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iNtrodução

e

ste artigo dá continuidade à leitura da repetição em perfor- mances audiovisuais ao vivo iniciada com Ana Carvalho, pesquisadora, performer e professora no Porto, Portugal. Problematizamos a repetição de clipes e loops, como unidades discretas de continuidades e / ou rupturas de significados, velo- cidades, formas, ritmos e direções do movimento da imagem. Do inglês, o substantivo loop é laço, o verbo é enrolar. Pequenos clipes unidos formam loops, cujo início pode ser visível ou não.

A repetição é recorrente na música, no cinema, no vídeo, tv e na poesia. Evidencia o tempo, explicita processos mnemônicos. A escuta e visão repetidas de imagens em movimento, movimentos de dança, frases e sonoridades em poemas e peças musicais suscita comparações entre os trechos vistos e ouvidos. A repetição das uni- dades sequenciadas no tempo, ou entremeadas por outras de na- tureza distinta, propicia a construção de novas relações. Pesquisas estéticas no campo da música, teorias literárias e de montagem cinematográfica levantam naturezas possíveis da repetição. A re-

petição material de trechos sonoros e visuais pode redundar na diferença. As ondas sonoras espacializam o desenvolvimento de harmonias e melodias que continuam a reverberar mesmo após a introdução de novo acorde. O novo acorde se sobrepõe ao anterior, logo, é a ele diferente, pois tem mais uma camada sonora. Outros instrumentos acrescidos ao acorde também contribuem para a constituição do mesmo diferente. Já na montagem cinematográ- fica, os intervalos e a reiteração de sentidos modificam sentidos.

O tic tac do relógio é tempo, é marcação do fluxo temporal. O tic tac em sua dimensão sonora: tic / tac; tic / tac; tic / tac, é cor- po sonoro da repetição, na continuidade e ruptura espaço tem- poral. Tac ruptura de tic, tic de tac. Tic / tac unidade do mesmo a se repetir, o tempo passa. Acontecimentos podem possibilitar a erupção do diferente, mas a ele o tempo é indiferente. Continua idêntico enquanto som, mas será o mesmo para quem ouve? A es- cuta do desenrolar mecânico do tempo ecoa no espaço, ouve-se o tempo no relógio analógico.

As artes visuais como a pintura e a fotografia, imprimem o tempo em superfícies que podem ser percorridas em distintas direções a cada nova mirada. Cada encontro com a tela pode reve- lar texturas, combinações de cores, formas e movimentos, enfim, relações antes não vistas. Determinadas situações ou cenas ga- nham prevalência em relação a outras. O tempo instaura-se pelo olhar, espaço visual apreendido e controlado. O observador pode se deter no trabalho por mais ou menos tempo, permanece ob- servando segundo sua necessidade, reinventa caminhos a serem percorridos. Ao contrário, uma música ou formas audiovisuais, mesmo suscitando novas leituras a cada encontro, tem sua dura- ção previamente definida pelo suporte no qual estão impressos, como o tic / tac escorrem, desenvolvem-se fora do controle do observador, passam.

A poesia, a dança e o teatro também se dão no tempo. A po- esia, ao ser lida, revela, nas rimas e sonoridades, escalas de inten- sidades e frequências. A dança encarnada nos corpos renova-se a cada apresentação. No teatro, um ator pode se esquecer de uma fala. Na dança, um bailarino tropeçar, mas em mídias baseadas no tempo, como nomeado no inglês time-based media, o tempo ne- las impresso é materialidade. As formas e substâncias expressivas são as mesmas sempre, mudamos nós que as vemos. A música visual é exemplo máximo da marca temporal da imagem e som e de suas relações. Sem objeto, com baixo grau de indexicalidade, retorna a imagem ao que “ela realmente é, o movimento tempo- ral de um ato de percepção, reencenado em situações clubber não apenas com os olhos, mas com o corpo todo” para Mathias Weib. Aproxima-se da música ao dar-se no tempo, ao expressar em sua extensão o tempo e simultaneamente criar temporalidades.

A inquietação criativa em torno da música e som remonta a experiências do Renascimento, quando cientistas-artistas já desenvolviam pesquisas sobre a teoria da cor, fonte de inovação artística radical na época.1 A pesquisa sobre música da cor (color

music), ou seja, a busca de tradução material do som em cor é an-

terior ao cinema como projeção e aos suportes de fixação de ima- gens fixas ou em movimento. O cientista filósofo Isaac Newton (1643-1727) supunha uma analogia entre o espectro da cor e a es- cala musical. No século XVIII o matemático e padre jesuíta Louis Bertrand Castell (1666-1757) inventou e construiu o instrumento conhecido historicamente como o primeiro órgão de cores, ou como ele também denominou cravo ocular (clavecin oculaire).2

1 BROUCHER, 2005, p. 70 2 Ibidem

Hoje encontramos uma profusão de experiências sonoro- visuais plurais nas formas e relacionadas a tradições históricas e estéticas diversas. As plataformas digitais têm propiciado uma profusão de experiências voltadas à criação simultânea de ima- gens e sons em diálogo ou contraponto. O crescimento da respos- ta dos processadores viabiliza uma gama de experimentos antes apenas imaginados ou projetados no papel. Festivais de música visual, performances audiovisuais, live cinema e as festas com VJs, que despertam defesas e críticas apaixonadas, exploram relações sonorovisuais inventando tempos e espaços. Em comum nestas experiências, o papel secundário atribuído à figuração e à narrati- vidade. Mesmo quando há iconografia indexical, ou seja, a capta- ção de imagem por câmeras ou apropriação de imagens figurati- vas, enredos são pano de fundo, se desenrolam por contiguidade e não a partir do desenvolvimento de ganchos narrativos ou de personagens. O título eventualmente torna-se guia de tênue ca- minho temático a ser perseguido, cabe ao público desenvolver, ou não, potenciais sentidos a serem extraídos não apenas das imagens em si, mas de sua relação e dos movimentos e ritmos nelas impressos pela performance ao vivo.

Experiências contemporâneas valorizam o sensível, meta expressões – e não digo narrativas, pois muitas vezes elas nem chegam a se constituir. Destas valorizações de experiências mul- tissensoriais e da afetação física, seja ela ocular, auditiva, olfativa, tátil ou de propriocepção surgem novos problemas e experimen- tos. Da relação imageticosonora das performances audiovisuais o lugar do espectador muda, o espaço e convívio com os demais presentes ao evento assume a primazia da proposta. Em uma épo- ca de encontros a distância, a presença, o contato pela obra e pelo público se inscreve nos trabalhos. Bruce MacClure mesmo utilizando projetores de cinema como matéria de projeção é re-

presentativo de performances pautadas no contato físico como apelo. Radical, expõe o público a pulsantes triângulos, quadra- dos, círculos, enfim, a figuras geométricas simples. Cintilantes, impedem a fixação pelo olhar, o que provoca desconforto, e como uma doença, ao lembrar pela dor de órgãos nem imaginados, transforma o olhar. Olhos ouvindo, conectados ao estômago, são atingidos. O corpo atingido pela massa sonora e visual intermi- tente reage sentindo-se desconfortável. O toque duro aproxima- se do soco. Um espetáculo sobre o “ouver”. Contemporâneo na afecção sem necessidade de dispositivo digital.

No documento Narrativas Sensoriais – Editora Circuito (páginas 99-101)