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Pode-se afirmar que a ausência de distinção entre a esfera do interesse privado e a esfera do interesse público constitui um dos traços mais característicos do sistema de autoridade tradicional patrimonialista. Na sociologia weberiana, corresponderia a um tipo de dominação tradicional caracterizada pelo fato de o soberano organizar o poder político de forma análoga a seu poder doméstico. Tornando a definição mais extensa, seria a relação estrita do poder da Corte (do Governo) com os amigos do soberano ou do príncipe, e não com o povo liderado.

Para Holanda (2006), ao utilizar-se do modelo weberiano, a indistinção decorre do sistema patriarcal, considerando que a sociedade colonial brasileira teve sua base fora dos meios urbanos, cujos reflexos ainda existem até hoje. Nesse sentido, o nascimento de uma “espécie” de burguesia urbana no Brasil não eliminou as características do patriciado rural. Pelo contrário, a norma de conduta ideal desse patriarcalismo invadiria todas as classes como padrão comum de comportamento. Tal mentalidade invade, assim, as cidades e conquista todas as profissões, inclusive, no tocante ao próprio Serviço Público, cujas dificuldades e mazelas devem ser atribuídas às mesmas causas, como assinala:

[...] num país que, durante a maior parte de sua existência, foi terra de senhores e escravos, sem comércio que não andasse em mãos de adventícios ambiciosos de riquezas e de enobrecimento, seria impossível encontrar uma classe média numerosa e apta a semelhantes serviços [...] (HOLANDA, 2006:87).

Essa indistinção ocorreu em função do sistema de dominação patriarcal, que não permitiu que não se criassem indivíduos, de certa forma, autônomos. Separar o indivíduo da comunidade doméstica seria libertá-lo, na visão do autor, das “virtudes” familiares. Essa libertação, que ocorre via educação, constitui condição primária e obrigatória a qualquer adaptação à vida prática. Por outro lado, onde se prosperam e se assentam bases muito sólidas da idéia de família, principalmente a de tipo patriarcal, a evolução da sociedade segundo critérios modernos tende a ser precária. A dificuldade de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social está exatamente na adoção de critérios que são, por excelência, “antifamiliares”: o espírito de iniciativa pessoal e a concorrência entre os cidadãos.

[...] os traços identificáveis de uma sociedade de homens livres e de inclinação cada vez mais igualitária são marcados por aqueles que, progressivamente, liberam-se, ainda no Império graças aos estabelecimentos de ensino superior, em especial os jurídicos, que formaram homens públicos capazes, libertando- os progressivamente dos laços caseiros [...] (HOLANDA, 2006:157).

De fato, considerando que o Estado racional burocratizado e o mercado competitivo são as instituições estruturantes do sistema social capitalista, sua base passa a ser estabelecida a partir de relações impessoais e da própria separação entre o que seja público e privado, em cuja base se encontra o indivíduo, como agente principal desse cenário. É nesse sentido que, no domínio do mercado como instituição fundamental do mundo moderno, fez-se prosperar a noção e a efetiva separação entre a esfera particular e a esfera pública.

No Brasil, entretanto, conforme afirma Holanda (2006), onde imperou o tipo primitivo de família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização acabou por acarretar um desequilíbrio social, que permanece até hoje. Um dos desequilíbrios relaciona-se com a dificuldade de os detentores de posições públicas compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Nesse sentido, a gestão política apresenta-se como assunto de interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios recebidos relacionam-se a direitos pessoais dos funcionários, e não a interesses objetivos, como ocorre no Estado burocrático. As escolhas, segundo o autor, por aqueles que irão exercer funções públicas fazem-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos. Assim, no que tange à divisão das funções e à própria racionalização, não são capazes de transformar o sistema patrimonialista, que, embora possa adquirir traços burocráticos, em essência, difere deles.

