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PERFORMANCE E A IMAGEM EM MOVIMENTO

PERFORMANCE E MÚSICA

PERFORMANCE E A IMAGEM EM MOVIMENTO

Renata Ferraz

Introdução

Em A Morte do Autor, Barthes (1987: 69) diz-nos que “o es- critor só pode imitar um gesto sempre anterior, jamais original; seu único poder está em mesclar as escrituras, em fazê-las contrariar-se umas pelas outras, de modo a nunca se apoiar em apenas uma delas”. Na tentativa de explicitar que a voz daquele que trabalha com a criação é apenas uma dentre outras e, desse modo, evidenciar os mecanismos pelos quais uma obra pode ser construí- da, alio-me a três filmes pretéritos, realizados por mim em cumplicidade com obras de outros artistas.

Faz algum tempo que penso sobre os possíveis pontos de contato entre uma série de filmes curtos que realizei ao longo dos últimos sete anos. Três dos seis filmes da série constituída por Permuta (2009), Corpo Sem Órgãos (2012), Another Place (2013), EU- European Union (2013),

EVO (2015) e Ádito (2016) serão detalhados neste texto.

A escolha referente aos três filmes deve-se a uma ca- racterística que os tornam assemelhados: só existem porque foram criados a partir de obras produzidas ante- riormente por outras e outros artistas que usualmente não trabalham com a imagem em movimento. Ademais,

É importante ainda notar que cada filme aqui apresentado nunca pretendeu ser um registo das peças artísticas. Antes disso, buscou ser uma tradução que, apesar de manter um vínculo próximo ao original, se desprende dele (Benjamin, 2008: 53). O meu interesse esteve, pois, focado no gesto experi- mental de criar uma narrativa diferente da proposta pela obra original, mas que se utilizou da materialidade da mesma como estrutura prevalecente para a construção fílmica.

Isto posto, os três trabalhos em questão, Corpo Sem Órgãos (2012), Another

Place (2013), EU- European Union (2013,) partem de um diálogo, de uma “du-

pla distância, um duplo olhar (em que o olhado olha o olhante)” (Huberman, 2005: 159), numa tentativa de assumir o meu papel de espectadora antes mesmo de pensar em realizar, de modificar a mim mesma ao ser impactada por outras obras, e só assim, ser capaz de construir tais filmes.

1. A espectadora-realizadora

Entendo o termo espectadora-realizadora como a junção das duas funções basilares presentes no processo de criação dos três filmes analisados aqui. Tal processo foi gerado por um atravessamento, ou seja, fui surpreendi- da por um objeto criado por outra ou outro artista e o fascínio gerado por tal encontro tornou-me “um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas, como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lu- gar” (Bondía, 2002). Sem ter planeado qualquer um dos três trabalhos até defrontar-me com as esculturas de ferro do artista visual Antony Gormley (Another Place, 2013), com os movimentos corporais da bailarina e perfor-

mer Valentina Parravicini (Corpo Sem Órgãos, 2012) e com as personas da performer Dani d’Emilia (EU- European Union, 2013), o processo de constru-

ção aconteceu à semelhança da ideia de Heidegger sobre “permitir sermos interpelados por aquilo que nos toca, submetendo-nos a tal acontecimento” (1987: 143).

A experiência de me tornar espectadora das obras desse e dessas artistas antes de aventurar-me a realizar qualquer um dos filmes foi o ponto de par-

com outras, interpretá-la a partir de experiências pretéritas e, por isso mes- mo, tornar-me criadora dos filmes em questão. Tal ímpeto de criação foi alimentado por algo comum a todos os filmes: a inquietação de modificar qualquer coisa na obra de outrem.

Portanto, o que me coube nesses filmes, uma vez que ocupava o papel primeiro de espectadora, foi fazer um trabalho de tradução, gerada por tra- duções que tais artistas fizeram de outras obras e experiências anteriores. Como observa Rancière em seu Espectador Emacipado “[o espectador] tra- duz signos por outros signos e que procede por comparações e figuras para comunicar as suas aventuras intelectuais e compreender aquilo que uma outra inteligência trata de comunicar” (2010: 19).

Este tipo de processo de tradução de que fala Rancière implica numa auto- ria. Com maior ou menor grau, o tradutor imprime seus saberes pretéritos, compara experiências, interpreta o texto que traduz. Dessa forma, eu alme- java estabelecer a intimidade com o trabalho de outrem, na medida em que as minhas imagens em movimento nada mais pudessem significar para a obra originária (Benjamin, 2008: 53), embora buscasse uma intenção qual- quer que abarcasse o eco do original (idem: 59)1.

Graças a esse processo de tradução, ao deparar-me com Another Place, de Antony Gormley, In, de Valentina Parravicini, e com as personas de Dani d’Emilia pude tornar-me realizadora dos três filmes em questão. Encarar a criação dessa maneira, como uma tradução, possibilita um deslocamento da figura do artista como um imperador da originalidade, como um gênio que cria sozinho e a partir do nada para o de um trabalhador que, como tantos outros, necessita de matéria prima, de outras ferramentas, de tempo, de dedicação e de outras mãos para executar um projeto.

2. A obra-guião

Quando em contato com obras de outrem que lhe atravessam, a/o artista pode endereçar-se a elas, ao menos, de três formas distintas: imitando-as, dialogando com elas, ou contestando-as. O que ocorreu nos três filmes aqui em causa foi um entrelaçamento entre essas três direções.

