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2 DIMENTI

2.2 O PAPEL DO CORPO NO DIMENTI

O corpo, no Dimenti, são muitos corpos, em cada experiência cênica, workshop e palestra vai acrescentando, açulando na inter-relação e multiplicidade de seus integrantes e colaboradores.

Para o Dimenti, o corpo é fundamental, sendo pesquisado por meio dos pilares que eles mesmos propõem (clichê e cartum).

O cartum borra vida e morte quase como uma obsessão. O que pode o corpo? Perguntam esses bichinhos-simulacro que ludicamente escancaram um corpo imensamente grotesco [...] Vive para morrer, uma morte múltipla e repetitiva, pouco absoluta e nada sagrada.

Morte ritualizada em sua banalização. Não se sabe onde está a cabeça e a cauda desse corpo desconstruído por uma dinamite. (ALENCAR, 2007, p. 95).

A apropriação dimentiana do C+C, foi um dois aspectos incorporados na idealização e pesquisa do corpo no grupo, e sinalizam capacidades extraordinárias, ou um amplo leque corporal que leva a discursos de comicidade e construção de um corpo específico e fácil de reconhecer, na sua fragmentação e movimentação quebradiça. Tais elementos e uma pesquisa depurada no tempo levaram Alencar à elaboração do conceito de Corpo Borrado.

Neste jogo de vida e morte, o corpo pode se reconstituir sem sofrer dor em uma constante renovação. A “morte e renovação remetem ao pensamento grotesco e à concepção carnavalesca de mundo, sendo ambos, aspectos inseparáveis do conjunto vital que não infundem temor” (ALENCAR, 2007, p. 97).

Para mim, foi fácil absorver a ideia de vida-morte no cartum, partindo da minha experiência nas artes cênicas, onde a criação da personagem está totalmente relacionada com a ideia vida/morte. Constantemente, a personagem morre e como o fênix reaparece, mas agora com novos resplendores, com a experiência do anterior. No cartum essa ideia de acumulação, muitas vezes, não funciona, pois para o Coiote (desenho animado da Warner Brothers) ficar eternamente na persecução do Papa- léguas, precisa do esquecimento/renovação.

A análise está colocada de maneira expositiva na dissertação de Alencar, em que ele explica o porquê da escolha e da importância do C+C no entendimento do corpo e da pesquisa do grupo.

No Dimenti, os corpos dos intérpretes-criadores estudam a composição dos desenhos animados para chegar à concepção de outro corpo, um corpo cartunesco, com um risco físico constante que é transformador de fronteiras corporais.

O corpo cartunesco possui vários aspectos e um deles, utilizado recorrentemente, diz respeito às variações repentinas de estado corpóreo, realizadas pelo corte seco. Não existe uma fluidez entre as ações, e elas são uma constante colagem de mutações esporádicas. O corpo, no Dimenti, é movido por interrupções/modificações bruscas, as quais requerem uma urgência no atendimento das intenções e dos objetivos cênicos, em um ambiente que está em permanente processo de descontinuidades e estranhamento.

Em cena, observam-se corpos realizando ações simultâneas, muitas vezes incoerentes, discrepantes, contraditórias ou desconectadas, que ajudam a clarear a ideia de borrar fronteiras. E é justamente nesta procura de borrar fronteiras que nasce o conceito de Corpo Borrado, surgido para dar nome ao trabalho do grupo, como expõe Alencar:

A expressão „corpo borrado‟ surgiu recentemente na tentativa de nomear, numa metáfora-síntese, a organização criativa, ética e operacional do grupo ao longo dos anos de trabalho. Esse termo não procurar abarcar ou fixar a pesquisa artística do grupo, mas atende a uma demanda momentânea do grupo, podendo ser revisto posteriormente. De modo contíguo a esse estudo, um corpo borrado não reivindica uma identidade unificada num eu coerente, mas se transforma continuamente. Na busca de entender melhor o que eu mesmo venho produzindo, num processo de realizar e de se ver realizar, esse corpo borrado corresponde: 1) a um conjunto de procedimentos compositivos presentes na pesquisa artística do grupo; 2) a um tipo de corporalidade investigada nas minhas criações em dança; 3) aos acordos éticos presentes na configuração da equipe de trabalho do „Dimenti‟ – metodologia de criação e de produção – e suas implicações afetivas. (ALENCAR, 2007, p. 104). Esse corpo borrado não é fixo: é dinâmico, permeável e ultrapassa o conceito de fronteira:

A idéia de borrar demarcações traz à tona a sólida idéia de território, mas não para reforçá-la e sim para dinamizar um processo de identificações que problematizam tradicionais oposições binárias [...] A criação desse espaço fronteiriço, intersticial se irmana à discussão sobre identidade cultural e hibridismo, procurando justamente descartar certas perspectivas essencializadoras sobre identidade enquanto um constructo fixo. (ALENCAR, 2007, p. 105).

A ideia de borrão vem se desenvolvendo por meio dos trabalhos do grupo, mas foi a partir do Ateliê de Coreógrafos Brasileiros, ano IV (2005), com a criação de A Lupa, que Alencar iniciou a exploração das movimentações que criam uma tensão e correspondem à identificação cartunesca nos corpos dos intérpretes. “Esses corpos transitam entre “o acidente e a construção, a impostação e o relaxamento, entre o „estado de cena‟ e o „estado de coxia‟” (ALENCAR, 2007, p. 107). A atitude desses corpos é de uma displicência construída, gerando uma simultaneidade de ações desconexas no corpo. Um corpo repleto de torções em situações desconexas.

corpos geram a ideia do nó; com eles e neles, tendo assim, como resultado formas grotescas do corpo em situações pouco habituais, como o caso do corpo no espetáculo O Poste, A Mulher e o Bambu.

Dentro dessa simultaneidade e das constantes variações nos estados corporais, não há uma conexão fluida, a passagem é repentina, em um nexo-causal abrupto, o que o grupo chama de jogo de interruptor.

Assim, o corpo é utilizado, no Dimenti, como um corpo borrado, que demarca as estratégias do grupo, conforme assegura Alencar:

A idéia de um corpo borrado ainda encerra um pressuposto ético que diz respeito ao modo como organizo os meus processos pedagógicos de criação e ao trabalho colaborativo no Dimenti. No grupo, não existe um único programa de preparação artística para as criações. São realizadas leituras, conversas, coleta de referenciais imagéticos (vídeos, músicas, fotos e outros), produções literárias que possam atender a cada questão específica com a qual nos deparamos. Muitas vezes, os encontros e ensaios se resumem a longas conversas e avaliações sobre alguma questão do grupo ou sobre nosso entorno cultural. (ALENCAR, 2007, p. 110).

Esse entorno de trabalho propõe diretrizes corporais cujo foco é o desenvolvimento de competências que partem da necessidade do grupo diante dos problemas e das questões as quais têm princípios para subvertê-las dentro de sua proposta.

A noção proposta por [Alencar] não se refere apenas a um jeito de dançar único ou a uma qualidade de movimento específica, mas, principalmente, ao modo de organizar a narrativa da obra. Nesse aspecto, os procedimentos criativos utilizados por ele, a partir de princípios como: contraste, estranhamento, descontinuidade, nonsense e colagem. (ALENCAR apud MOLINA, 2007, p. 65).

Esses princípios estão no corpo e são identificados perante os processos criativos do grupo, uma vez que para o Dimenti, “o corpo em perene estado de transformação é um ponto que articula os conceitos de corpo grotesco, de carnavalização e de negação surrealista do princípio de identidade” (ALENCAR, 2007, p. 71).

Reconhecendo o trajeto do corpo, feito no capítulo I, é possível traçar alguns rastros que, como pesquisador. relacionei à visão do corpo no grupo. A repetição das ações físicas, nas sequências de movimentos/textos, cria uma organicidade

fragmentária, notória nas frases do videodança Sensações Contrárias. Essa repetição, de alguma maneira, está presente nos traços de estudos teatrais em Stanislavski. A hibridação dos treinamentos e dos processos criativos corporais, aplicada por Meierhold e Grotowski, é evidenciada no sincretismo barroco das apropriações de signos tradicionais e atuais dos clichês brasileiros nas suas obras. De igual maneira, Artaud experimentou através da respiração e do xamanismo, um corpo-ritual incorporado na constante procura de experiências corporais nos seus processos criativos.