A dificuldade dessa separação, na visão de Holanda (2006), está relacionada com a idéia de que laços familiares, representados não somente pela relação consangüínea, mas também por razões de consideração afetiva, funcionam como um critério de inclusão para um grupo específico, obstruindo a idéia da representação do indivíduo como um elemento central do sistema social. Isso significa que o indivíduo acaba sendo subordinado à hierarquia familiar, que funciona como elemento totalizador, contrapondo-se à noção do indivíduo político, sujeito moral, consciente e racional, dotado de poder e influência diante dos desígnios da vida, ou

seja, aquele que tem livre arbítrio e responsabilidade individual, cujo ápice histórico aconteceu no período da Reforma Protestante (VELHO, 2004: 45).

Partindo-se da análise de Velho (2004), é possível verificar certa fragilidade ao se transpor valores do patriarcalismo rural aos centros urbanos e às diversas classes de profissionais, porque os atores, ao se moverem em diversos ambientes sociais,26 característicos dos grandes centros urbanos, coexistem com diversas outras formas de conduta. Nesses ambientes, há um conjunto de situações particulares, e a fragmentação de papéis acaba criando situações particulares de comportamento e conduta. O desempenho de uma série de papéis no cotidiano da grande metrópole, em espaços física e espacialmente separados, as transformações na rede de parentesco e vizinhança e a nuclearização da família são algumas variáveis que atuam para “destotalizar” o indivíduo, colocando-o como centro e manipulador dos sistemas em que atua. Contrapondo-se em ambientes com círculos fechados e rede de relações restritas, que, no caso, é o patriarcalismo rural, cria-se uma homogeneidade em termos de comportamento a ser adotado.

Nesses contextos, persiste a tensão entre o indivíduo e as diferentes esferas da vida social, misturando-se e entrando, certamente, em conflito. Essa interdependência de “mundos” e a própria fluidez de fronteiras fazem com que o indivíduo apresente certa flexibilidade, que exige capacidade de apoiar-se em espaços diferentes, com uma capacidade simbólica de mudança.

Velho (2004) destaca, entretanto, que a sociedade brasileira fornece situações complexas, nas quais o indivíduo se move ao mesmo tempo dentro de uma lógica “individualista” e, em certas situações, dentro de uma lógica hierárquica, revelando situações emblemáticas que estão imbricadas num mesmo contexto social. Hierarquia, representada pela família, e individualismo apresentam-se como ordens simbólicas, alternativas ora complementares, ora contraditórias.

26 Da Matta (1997: p. 32) salienta que a sociedade brasileira se singularizava pelo fato de ter muitos espaços e

Não obstante, Velho (2004) destaca a tensão existente entre a individualização e o que ele denomina de desindividualização, representada pela família, que acaba sendo o elemento totalizador, colocando-se num contexto mais amplo, como assinala:

[...] a manipulação de nome, o nome “artístico”, a supressão de sobrenomes, os apelidos etc., são formas de enfatizar ou marcar a individualidade, de sublinhar a particularidade. Por outro lado, a pergunta ainda muito comum em certos segmentos da sociedade brasileira – “Qual é sua família?”, “De que família você é?”, “É de boa família?” – são formas de mapear, situando o agente empírico dentro de uma categoria mais ampla e significativa [...] (VELHO, 2004:25-26).

Esse contexto demonstra que a relação público e privado, dentro do universo da Administração Pública, baseia-se numa só estrutura, deixando de se opor dialeticamente, tornando-se indecidível, enlaçando-se continuamente para permitir uma passagem ininterrupta entre os dois “lados”. Evidentemente, esses processos são sempre políticos, pois implicam uma relação de poder e de influência, e são, acima de tudo, conscientes, como pode ser verificado pelos seguintes depoimentos sobre essa relação:

[...] não existe confusão entre o que seja público e privado. Eles [políticos] trazem todas as demandas deles. Eles apresentam aqui um programa público ou privado com a mesma legitimidade. A gente é que tem de tentar filtrar. Isso não é fácil, porque existe uma interdependência entre os poderes [...] (Depoimento do Secretário Municipal).

[...] não..não..eu tenho certeza de que o juiz tem bastante consciência disso [distinção entre o público e privado]. O Juiz, quando cometesse algum desvio, devia ter uma punição mais exemplar, porque ele conhece as leis, as regras de comportamento. Agora, essas notícias que a gente ouve que as pessoas confundem o público com o particular, que tratam o público como se fosse coisa sua, graças a Deus, pelo menos, a gente não percebe aqui com o Judiciário, em regra. O Juiz tem bastante noção do que é público e do que é privado [...] as pessoas quando chegam a certos cargos, elas tem bastante noção de como elas devem ou não proceder. Acho que isso acontecer é má fé pública, na minha opinião [...] (Depoimento de um desembargador).

