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Capítulo 3 – Família e escola: contextos de socialização política

3.4 Outros espaços de socialização política

Família e escola são importantes instituições de produção de socialização política, mas, sabidamente – e conforme apontado no primeiro capítulo –, não são as únicas. Vimos, anteriormente, como ocorreu a socialização familiar dos jovens militantes e de que maneira a escola incidiu sobre valores e comportamentos políticos já internalizados pelos jovens em suas famílias ou como produziu socialização política de jovens com incipiente socialização política familiar.

Alguns jovens, entretanto, tiveram outros espaços de socialização política, que configuraram disposições ao engajamento. Há o caso do jovem para quem a experiência religiosa foi a mais significativa para a formação de valores políticos e de disposições ao engajamento; tais disposições, adquiridas na igreja, foram posteriormente atualizadas na convivência com professores de um cursinho pré-vestibular comunitário. Há também um jovem para quem a socialização política e a construção de disposições para o engajamento ocorreu no mundo do trabalho. Por fim, uma jovem construiu disposições para o engajamento a partir de diversas e difusas experiências, que incluíram sua participação em uma ONG e em algumas atividades religiosas de diferentes denominações.

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Roberto informou que seus pais nunca se engajaram em qualquer atividade política, mas se tornaram muito praticantes de uma religião pentecostal, depois que problemas financeiros e de saúde afetaram seu pai. Eles teriam encontrado apoio nos membros dessa igreja para reorganizar a vida em novo endereço. Roberto disse que, até concluir o ensino médio, nunca se interessou por política, mobilizações reivindicatórias ou ações do gênero. Contou que, durante a escolarização regular, não teve qualquer experiência significativa, não apontou professores ou atividades escolares que o tivessem sensibilizado ou despertado seu interesse para a mobilização e o engajamento político.

Apesar de o jovem ter afirmado que sua formação política ocorreu durante a realização de um cursinho pré-vestibular, reconheceu que a experiência religiosa produziu um tipo de “formação política, né? - mas não pra concepção política que eu tenho hoje, né?”. Afirmou que a dinâmica da igreja de “um pastor falando e todos ouvindo... a falta de debate” não produziria mudanças sociais e ele queria ver o mundo diferente: “Não tinha debate, era muita música, muito choro e muita lição de moral, pouco debate, pouca participação das pessoas... mesmo que fosse pra contar as suas experiências. Sentia falta de poder me expressar, dizer o que sentia...

Ao iniciar um cursinho pré-vestibular comunitário na cidade onde residia, conheceu professores militantes e, embora nunca tivesse tido “acordo político com eles, eu fui muito influenciado pelo PT e pelo PCdoB nessa época”, partidos de filiação dos referidos professores. Descobriu, com esses professores, novas narrativas sobre a História Geral e do Brasil, que teriam, segundo ele, despertado uma visão mais crítica sobre a realidade. À medida que lia, estudava e dialogava com os novos professores, se afastava da igreja. O rompimento definitivo se deu com a entrada na universidade.

Ele não se engajou nos partidos de seus professores, mas foi através deles que percebeu que a vontade de se expressar poderia ser realizada por meio do engajamento partidário.

Os autores marxistas me foram indicados pelos professores, né? …fui buscando livros de todas as disciplinas e, na história, eu peguei um livro do Chico Alencar [ex militante do PT e um dos fundadores do PSOL] com outros 3 autores, que é a ‘História da Sociedade Brasileira’… e esse livro que me formou, junto com alguns outros autores da geografia, alguns outros materiais não tão formais, evangelistas, marxistas e publicações políticas que eu tive acesso (Roberto, PSOL)

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A possibilidade de conviver de maneira mais próxima e constante com esses professores, diferente da dinâmica estabelecida com os professores da escola regular, permitiu que Roberto estabelecesse um diálogo profícuo sobre política e sobre as dinâmicas sociais no Brasil. Foi nessa relação que o jovem atualizou as disposições construídas na prática religiosa, direcionando seu investimento para um partido político. A ideia da mobilização política se transformou em prática, depois que entrou na universidade e saiu em busca de partidos organizados onde pudesse se engajar.

