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As ações afirmativas baseiam-se e encontram sua justificativa, em última análise, em uma situação de vulnerabilidade relativa a determinadas pessoas, grupos de pessoas ou territórios. Podem constituir vetores redistributivos, compensatórios ou corretivos, que operam como instrumentos de seletividade das políticas públicas e, por consequência, da alocação de recursos. Podem-se definir as ações afirmativas como sendo medidas especiais de proteção ou incentivo a grupos sociais ou indivíduos, com a finalidade de estimular sua ascensão na sociedade, de modo a equiparar os beneficiários com os demais. (PIOVESAN, 2004)

As ações afirmativas atuam, portanto, como direcionamento na outorga de operações estatais, traduzidas em alocação de empregos, promoções, contratos públicos, empréstimos comerciais e programas de admissão e permanência na educação superior.

Encontram-se situadas no marco de uma redefinição do Estado Social as questões referentes às políticas sociais, diante do quadro de desigualdade real que assola os diversos países, agravado pela globalização e o denominado neoliberalismo, bem como em face da denominada crise do Estado de providência.

No âmbito das políticas públicas, em um quadro de escassez de recursos e necessidade de alocação eficaz e racional dos mesmos, torna clara a importância das ações afirmativas na

38 redefinição das políticas públicas e na orientação do redirecionamento dos recursos reconhecidamente escassos.

Conforme Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes apontam na obra “O Negro no Brasil de Hoje”, o objetivo da ação afirmativa:

[...] é superar as desvantagens e desigualdades que atingem os grupos historicamente discriminados na sociedade brasileira e promover a igualdade entre os diferentes. Isso pode ser feito de maneiras diversas, como, por exemplo, bolsas de estudos; cursos de qualificação para membros dos grupos desfavorecidos; reserva de vagas – as chamadas cotas – nas universidades ou em certas áreas do mercado de trabalho que, segundo pesquisas e dados estatísticos, confirmam uma porcentagem mínima ou a total ausência de sujeitos pertencentes a grupos sociais e raciais com histórico de discriminação e exclusão; estímulo à construção de projetos sociais e educacionais voltados para a população que sofre um determinado tipo de exclusão e discriminação; estímulos fiscais a empresas que comprovem políticas internas para incorporação de negros, mulheres, portadores de necessidades especiais nos cargos de direção e chefia, dentre outros. (2006, p. 187).

A Constituição Federativa da República do Brasil de 1988 prescreve, expressamente, que o Estado Democrático de Direito tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, em seu art. 1º, inciso III. A dignidade da pessoa humana, conjuntamente com a cidadania, constitui fundamento do Estado brasileiro, conforme preceitua o art. 3°, e tal dispositivo atua como imperativo para construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como determina ações positivas do Estado na erradicação da pobreza e na promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O princípio da dignidade da pessoa humana encerra uma dupla função, protege os indivíduos contra atos arbitrários do próprio Estado e dos particulares, e garante o tratamento igualitário de todos os homens.

Nesse sentido, Carmem Lúcia Antunes Rocha considera que “a ação afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas às minorias” (ROCHA, 1996, p.286). Assim, as ações afirmativas inserem-se no âmbito inclusivo e positivo do principio da dignidade humana.

O princípio constitucional da igualdade deve mostrar-se sensível às desigualdades presentes na realidade social, portanto, quanto mais se sedimenta a discriminação contra grupos vulneráveis, tanto mais se justifica o tratamento diferenciado, em favor de seus membros, tendo em vista à integração igualitária de todos na sociedade.

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2.2.1 Ações afirmativas e cotas no Brasil

Na modalidade políticas de cotas para acesso ao ensino superior ou a cargos, empregos e funções públicas, por exemplo, as ações afirmativas parecem efetivamente contribuir para com a compensação das desvantagens que assolam os diversos grupos vulneráveis, como por exemplo, os afrodescendentes ou os portadores de necessidades especiais.

