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2 O referencial teórico de Henri Wallon

2.9 O outro, os outros e o outro íntimo

Wallon entende que o psiquismo humano se constitui a partir de um todo sincrético. Considerando as possibilidades biológicas individuais, bem como as condições do meio em que está inserido e com o qual se relaciona, o desenvolvimento paulatinamente evolui para a diferenciação. Nesta perspectiva, é possível encontrar nas origens do desenvolvimento psíquico o eu e o outro ainda confundidos ou, nas palavras de Zazzo (1978, p.58), “ainda inexistentes”.

Na medida em que o indivíduo vai reconhecendo a si mesmo como eu, também passa a perceber o outro. A diferenciação que se dá no desenvolvimento humano e que se refere à compreensão da dimensão eu-outro ocorre de modo concomitante. Refutando o princípio de que no processo inicial dessa diferenciação há um período de supremacia do eu, Wallon afirma que:

A elaboração do Eu e do Outro por parte da consciência faz-se simultaneamente. São dois termos conexos cujas variações são complementares e as diferenciações recíprocas. (1973, p.159)

Entende-se, desse modo, que a relação eu-outro é uma relação que permeia toda a constituição psíquica do indivíduo, desde o seu nascimento (de modo sincrético) até a sua morte. Tendo a duração de uma vida, para compreendê-la é preciso considerar as especificidades de tal relação, ou seja, as possibilidades biológicas do indivíduo (alguém que é mudo, por exemplo, não poderá cantar, ainda que possa lidar com a música de diversas formas, como tocar um instrumento musical ou compor uma música), o meio em que está inserido e o seu momento histórico-cultural.

Ao estudo desta relação eu-outro, de acordo com Zazzo (1978, p.60), Wallon dedicou apenas dois artigos, ambos publicados pela revista Enfance9,

com intervalo de dez anos. São eles: O papel do “outro” na consciência do “eu” (1946) e Níveis e flutuações do eu (1956). Cabe aqui destacar que o título desta pesquisa foi inspirado nesse primeiro artigo de Wallon sobre a temática eu-outro. A análise do conceito de outro íntimo realizada a seguir tem como principal fundamento o estudo desses dois documentos. Contudo, antes de dar prosseguimento a esta análise, é necessário realizar a distinção que Wallon faz quando se refere ao outro, aos outros e ao outro íntimo.

A leitura da obra walloniana fornece elementos para que seja possível inferir que o outro remete a um conceito geral que o caracteriza de modo mais abrangente, mais amplo. Trata-se de um constructo teórico que contempla o

outro de um modo genérico (em oposição ao real, ao específico) e também o

meio, pois o outro é parte, é integrante, é constitutivo do meio. Os outros relacionam-se àqueles com os quais o indivíduo interage concretamente; indica o outro real (em oposição ao geral) na sua pluralidade.

Também chamado de socius, o outro íntimo, devido à complexidade da sua definição, será analisado (tanto quanto possível) de modo mais detalhado na sequência. Antes, porém, verifica-se que Zazzo (1978, p. 60) corrobora essa distinção entre estes três tipos de outro, quando afirma que Wallon “qualifica-o de outro íntimo para o opor (sic) aos outros e ao conceito geral de Outro, e diz ainda que ele é, em nós, o fantasma de outrem”.

      

9 A Revista Enfance foi fundada por Wallon em 1948 e continua circulando até hoje. Alguns números especiais 

foram transformados em livros. Dentre eles, “Psicologia e Educação da Infância” e “Objectivos e Métodos da  Psicologia”, utilizados neste trabalho. 