Roberto não é o único jovem que relata uma experiência religiosa, mas é praticamente o único a dar peso significativo, em sua narrativa, à diferença entre a formação política produzida na Igreja e a abordagem política que encontrou em outros espaços, que o fizeram romper definitivamente com a prática religiosa. Também é o único jovem para quem o cursinho pré- vestibular representou um espaço bastante significativo para sua formação política e para o contato com pessoas ligadas a partidos políticos.

Tamara fez parte de uma ONG que lutava pela paz na região em que morava, no sertão nordestino. Além disso, experimentou duas diferentes práticas religiosas, que a instigaram a pensar sobre questões essencialmente políticas, tais como o direito ao aborto e o respeito à diversidade de opções sexuais. Foi inicialmente católica carismática, participante de um grupo de jovens e disse que foi a posição radicalmente contrária ao aborto, entre outras questões, que esmaeceu seus laços com a igreja. Ela disse que ainda não tinha uma posição fortemente favorável ao aborto, mas se sentia incomodada com o posicionamento da igreja católica. Conheceu pessoas de um centro espírita e passou a frequentá-lo. Mas, novamente, os temas do aborto e da homossexualidade se interpuseram na relação com a religião, dado que “a homossexualidade e o aborto no espiritismo são tratados como deformações”. As dissonâncias entre o discurso proferido pelas igrejas que frequentou e suas convicções, ainda que pouco formuladas, segundo a jovem, foram delineando o caminho que a levou ao engajamento partidário. Mas foi em palestras no centro espírita, proferidas por um médico militante do PT, que ela se interessou pela possibilidade de se engajar em um grupo político. O médico, apesar de seguir a doutrina da qual ela gradativamente se afastava, exerceu forte influência, ao apresentar a ela o partido como uma opção viável para a realização da vontade que expressava de se engajar, ao mesmo tempo em que percebia a religião como lugar pouco adequado às suas convicções.

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Roberto e Tamara experimentaram diferentes práticas religiosas, mas, para ambos, elas foram significativas para a formulação de comportamentos e atitudes políticas. Nos dois casos, a discordância com os valores religiosos estava presente e as disposições construídas a partir das práticas religiosas foram atualizadas, ou ressignificadas em outros espaços de convivência e interação – notadamente no cursinho e no próprio partido.

O último jovem a apresentar outras formas de socialização política, que vão além da familia e da escola, é Norberto. O jovem é natural do estado de Minas Gerais, de família de classe média, que costumava se mobilizar em épocas de campanhas eleitorais para debater e defender seus candidatos, em geral do Partido dos Trabalhadores. Norberto cursou ensino médio técnico e, ao concluir essa etapa de ensino, disse que resolveu experimentar sua independência, comunicando aos pais que se mudaria para o Rio de Janeiro. Os pais não teriam apoiado a ideia do filho e, por isso, não lhe deram qualquer apoio financeiro para a viagem, “e aí, quando eu saí de Belo Horizonte, minha mãe não queria muito que eu saísse de lá, então eu saí meio que na marra, né? Eu coloquei a cara mesmo e saí”. Segundo o jovem, ao não lhe apoiarem financeiramente, os pais esperavam demover o filho, ainda adolescente, da ideia de estabelecer residência no Rio. “Não foi escondido[que saiu de casa], mas foi meio assim: ‘ah, eu vou’. ‘Ah, você vai? Mas não vou dar dinheiro. Então não vai ter dinheiro’. É, tipo assim: ‘você vai, mas não vai ter dinheiro e vai voltar em um mês, dois meses’. Tipo assim ...”

Viveu em pensões da cidade, fez “bicos”, panfletagens e trabalhou como atendente de uma pizzaria. Segundo sua fala, foi a experiência na pizzaria que começou a construir nele suas disposições ao engajamento:

fiquei uns quatro meses na pizzaria e aí fui mandado embora, porque briguei com o cara lá, o cara pagava muito mal a gente, né? A gente ganhava mais com a gorjeta, do que... aí discuti com o cara e o cara me mandou embora. Aí que eu fui ser camelô... aí eu virei camelô (Norberto, PSOL)

A atividade de camelô era seguidamente reprimida pela polícia e pela guarda municipal. O jovem afirmou que perder mercadorias para o “rapa” da polícia era uma constante e que alguns ambulantes da região resolveram fazer algumas reuniões para tentar encontrar uma maneira de trabalhar sem ter tantos prejuízos e sem sofrer tantas pressões e perdas.