As relações de poder e de família ficam mais evidentes a partir do depoimento de uma funcionária, pertencente a um nível hierárquico mais inferior.

[...] a ...muito...a maioria [dos juízes] mistura [público e privado]por exemplo, tem uma velha história..até quando eu estudava na faculdade se dizia isso. O Juiz pensa que é Deus, o Desembargador tem certeza que é! Então, eles estão acima do bem e do mal, fazem aquilo que querem e bem entendem. Muitos lá, utilizam os carros oficiais para levarem as mulheres para fazerem compras, para fazer exame, entendeu? Alguns até utilizam o carro, mas não usam a gasolina do Tribunal, que é para numa hora em que alguém reclamar e dizer que o Juiz ou o Desembargador tal está usando o carro para fins particulares ele diz: mas a cota de gasolina está intacta, eu boto a gasolina do meu dinheiro. Mas acontece que o carro é disponibilizado para ele e não para ser utilizado pela família dele. Só que eles confundem. Eles acham que a coisa está ali para atender eles também. Quem tem o poder de fazer o controle, usa o carro também para fins particulares. Como é que pode: eu, juíza, sou errada e vou avaliar disciplinarmente o meu colega juiz que faz a mesma coisa que eu faço? Eles têm nítidas [a distinção entre público e privado] na cabeça deles e para exigir dos outros..dos outros..e não para aplicar para eles, na própria conduta deles, têm muitos que até não fazem, mas a maioria faz..a maioria faz.[...] (Depoimento de uma funcionária do Tribunal de Justiça).

Trata-se de uma forma de enlaçamento de um círculo fechado, restrito à vida privada e familiar, às demais esferas da vida social, que, no caso é, eminentemente, a pública. Tal ponto, por sua vez, pode ser exemplificado pela dificuldade do governador do Ceará, Cid Gomes, ao fretar um jato para uma viagem oficial à Europa, em opor-se ao pedido de sua mulher:

[...] se eu cometi alguma falha, e por isso peço desculpas, sempre procurei agir de boa fé, foi ter atendido a um pedido de minha mulher para levar sua mãe no avião. Por isso, eu peço desculpas. Embora quero deixar bem claro que não existe nenhuma lei, norma, regra que impeça esse tipo de procedimento [...] (Declaração Cid Gomes, em 28/04/08). 27

Vale a pena também citar a declaração do Presidente Luís Inácio da Silva, que compartilhando os mesmos valores simbólicos e culturais, revela, mesmo nos dias atuais, a dificuldade de separação entre a esfera pública e privada.

[...] a gente não pode permitir que um companheiro da qualidade do Cid seja mostrado a nível nacional apenas porque atendeu a um pedido da mulher para levar sua mãe [...] sei o que é isso e você tem a minha solidariedade [...] se, em vez de sua sogra, você tivesse levado um empresário, não teria tido problema [...] (Declaração do Presidente Luís Inácio da Silva, em 30 abr. 2008).28

27 Disponível em http://www.oglobo.com/pais/mat/2008/04/28. Acesso em 9 ago.2008.

Embora esse comportamento não se generalize, em círculo fechado da administração, revela uma singularidade das relações existentes na Administração Pública, que supera a simples indistinção entre o público e privado. Trata-se de valores simbólicos ainda bastante enraizados na prática organizacional brasileira, sugerindo que possuem plasticidade suficiente para sobreviver em diversos ambientes, encobrindo, na realidade, relações primárias de poder e proteção.

[...] a gente não pode negar que estão criando mecanismos para evitar abusos políticos no País. Ainda falta muito para chegar lá [...] é uma cultura decorrente do sentimento de impunidade. O dinheiro público não é seu, ninguém vai saber, todo mundo sempre usou, a população não tem acesso a esse tipo de informação [...] (Depoimento de uma Juíza).