas como uma metáfora). Parece-me que podemos dizer que para compreender todo o “poder de sensação” das salas de Turrell, a referência à tela de cinema é quase necessária. Que outra “superfície pura” de fato, exerce por ela-mesma (sem recorrer a uma imagem figurati- va) uma tamanha força de atração sobre nossa percepção?

Encontraremos, desta vez mais explicitamente, outro exem- plo de encenação da fascinação pura que a tela de cinema exerce no belo trabalho fotográfico do japonês Hiroshi Sugimoto, conhe- cido pelo título genérico de Theaters. Podemos ver nas magníficas impressões, muito organizadas, grandes telas de cinema (telas no interior de suntuosas salas americanas dos anos 1930-1950, frequentemente monumentais com suas decorações sofisticadas, e telas no exterior, nos drive ins ao ar livre, sobre um fundo de céu e de palmeiras). Todas essas telas (desta vez são verdadeiras telas de cinema e não metáforas conceituais) são inteiramente brancas, mas não por falta de imagem (porque nelas não teria sido projetado nada), mas ao contrário, brancas por um excesso de imagens: elas não são simplesmente de cor branca, elas são “a luz branca”, um branco sólido, irradiante, muito branco. Elas são brancas porque foram, por assim dizer, branqueadas, queimadas pela luz do filme que foi projetado in extenso e que resultou em uma superexposição na imagem. A exposiçãode fotografias de Sugimoto, de fato, durou todo o tempo da projeção do filme na tela. O tempo de exposição fotográfica e a projeção do filme são deliberadamente associados, identificados, unidos em um gesto de pensamento que coloca em equivalênicia simbólica exposição e projeção. Em outras palavras, essas telas brancas “contêm” vir- tualmente todas as imagens do filme, acrescentadas, sobrepostas até que sejam apagadas, engolidas pela brancura brilhante do tempo de exposição esticado até o limite de duração de um fil- me inteiro. Todas as imagens acumuladas do filme resumem-se assim à falta de imagens visíveis na foto. E esses retratos invisí- veis por excesso de imagens, essas telas deslumbrantes e vazias, tornam-se, em contrapartida, fontes de luz, e por reverberação, iluminam a sala, as filas de poltronas, a decoração ou iluminam os céus noturnos dos drive ins (a tela preta de nossas noites em

branco). Essas fotos, que se dão um tempo aberto, que apagam a figura fílmica em uma saturação de branco, que fazem da ex- posição fotossensível um equivalente literal da projeção sobre tela, que transformam as telas de recepção de imagem em uma fonte de luz para iluminar os lugares, essas fotos são puras figu- ras de tela como matéria luz. No prolongamento do trabalho de Anthony McCall sobre a projeção como “luz sólida”, as obras de Turell e de Sugimoto desenvolvem bem a mesma ideia formal: o dispositivo da tela como espaço fenomenal da luz, ao mesmo tempo irradiante e absorvente, que apaga tanto quanto faz sur- gir “a imagem”.

Para além desse trabalho quase fenomenológico sobre as te- las de pura luz e sobre as sensações por assim dizer abstratas de toda figuração que daí decorrem, eu gostaria agora de me con- centrar mais sobre a “forma-tela”, enquanto objeto concreto e material, de um lado (a física da tela) e enquanto objeto formatado e padronizado, de outro (os dispositivos da tela). Os artistas que fizeram a esse respeito variações em torno ou com a figura da tela são extremamente numerosos e abriram possibilidades em todo tipo de direção, especialmente explorando as telas-objetos, as matérias e os formatos da tela.

No documento Narrativas Sensoriais – Editora Circuito (páginas 63-65)