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Tinha vários problemas, perseguição dos guardas, os rapas, né? – dos guardas, apreensão de mercadoria, aí eu comecei a me organizar com eles. Aí foi minha primeira experiência com organização, foi com os camelôs. Porque eu não fiz movimento secundarista... (Norberto, PSOL)

Sobre a organização dos ambulantes, afirmou que

na verdade, a organização era muito fluida, não tinha aquela organização, era muito fluida. Era mais assim, o rapa vinha, acontecia alguma coisa, aí o pessoal se reunia, começava a falar, começava a contestar e, a partir daí, a gente começou a se organizar. Aí eu também comecei a me tornar uma liderança ali dentro. Eu até me lembro, do E., era um cara que também era uma liderança, começou a aparecer ali dentro e a gente começou a se organizar. E aí eu comecei a fazer o pré-vestibular. Eu trabalhava de camelô de dia e fazia o pré à noite. (Norberto, PSOL)

A mudança de vida, de acordo com os relatos do jovem, foi significativa – da saída da casa de classe média dos pais para o trabalho como camelô e a hospedagem em pensões de subúrbio. Mas a convivência com pais que declaravam voto e defendiam candidatos e, portanto, falavam de política, certamente construiu algumas disposições ao engajamento, que foram acionadas, mas amplamente reforçadas, na experiência de vendedor ambulante. O jovem não comentou sobre as possíveis razões para ele se tornar uma liderança entre os camelôs, mas é provável que sua maior escolaridade e habilidade verbal o tenham destacado entre os demais trabalhadores, que, em geral, são pouco escolarizados.

O cursinho pré-vestibular foi feito por meio de uma permuta entre o jovem e o estabelecimento de ensino: Norberto fazia propaganda do cursinho em sua barraca durante o dia e estudava de graça à noite. Prestou vestibular dois anos depois de estabelecer residência no Rio de Janeiro em duas universidades públicas, passou em ambas e escolheu uma, de acordo com facilidades de moradia e deslocamento. Cursado o primeiro semestre, ele deixou de ser camelô.

A experiência como trabalhador ambulante no subúrbio do Rio de Janeiro é inesperada para um jovem de classe média que tinha o apoio dos pais para seguir os estudos sem precisar trabalhar. Mas Norberto afirmou que, apesar de não se sentir oprimido ou pressionado pelos pais, seu projeto era de uma vida completamente independente, queria fazer “algo diferente” e “por conta própria”. Segundo ele, isso é um traço de sua personalidade.

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As narrativas dos jovens dão conta da formação de um mosaico de espaços e tempos de socialização que ocorrem na família e na escola por diferentes agentes – pais, tios, professores, colegas. Valores internalizados no âmbito familiar podem ser ressignificados, a partir das interações estabelecidas na escola, e o grupo de pares é importante para a construção do engajamento, assim como são alguns professores. Ou seja, as interações são significativas para os jovens, tanto quando ocorrem com os pares de idade quanto com adultos. As trocas de experiências entre pares e com adultos têm significados distintos e pesos também diferentes em cada um dos mosaicos que cada jovem constrói.

Assim, somente pelo rompimento com a clássica dicotomia que situa as razões do engajamento entre a estrutura e a estratégia, é que é possível explicar o engajamento dos jovens em partidos políticos. A complexidade dos fenômenos sociais que produzem o engajamento demanda uma possibilidade analítica que permita esclarecer os modos como se constroem as disposições, competências e possibilidades de engajamento (FILLIEULE, 2001; OLIVEIRA, 2005; SEIDL, 2009). A articulação das análises das disposições e das interações no presente também permite compreender a maneira pela qual uma disposição se transforma em ação concreta.

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Os jovens cujos pais eram militantes tiveram uma socialização política claramente influenciada pelos valores políticos dos pais e foram também os que acionaram suas disposições mais precocemente, ou seja, são os jovens de socialização política familiar os que mais cedo se tornaram militantes – com exceção de um jovem que iniciou cedo a militância, levado por acontecimentos escolares.

O grupo de jovens de famílias engajadas reúne as elites intelectuais, com exceção de um jovem de classes populares, mas os outros dois grupos – famílias porosas ao tema e famílias desengajadas – têm composição equilibrada entre camadas médias e populares, o que impede dizer que as famílias de uma ou outra origem de classes estariam mais propensas ao engajamento.