É frequente que espectadores e artistas, ao entrarem em contato com um trabalho artístico, desejem ter tido elas/eles a autoria daquela obra. Da mes- ma forma, não raro, sou visitada por pensamentos que me questionam as razões de não ter sido eu a criadora de uma ou outra obra. Foi o ímpeto de repetir o gesto de outrem, o primeiro endereçamento oferecido à constru- ção dos três trabalhos explicitados neste texto.

Por esse motivo, decidi que cada uma das obras faria parte constitutiva dos filmes, um guião, não no sentido cinematográfico do termo, mas uma espé- cie de conselheiro responsável por indicar o percurso que deveria seguir nas etapas de filmagem e montagem. Antes de elaborar um argumento sobre o filme que seria feito, deixei-me invadir pelas imagens e sons gerados pela obra do outro para só num momento pospositivo construir uma narrativa com o material captado.

Se os filmes abordados aqui partem da vontade de reproduzir uma outra obra, também se distanciam dessa ideia ao longo do processo de construção fílmica. Dessa forma, na medida em que estabeleço um diálogo com a obra do outro/outra, as imagens criadas por mim passam a ter a característica dos seres intermediários, a saber, ser e não ser simultaneamente aquilo que pretendem representar. Ou, como pontuou Stoichita ao falar sobre o simu- lacro como um “objeto feito, um ‘artefacto’, que, no máximo, pode produzir um ‘efeito de semelhança’, ao mesmo tempo que mascara a ausência de um modelo por meio de um excesso da sua própria ‘hiper-realidade’” (2011: 10). A comunicação estabelecida com a obra originária gerou, portanto, uma obra que já não pertencia só a ele/ela ou a mim, mas algo que se encontrava entre a performance e a imagem em movimento. É importante notar que tal

fato só se tornou possível na medida em que contrariei a obra da outra ou outro artista e a minha própria. Ou seja, propus como método de criação um jogo incessante de remodelação dos filmes em questão, a partir da ruptura de hierarquias entre a obra originária e as imagens em movimento criadas por mim.

Se é comum aos três filmes abordados aqui o fato do meu papel de especta- dora vir antes do de realizadora, vale pontuar que cada filme, embora possua o mesmo ponto de partida, apresenta algumas especificidades. Apresento, pois, o percurso adotado para a construção de cada um deles.

3. Sobre os processos de criação 3.1 Another Place (2013)2

Começo por Another Place (2013), obra homônima a do artista britâni- co Antony Gormley3, pois foi o primeiro dos três filmes a ser realizado.

Entretanto, por ter sido finalizado muito tempo depois de ser filmado, tem data posterior ao Corpo sem Órgãos (2012).

O meu encontro com as esculturas de ferro de Gormley aconteceu em Dezembro de 2010. Gormley e eu nunca nos conhecemos ou conversamos acerca desse filme, mas uma vez que as esculturas de ferro se encontram num espaço público, pude interagir com elas e, consequentemente, criar um filme a partir de tal interlocução.

O inverno de Liverpool já fabricava uma paisagem com neve, dias com céu azul e sem nuvens, mas com um sol que se esforçava em vão para manter a mesma potência de outros tempos. Cheguei sozinha a uma praia próxima à cidade, chamada Crosby. Andava por um percurso de terra para chegar

2. Another Place pode ser visualizado por meio do endereço eletrônico: https://player.vimeo.com/vi- deo/40716948.

até a praia, com os olhos fixos no chão, terra que ainda guardava os cris- tais de gelo da tempestade de neve que havia acontecido dias anteriores. De súbito, a trilha deu lugar a vastidão do mar. Não havia ninguém na praia, apenas as cem esculturas de ferro de Gormley espalhadas por quilómetros de extensão. A minha primeira reação foi chorar compulsivamente, o que durou alguns minutos. Aos poucos, o choro deu lugar à aproximação com as esculturas que, de alguma forma, acolheram o meu lamento. Ansiei ser uma delas, ficar ali imóvel e em silêncio, esperar o mar corroer a minha presença. Decidi, então, caminhar até uma das esculturas, com o objetivo de selar aquele encontro.

Ainda sem saber muito bem como utilizaria a câmara que levava comigo, apoiei-a numa das grades que separava a praia da trilha por onde eu che- gara. Decidi por um enquadramento e previ onde deveria caminhar para entrar em quadro. Caminhei em direção a uma das esculturas sem prever o que aconteceria ao chegar próximo a ela, o que logo se revelou como um juntar a minha mão à dela – coberta de ferrugem e musgo – e permanecer lá, a olhar para o mar como ela, por um bom tempo, dezenas de minutos seguramente (Imagem 1).

Enquanto performer, mesmo que eu tivesse como proposta fazer uma ação que durasse dias seguidos sem interrupção, eu não seria capaz de perma- necer na praia pelo tempo que as esculturas permanecerão. Entretanto, a captura da ação pela lente da câmara, pôde, de alguma maneira, eternizar aquele instante. O alargamento temporal obtido pelo plano sequência dá- -se a partir da minha interação com as esculturas, à semelhança do que diz Tarkoviski (1998: 143) sobre o ritmo de cada plano: “Parece-me que, numa tomada, o tempo deve fluir independentemente e com dignidade, pois só assim as ideias encontrarão nele o seu lugar, sem agitação, pressa ou estardalhaço”.

Sem ter tido muita consciência no momento da ação, ao dar tempo para o encontro ocorrido entre mim e as esculturas de ferro – que era a única coi-