Segundo Piovesan (2005): “a discriminação ocorre quando somos tratados iguais em situações diferentes e como diferentes em situações iguais”. É necessário, portanto, políticas compensatórias que assegurem a igualdade enquanto processo. Assim sendo, é necessária à criação de estratégias promocionais capazes de estimular a inserção e inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais. Através das ações afirmativas como instrumento de inclusão social, não somente as políticas de acesso, mas também aquelas que visam à garantia da permanência.

As primeiras iniciativas de ações afirmativas ligadas à questão da educação superior, que surgiram no Brasil, foram a partir de 1992, promovidas por Organizações Não- Governamentais (ONGs), por meio de oferecimento de cursos pré-vestibulares em regiões periféricas das grandes metrópoles brasileiras.

O critério mais utilizado para reconhecer os sujeitos de direito da ação afirmativa é a declaração pessoal. Assim, o candidato, à política de inclusão, tem que se declarar pertencente aquele grupo específico (negros, indígenas, por exemplo) e afirmar que quer concorrer para as vagas destinadas àquela minoria.

À medida que surgem diferentes âmbitos de concorrência entre candidatos cotistas e não cotistas, reservando um percentual do total de vagas para os primeiros, verifica-se a melhora na igualdade de oportunidades destes, que, subtraídos da ampla concorrência, disputarão aquele percentual de vagas apenas com os demais concorrentes cotistas que, presumivelmente, sofrem da mesma vulnerabilidade. Concretiza-se aqui, portanto, o comando de tratamento diferenciado, tratando-se desigualmente os desiguais, através da observância da teoria das situações diferenciadas.

A melhoria na igualdade de oportunidades verifica-se quase instantaneamente, haja vista os sistemas de cotas incidirem sobre objetos finitos, normalmente vagas ou cargos, o que permite a fixação do percentual de vagas a serem destinadas aos públicos-alvo.

40 A comparação entre diversas espécies ou modalidades de ações afirmativas sugere o acerto da hipótese segundo a qual os efeitos de tais políticas variam, dentre outros fatores, em função de suas próprias especificidades.

Com relação às políticas de cotas para acesso às universidades, estas parecem ser a única modalidade viável de ações com vistas a corrigir, em caráter emergencial, a situação de vulnerabilidade experimentada pelos afrodescendentes, no atual contexto brasileiro, verificado nas dificuldades enfrentadas quanto ao acesso à educação superior e, consequentemente, em sua sub-representação nos corpos discentes das instituições de ensino superior.

Seguindo com o sentido de conceituação e examinando os diversos autores envolvidos, a análise do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa Gomes torna-se relevante quando define:

As ações afirmativas como políticas públicas ou privadas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de opção sexual, de idade, de origem e de compleição física (GOMES, 2003, p.21).

No tocante ao acesso à educação superior, reconhece-se que as classes sociais e grupos étnicos mais fragilizados, ao receberem incentivos capazes de promovê-los e inseri-los nesse nível de ensino, fortalecem o sentido que a educação é, sem sombra de dúvida, um dos melhores mecanismos de ascensão social e a ampliação das oportunidades educacionais configura um fator indispensável para a redução das desigualdades.

A concepção material do princípio da igualdade corresponde ao que se entende por Estado Social, pois cabe a este tanto garantir os direitos do cidadão quanto criar mecanismos para efetivação e exercício, na maior plenitude possível, de tais direitos. É nessa perspectiva, declara Gomes (2003), que se percebe o comportamento do Estado ao pesar às desigualdades econômicas e sociais e, a partir disso, busca elaborar experimentos capazes de promover justiça social. Joaquim Barbosa Gomes afirma:

Assim, nessa nova postura o Estado abandona sua tradicional posição de neutralidade e de mero espectador dos embates que se travam no campo da convivência entre os homens e passa a atuar ativamente na busca da concretização da igualdade positivada nos textos constitucionais (2003, p.21).

41 Este viés social do Estado concretiza o fundamento capaz de conferir validade legítima e legal às ações afirmativas na educação superior e a fomentar políticas eficazes na maneira de democratizar o acesso. A Constituição em seus dispositivos deixa clara sua intenção de promover igualdade que vai além do mérito formal.

