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PERFORMANCE E MÚSICA

O PALCO COMO TELA

João Cristóvão Leitão

A comunicação O Palco como Tela pretende reflectir so- bre as diferentes dinâmicas relacionais que podem ser celebradas entre a disciplina artística que é o teatro e os meios e os conteúdos audiovisuais que, por vezes, alguns espectáculos mobilizam. Para tal, assumem-se, enquanto premissas primeiras, os pensamentos de- senvolvidos por Philip Auslander, Susan Sontag, André Bazin ou Greg Iesekam.

É, então, afirmado que o fenómeno teatral interage com os meios e os conteúdos audiovisuais de três modos dis- tintos, sendo a primeira dessas mesmas interacções de ordem documental, por meio da qual os últimos (meios e conteúdos audiovisuais) são equacionados enquanto meras ferramentas documentais do primeiro (fenóme- no teatral):

The documentary category represents the tra- ditional way in which the relationship between performance art and its documentation is under- stood. It is assumed that the documentation of the performance event provides both a record of it through which it can be reconstructed […] and evidence that it actually occurred. The connec- tion between performance and document is thus thought to be ontological, with the event preceding

Seguindo a tipologia anteriormente identificada, a imagem em movimen- to parece conseguir, de uma forma capaz e fidedigna, dar resposta a uma intrínseca e evidente necessidade de todas as formas artísticas efémeras (como é não só o caso do teatro, mas também os casos da dança ou da per- formance): a necessidade de as mesmas serem perpetuadas e confirmadas no tempo, isto é, de as mesmas serem dadas a conhecer a espectadores (lato

sensu) que não as presenciaram in loco. Deste modo e no limite, tal relação

documental possibilita, pela primeira vez, a completa inscrição das artes performativas na História da Arte.

Contudo, poder-se-á asseverar que o teatro, enquanto prática artística e ob- jecto de estudo, sempre deteve uma dimensão histórica, na medida em que inúmeras são as reflexões que, de modo sistematizado, se consubstanciam na disciplina que é a História do Teatro. No entanto, a dimensão histórica do teatro prévia ao surgimento da imagem em movimento apenas permitia estudar esta práxis artística de uma forma altamente mediada – através, nomeadamente, da análise de imagens (manualmente executadas) relativas aos fenómenos teatrais, do perscrutar de figurinos, de adereços, de cená- rios e das estruturas arquitectónicas dos espaços de apresentação ou do exame dos múltiplos textos que constituem a dramaturgia mundial. Não obstante, tal estudo revelava-se, de modo manifesto, insuficiente, uma vez que, à data, não era, de modo algum, possível ter acesso ao evento teatral ele mesmo (leia-se espectáculo), negligenciando-se, por conseguinte, tudo aquilo que é o aspecto visual do teatro (opsis1). Esta insuficiência justifica,

legitimamente, a, até então, usual (ainda que errónea) tendência para conce- ber a História do Teatro enquanto fiel equivalente da História da Literatura Dramática.

Desta feita, conclui-se que a relação documental passível de ser estabelecida entre as práticas teatrais e as práticas audiovisuais não só soluciona – ao permitir que um objecto performativo possa ser analisado após a sua real

ocorrência – um problema teatral de natureza histórica, mas também man- tém uma separação evidente entre aquilo que é a matéria teatral e aquilo que é a matéria audiovisual, já que, no contexto aqui em análise, a imagem em movimento é utilizada, de modo exclusivo, enquanto documento, isto é, enquanto um meio/produto independente do e pós-existente ao espectáculo que documenta, e através do qual é, unicamente, permitido aceder a uma realidade passada.

Uma segunda interacção possível de ser estabelecida entre as duas facções que compõem o binómio aqui em exame poder-se-á apelidar de cinemato- gráfica. Tal interacção pressupõe, contrariamente à relação documental já caracterizada, a equação dos meios e dos conteúdos audiovisuais, enquanto produtos edificados segundo um vocabulário especificamente cinematográ- fico. Os objectos videográficos resultantes desta categoria, porque incluídos no seio do contexto dramatúrgico (leia-se espectáculo), não se apresentam enquanto realidades externas ao fenómeno teatral – muito embora os seus processos de produção e de concepção o sejam (na medida em que são objec- tos pré-feitos) –, uma vez que aqueles integram este último.