Desde o momento em que nasce o indivíduo já traz, em si mesmo, o

outro integrado no seu eu. Não existem as delimitações entre o recém-nascido e

os outros; seu psiquismo é um todo sincrético, como foi visto anteriormente, que caminha para diferenciar-se. Para tornar a compreensão deste processo um pouco mais clara e concreta, Wallon compara o primeiro estágio de consciência a uma nebulosa;

Poder-se-ia comparar o primeiro estado da consciência a uma nebulosa onde estariam sem delimitação própria acções sensitivo-motoras de origem exógena ou endógena. Na sua massa acabaria por se desenhar um núcleo de condensação, o eu, mas também um satélite, o sub-eu, o outro. (WALLON, 1973a, p. 157)

Assim, na medida em que o eu e o outro vão se tornando distintos, formam-se concomitantemente, nesse aglomerado cósmico (a consciência), um núcleo de condensação, que seria o eu e um satélite, ou seja, o outro. Entretanto, a delimitação que ocorre durante o desenvolvimento do indivíduo e que fundamenta o estabelecimento das fronteiras necessárias entre o eu e o

outro, não são fixas, mas dinâmicas. Desse modo, nos momentos de crise, aos

quais Wallon também se refere como “obnubilações mentais” (algo que se torna turvo, enevoado, obscurecido), que marcam o desenvolvimento humano, tais delimitações podem fundir-se novamente. Nestes casos, a preponderância do

eu, antes definida pela diferenciação, pode dirigir-se ao outro. É quando, por

exemplo, o indivíduo percebe-se com certa autenticidade em determinadas situações, reconhecendo-se a si mesmo no contexto e, em outros casos, nota a artificialidade de suas atitudes, verificando a sua vulnerabilidade a influências de

...um adulto pode ter momentos, em que se sente mais deliberadamente ele mesmo e outros em que se sente sujeito a um destino menos pessoal e mais submetido às influências, vontades, fantasias dos outros ou às necessidades que fazem recair sobre ele as situações em que está empenhado perante os homens. (WALLON, 1973a, p.158)

Assim, as ações do indivíduo em relação ao seu meio real são sempre mediadas pelo outro que cada um traz em si mesmo.

Contudo, quando o eu se afirma, quando percebe a sua delimitação em relação ao outro, surge o que Pierre Janet definiu como socius ou um duplo eu. “Wallon sublinha fortemente que o outro íntimo não é uma imagem, uma interiorização dos outros. Não é, diz, ‘um decalque das relações habituais que o sujeito possa ter tido com pessoas reais’.’’ (ZAZZO, 1978, p. 61)

Entende-se, portanto, que o socius é esse outro íntimo que surge a partir do processo de diferenciação eu-outro. Tem em sua constituição elementos das relações com o outro, com a cultura e com os diferentes tipos de meio. Sendo ele um parceiro constante na vida psíquica do indivíduo, cuja constituição se dá de forma dinâmica, sua formação também ocorre de modo contínuo, processual, obtendo uma nova configuração a partir dessas relações que se estabelecem no decorrer da vida humana. Assim, o outro íntimo (socius) articula elementos novos e antigos da experiência do indivíduo, não numa simples agregação ou sobreposição de características, mas numa nova combinação que lhe confere, constantemente, um novo perfil.

Entretanto, o socius, de acordo com Wallon (1973a, p. 159):

É normalmente reduzido, inaparente, contido e como que negado pela vontade de dominação e de integridade completa que acompanha o eu. No entanto, toda deliberação, toda indecisão é um diálogo às vezes mais ou menos explícito entre o eu e um objectante.

Assim como a delimitação eu-outro pode ficar indefinida nos momentos de crise, o outro íntimo (socius), normalmente silente e reprimido no indivíduo, ganha expressão em momentos de insegurança e de dificuldade. Em tais situações, o diálogo que se trava entre o eu e o outro íntimo pode até se tornar explícito, audível. É como se houvesse vontades ambivalentes, decisões ambíguas, atitudes antagônicas: é uma disputa travada entre o eu e o outro

íntimo para resolver uma situação. Wallon considera que esses momentos de

diálogo com o socius lembram aqueles de diálogo da criança consigo mesma, os quais tendem a diminuir a partir dos três anos, mas não chegam a desaparecer completamente, apenas a reduzir os episódios de sua ocorrência, permanecendo secundário.

O socius, portanto, exerce um papel de extrema importância na vida do indivíduo, podendo revelar aquilo que o eu cuida para reprimir, refrear, omitir.

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