Nesse sentido, o estudo a respeito do sistema de cotas na Universidade Federal da Bahia realizado pelos professores Delcele Mascarenhas Queiroz e Jocélio Teles dos Santos revelou que a ampliação da participação dos negros (pretos e pardos) “deve ser creditada, seguramente, à política de cotas”. (QUEIROZ; SANTOS, 2007, p.121).

Em suma, somente os sistemas de cotas podem corrigir parcialmente, em curto prazo, a igualdade de oportunidades para o acesso ao ensino superior em relação aos afrodescendentes, comprometida por fatores históricos e socioeconômicos do Brasil.

Uma alteração qualitativa na educação básica da rede pública de ensino, visando promover a paridade de oportunidades, além de estar na dependência de vontade política do governo, de maciços investimentos orçamentários e de planejamento, levaria anos para surtir efeitos quanto aos indivíduos, isto é, para se chegar ao ponto de proporcionar uma maior igualdade de oportunidades. Provavelmente ficaria na dependência de outros fatores contingentes de ordem social e econômica.

Com efeito, mesmo a melhoria substancial na qualidade da educação básica pública poderia ser minimizada pelo êxodo escolar, muitas vezes provocado pela precariedade socioeconômica das famílias, que retiram as crianças da escola para contribuir com a renda familiar para o trabalho. Desta forma, não atingiria todo o contingente de pessoas afrodescendentes com educação básica anteriormente à instauração de tal padrão de excelência educacional.

Assim, para a solução emergencial da disparidade nas condições de acesso ao ensino superior, os sistemas de cotas constituem-se importantes instrumentos, embora se reconheça que são imprescindíveis as melhorias substanciais na educação básica para o adequado enfrentamento do problema a médio e longo prazos e para sua correção estrutural.

Essa observação permite perceber uma das características dos sistemas de cotas para acesso à educação superior: direciona medida emergencial que visa restabelecer artificialmente, pelo instrumento das cotas, a igualdade de oportunidades comprometida por adversidades variadas, evitando desta forma uma condição de vulnerabilidade indicada pela escassez na participação dos afrodescendentes nos quadros acadêmicos.

42 Moura (2005) afirma que existe proporção de causa e efeito, pois as cotas permitirão a inclusão do afrodescendente nas universidades durante um determinado período. Assim, aquele indivíduo terá oportunidade para viver em uma sociedade mais homogênea, permitindo que, em um curto tempo, tenham a possibilidade de concluir um curso superior.

Por fim, revela-se que, podendo a educação ser concebida como condição favorecedora da igualdade de oportunidades, as cotas raciais, tendo por objeto a educação superior, pode ser concebida como instituto favorecedor da igualdade de oportunidades.

As ações afirmativas e o Reuni se encontram e se relacionam porque o Reuni fundamentou-se na idéia de democratizar o acesso e a permanência nas universidades federais. O MEC, por sua vez, também incluiu entre as pautas do Programa REUNI a promoção das Políticas afirmativas na educação superior. Para acessar os recursos federais disponibilizados pelo Reuni desde 2007, as universidades federais deveriam elaborar projetos de reestruturação neste sentido, suscitando mudanças estruturais no âmbito interno das Universidades, sendo esta adoção dos programas de ações afirmativas para acesso e permanência uma das importantes implicações geradas pelo Programa.

A constituição de um Estado democrático supõe a mobilização de mecanismos capazes de promover positivamente a igualdade. Dessa atuação do Estado é que nasceram as ações afirmativas. Políticas públicas como estes atos afirmativos são modos encontrados pelo Estado de corresponder às exigências de inclusão e cidadania plena dos grupos sociais minoritários e, assim, no país de hoje, podem ser apreciadas como parte de uma tendência política da transformação social.

Tal panorama foi sendo gradativamente modificado a partir da vigência da Constituição Federal de 1988, quando a legislação começa a se ocupar dos problemas sociais, com a proteção dos direitos coletivos e difusos.