O recurso a esta segunda interação resulta, possivelmente, da diferença, identificada por Susan Sontag (1966), existente entre aquilo que é a matéria e a especificidade da gramática teatrais e aquilo que é a matéria e a especi- ficidade da gramática cinematográficas:

If an irreducible distinction between theatre and cinema does exist, it may be this. Theatre is confined to a logical or continuous use of space. Cinema (through editing [...]) has access to an alogical or discontinuous use of space. In the theatre, people are either in the stage space or “off.” When “on,” they are always visible or visualizable in contiguity with each other. In the cinema, no such relation is necessarily visible or even visualizable. [...] The theatre’s capacities for manipulating space and

Deste modo, o teatro – circunscrito a uma continuidade espácio-temporal, impossível de ser, formalmente, contrariada, dado que os eventos teatrais decorrem, por norma, num espaço concreto (o do palco) e num tempo especí- fico (o da duração do espectáculo) – convoca a imagem em movimento (bem como os seus processos de montagem) para construir um espaço-tempo alógico e descontínuo, ou seja, para ensaiar novas possibilidades dramatúr- gicas e cénicas, como, por exemplo, o instaurar de acções paralelas àquelas que ocorrem em palco, as quais, não raras vezes, foram captadas em locais dissemelhantes daquele que é o do espaço de apresentação e, por vezes, per- formadas por indivíduos diferentes dos que se apresentam em cena.

Assim, verifica-se que esta segunda interacção, ainda que perpetuadora de uma separação evidente entre a matéria teatral e a matéria audiovisual – na medida em que os mecanismos cinematográficos são mobilizados com o intuito de desempenhar as funções que são próprias do seu vocabulário –, se revela capaz de estabelecer relações entre ambas, já que o vídeo é, em termos cénicos, integrado no próprio espectáculo, sendo, por isso, elevado à condição de opção de encenação.

Por último, é legítimo conceber uma terceira interacção celebrável entre o fenómeno teatral e os meios e os conteúdos audiovisuais, a qual detém uma natureza performativa. Esta interacção – presente, por norma, em espectáculos detentores de um pendor pós-dramático – “[...] analyses, re- flects and deconstructs the conditions of seeing and hearing in the society of the media” (Lehmann, 2006: 167). Tal deve-se ao facto de esta interacção perspectivar os meios e os conteúdos audiovisuais enquanto elementos con- ceptuais criativos especificamente teatrais, isto é, enquanto elementos tão teatrais quanto os mais seculares e os mais ortodoxos, como são o texto dramático, os actores, os cenários ou os figurinos. Assim e segundo esta tipologia performativa, verifica-se, por parte do teatro, uma apropriação dramatúrgica e conceptual do vocabulário dito audiovisual, de que o espec- táculo teatral, indubitavelmente, depende (uma vez que este último apenas

existe enquanto tal através do primeiro). Isto porque, numa era caracteriza- da por uma congénita sociabilização mediatizada e tecnologizada, torna-se impossível ao teatro não se reinventar:

What I mean is that the theatre must take account of how technolo- gy (from the phone and the walkman upwards) has rewritten and is rewriting bodies, changing our understanding of narratives and places, changing our relationships to culture, changing our understanding of presence (Etchells, 1966: 97).

Neste contexto, urge recuperar a diferença estabelecida por Bazin(1958) entre aquilo que é o fenómeno cinematográfico e aquilo que é o fenómeno teatral: se, por um lado, é definido que o cinema se apresenta enquanto a arte do real e do autêntico – na medida em que o “[...] realism [...] is [...] the essence of the cinema” (Bazin, 1958: 86), isto é, na medida em que o cinema se constrói a partir de imagens retiradas do real –, por outro, o teatro é, por defeito, assumido enquanto a arte da mentira, da ilusão e do artifício – já que o mesmo pressupõe, segundo a perspectiva baziniana, a recriação (leia-se representação) da realidade. Tal oposição é ainda transposta para o modo como a matéria cinematográfica e teatral são recepcionadas pelos espectadores: se o objeto cinematográfico é dado a conhecer e é experien- ciado sob a forma de produto final (como um todo) – extinguindo, através do processo de montagem, a anacronia e o artifício que lhe dão origem, ou seja, todos os diferentes processos que dão forma ao todo –, o produto teatral é dado a conhecer e é experienciado sob a forma de processo – já que tudo o que o compõe, dada a sua inevitável continuidade espácio-temporal, ocorre diante do espectador, sem que haja ensejo para elipses ou omissões. De fac- to, “[...] watching a film, we watch something that has happened in the past, whereas, watching a play, we watch something that unfolds in the time of the performance – even if it represents events from the past” (Giesekam,

Consequentemente, e dado tudo o que foi enunciado, importa perceber qual o modus operandi inerente à dinâmica relacional de pendor performativo anteriormente identificada, ou seja, perceber de que modo é que o voca- bulário especificamente cinematográfico é apropriado e incorporado pelo fenómeno teatral. Tais apropriação e incorporação parecem partir e benefi- ciar não só do argumento baziniano já expresso, mas também da oposição já nomeada: os espetáculos teatrais devedores da tipologia relacional aqui em análise descartam os produtos cinematográficos finalizados (característicos de uma interacção cinematográfica), para mobilizarem, por oposição e de modo performativo, os processos cinematográficos que dão origem a esses mesmos produtos.