As experiências escolares são igualmente variadas, mas a presença de grêmios é um dos elementos significativos para os jovens entrevistados, no que diz respeito à aproximação com o tema da política e do engajamento. A maioria dos jovens que estudaram em escolas com grêmios começou a militar em partidos, através do movimento estudantil secundarista, ainda no ensino básico. Poucos foram aqueles que, tendo grêmio em sua escola, não se

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aproximaram dele. Os jovens de famílias engajadas iniciaram militância no grêmio estudantil quando ainda estavam no ensino fundamental e isso foi considerado precoce por eles próprios – vide Ademir, que disse ter sido uma surpresa eleger-se presidente do grêmio aos 13 anos, quando sua escola tinha alunos de ensino médio de até 17-18 anos de idade.

Como foi dito no primeiro capítulo, os estudos sobre a socialização política apontavam para a centralidade da família na transmissão de valores e comportamentos políticos às novas gerações, mas mudanças sociais impuseram uma nova abordagem do tema. A centralidade da escola e da família já não dava mais conta de explicar os fenômenos da juventude que se mobilizava. Para alguns jovens, a socialização familiar e escolar teve papel muito sutil, com centralidade para o grupo de pares ou experiências de trabalho ou práticas religiosas. Maurer (2000) assinala que a centralidade da família e da escola ainda persiste nos estudos sobre socialização política pela dificuldade de mensuração dos efeitos cognitivos das mídias ou do grupo de pares, mas esta influência é inegável, especialmente quando as formas clássicas de socialização não permitem explicar as razões para o engajamento. E jovens como Tamara e Roberto deixam clara a influência de outros mecanismos de socialização.

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Capítulo 4 –Tornar-se militante: a experiência militante e o tempo

Os jovens entrevistados para a pesquisa têm idades entre 21 e 29 anos. A diferença de idade parece pouca, mas as experiências de cada um diferem bastante e se relacionam com o tempo de engajamento. Há tempos diferentes de militância, que variam de 6 meses a 14 anos62. Gênero, classe e disposições ao engajamento são clivagens que perpassam toda a análise da experiência militante, mas neste capítulo a dimensão do tempo se torna central. O início da militância ainda no ensino fundamental caracteriza percursos mais longos na militância, mas também jovens que iniciaram militância já na universidade têm percursos militantes de longa duração.

O tempo maior ou menor de militância não determina, contudo, intensidade maior e menor, respectivamente, de militância. Poderíamos esperar que jovens de militância mais longa tivessem, necessariamente, um investimento ou uma militância mais intensa e que os militantes mais recentes tivessem menor investimento, mas veremos nas narrativas dos jovens que pouco tempo de militância também pode ser sinônimo de grande investimento militante. No capítulo 3, os jovens foram agrupados e apresentados de acordo com a socialização familiar e escolar, em grupos que levavam em conta o engajamento de suas famílias. Neste capítulo, os agrupamentos são distintos e, ao abordar o início do engajamento e sua relação de duração, veremos como a variável tempo incide sobre as práticas militantes.

Ainda que o tempo não seja necessariamente um determinante de intensidade de militância, o agrupamento dos jovens seguindo critérios de tempo ajuda a perceber outros fatores que proporcionam maior ou menor investimento, tais como espaços de militância, transições no ciclo de vida estudantil e profissional. Por isso, foram consideradas militâncias longas aquelas que já duram mais de 5 anos – tempo possível para concluir diferentes níveis de escolaridade e, portanto, diferentes processos de transição no ciclo de vida: entrada no ensino médio, entrada no ensino superior, inserção no mercado de trabalho, continuidade dos estudos em nível de pós-graduação. As militâncias curtas se definem por tempo mais curto, ainda que também percorram alguns momentos distintos da escolarização.

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Para adolescentes e jovens em idade escolar, o tempo é percebido e vivido com mais intensidade, as mudanças ocorrem rapidamente. Por isso, a passagem de cada ano já poderia ser considerada significativa. Mas, o que se pretende com o agrupamento dos jovens em militâncias longas e curtas é captar diferentes momentos da militância que se associam com diferentes momentos da vida.