São, assim, expostos em cena e postos ao serviço do teatro todos os arti- ficiosos mecanismos cinematográficos (leia-se todo o fazer fílmico) que a imagem cinematográfica tende a não revelar e que, simultaneamente, per- mitem ao cinema ser considerado a arte do real. Mecanismos inerentes aos processos de pós-produção e de montagem cinematográficas, bem como questões relacionadas com o fora de campo imagético ou com os métodos de sonorização da imagem fílmica são não só colocados em palco, mas, também, teatralizados, sendo os mesmos forçados a discursar, interna e conceptualmente, com a matéria teatral.

Neste sentido, atente-se nos seguintes espectáculos:

1. O Lamento da Branca de Neve2 (2012), de Olga Mesa, onde toda a maté-

ria performativa é, num primeiro momento, registada por diversos dispositivos de captação fílmica e sonora, para, aquando do término da performance live, ser, a partir do material audiovisual anteriormente cap- tado, montada e projectada uma versão fílmica dessa mesma matéria; 2. Day for Night (2014), de Cão Solteiro e André Godinho, onde o espaço tea-

decorrem as filmagens que, futuramente, originarão um objecto de na- tureza exclusivamente cinematográfica: a curta-metragem O Fim da Fita (2014), de André Godinho;

Imagem 1: registo fotográfico do espectáculo Day for Night (2014), de Cão Solteiro e André Godinho.

3. Void Story3 (2009), de Forced Entertainment, onde imagens virtuais são,

continuamente, projectadas, sendo as mesmas sonorizadas, em palco, por quatro performers: dois que dão voz às personagens presentes nas imagens projectadas e outros dois que, com o auxílio de material técnico especializado, produzem, em tempo real e diante do espectador, os efei- tos sonoros exigidos pela narrativa urdida; e

editada e transmitida em tempo real num outro espaço de apresentação, originando-se, assim, o desenrolar paralelo de duas narrativas distintas: uma teatral e outra cinematográfica.

“[...] Eventually film and/or video contributes to a dramaturgy that moves away from telling stories of a conventional kind to tell ‘impossible’ stories or question the way stories and characters are constructed” (idem.: 247). Tal é comprovável através de inúmeros fenómenos teatrais contemporâneos, através dos quais o carácter artificial, anacrónico e processual intrínseco ao fazer cinematográfico é, inquestionavelmente, performado. Conclui-se, portanto, que o teatro não deixa de ser teatro por recorrer ao cinema. Muito pelo contrário: o teatro, ao se revelar capaz de dotar de performatividade as operações que, usualmente, se pensam enquanto operações estritamente cinematográficas, não mais faz que afirmar a sua natureza e o seu estatuto teatrais.

Referências Bibliográficas

Aristóteles, (s.d.). (2008). Poética. Sousa, E. (Trad.). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

Auslander, P. (2007). On the Performativity of Performance Documentation. In B. Clausen (Ed.), After the Act: The (Re)Presentation of Performance

Art. Vienna: Museum Moderner Kunst Stiftung Ludwig. Pp. 21-33.

Bazin, A. (1967). What is Cinema? – Volume 1. H. Gray (Trad.). Berkeley, Los Angeles and London: University of California Press.

Etchells, T. (1999). On Performance and Technology. In T. Etchells, Certain

Fragments. London: Routledge. Pp. 94-97.

Giesekam, G. (2007). Staging the Screen: The Use of Film and Video in Theatre. New York: Palgrave Macmillan.

Goldberg, R. (2012). A Arte das Ideias e a Geração dos Media – 1968 a 2000. In R. Goldberg, A Arte da Performance: do Futurismo ao Presente. J. L. Camargo & R. Lopes (Trads.). Lisboa: Orfeu Negro.

Lehmann, H-T. (2006). Postdramatic Theatre. K. Jürs-Munby (Trad.). London and New York: Routledge.

Sontag, S. (1966). Film and Theatre. The Tulane Drama Review, Vol. 11, nº 1 (Autumn). Pp. 24-37.

Referências artísticas

Forced Entertainment (2009). Void Story, [espectáculo de teatro]; Jatahy, C. (2014). E se elas fossem para Moscou?, [espectáculo de teatro]; Mesa, O. (2012). O Lamento da Branca de Neve, [espectáculo de dança]; Companhia Cão Solteiro & Godinho, A. (2014), Day for Night, [espectáculo