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2 DIMENTI

2.3 PROCESSOS CRIATIVOS NO UNIVERSO DIMENTI

Os processos de criação, no Dimenti, constituem-se em um caldo de múltiplos ingredientes. Como os próprios integrantes explicam, trata-se de uma soma de percepções e apropriações. Estas apropriações partem sempre do referencial de cada participante do grupo, numa atitude colaborativa, aproveitando a diversidade de experiências e informações geradas pelos intérpretes-criadores com uma conexão com os elementos compositivos do trabalho, utilizando a pluralidade como ferramenta e baseando-se nos critérios teórico-práticos do grupo.

Muitas dessas informações poderiam parecer contraditórias, porém, no grupo, o não linear e/ou nonsense são uma marca legítima. Consoante Silva,

Nada é óbvio nos espetáculos do Dimenti e, no entanto, tudo é plenamente identificável, o que poderíamos ousar a rotular de uma dialética que inaugura uma poética absolutamente única. Ações simultâneas, fartas doses de referências interdisciplinares, reinvenção de estereótipos culturais, pluralidade de discursos e significados, paródia e ironia, finíssimo humor, estão todos lá no palco, para serem prazerosamente digeridos (SILVA apud MELLO; ALENCAR, 2006).

O processo para chegar ao nonsense e à criação de uma poética particular parte de elementos, pesquisas e oficinas, onde o corpo é um dos focos de atenção, entre eles é reconhecido o conceito de corpólogo:

Uma partitura corporal que busca transpor cada palavra de uma frase qualquer para um gestual corporal, de forma literal ou abstrata, com ou sem uso de legenda verbal. Nos experimentos, problematizamos

a possibilidade de se criar uma equivalência unívoca entre texto e corpo. (ALENCAR, 2007, p. 100).

Esse conceito é bem utilizado nas oficinas, nos processos criativos e nas apresentações do grupo como elemento potencializador do movimento e criador de novas leituras e significações.

No sentido amplo do Dimenti como produto estético, este é cheio de pluralidades de discursos e de significados, tanto a partir das encenações como nos processos criativos. Utilizam-se de mecanismos estruturados, durante anos, em sua pesquisa.

Mecanismos como repetição automática, citação paródica, variação abrupta de estado corpóreo, contraste, simultaneidade de ações corporais desconexas e justaposição atendem ao objetivo de criar fissuras nos estereótipos sobre os quais refletimos em cada formato investigado e na inversão carnavalizada de cânones que fazemos [...] As descontinuidades ainda são resolvidas na composição quando reunimos por meio da colagem universos e referências aparentemente incoerentes entre si, gerando o estranhamento que impede a fixação de uma visão normatizadora no trato das questões envolvidas. (ALENCAR, 2007, p.106).

As questões envolvidas e os acontecimentos narrativos dos trabalhos são colocados de formas não causais, com saltos em associação de ideias e a partir de livres conexões; essas conexões referentes a fios, na verdade, “são fios que amarram, que atam e que muitas vezes dão nó (quer algo mais dimentiano que isso?)” (GARCIA apud MELLO; ALENCAR, 2006). Dentro desses fios, a carga teórica encontrada, na práxis, não significa quaisquer elementos distanciados, pois, segundo Alencar (MELLO; ALENCAR, 2006, p. 29), “a gente viu que essa coisa que a gente chamava de teoria e que estava supostamente apartada dessa coisa chamada prática, não maculava e não era uma figura opressora, ela dava sentido e potencializava a criação em si”. Essa potencialização aumentava com a leitura de signos e com a releitura dos mesmos, dentro de seus textos e de seus espetáculos, onde o jogo é primordial para criar, “o ponto final é o limite do texto”. “O autor tem até o final para delirar, para dizer-nos aquilo que ele quer – uma espécie de espaço delimitado para criar” (NONATO apud MELLO; ALENCAR, 2006).

Esses espaços delimitados são borrados pela encenação com o caráter não- linear e cada integrante costura possibilidades neste processo colaborativo de

criação. A edição final caracteriza-se pela pertinência, uma vez que, ao final, este “caldo” recorda um banquete real. Alguns cortes serão necessários e o grupo sugerirá aquilo que poderá ser aproveitado. Molina (2006, p.64), que acompanhou o trabalho de Alencar em A Mulher Gorila7, assegura que “o olhar critico do coreógrafo

foi extremamente importante para que se chegasse ao propósito final do projeto”. E assim, o próprio Alencar diz “Tudo vale, depois conta uma boa orientação e uma boa edição” (ALENCAR apud MOLINA, 2006, p. 63).

A partir desta premissa, a composição e a encenação do Dimenti apresentam uma dialética marcada, denominada “corpo borrado”, que leva implícito mecanismos de comicidade a partir da pesquisa C+C8, uma comicidade que tem

como objetivo provocar reflexões críticas. Esta estrutura de cena está diretamente relacionada ao processo criativo e a uma preparação corporal estabelecida pelo grupo: o corpo que se prepara à medida que cria.

O formato dimentiano não pretende homogeneizar os corpos, mas, sim, realizar constantemente leituras dos discursos aplicados e pesquisados ao longo dos anos, pois esse “borrão” no corpo propõe um desconforto corporal, com um relaxamento e uma tonicidade muscular necessária, onde seja possível realizar torções, nós, executar outras ações físicas e vocais simultâneas, procurando um corpo grotesco, desconexo e absurdo, um nonsense ou uma versão humano- cartunesca, assim defendida por Alencar.

Sua busca envolve certa configuração de movimento que se apresenta num corpo relaxado e “civil”, com uma tonicidade necessária apenas enquanto sustentação mínima para garantir uma geografia corporal que procura confundir as noções de dentro e fora, cena e coxia, acidente e construção. (MOLINA, 2006, p. 65).

Este corpo heterogêneo, mas disposto e totalmente cartunesco de todos os integrantes, cômico e subversivo, borrando fronteiras e ampliando territórios coloca, no contexto brasileiro, uma ressignificação do que é um grupo na contemporaneidade. Eles enfrentam o trabalho cênico de uma maneira séria e comprometida, numa construção que, do meu ponto de vista concorda com a formação do grupo, dos multiartistas e multifuncionais dentro da proposta.

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Trabalho coreográfico sob a direção de Alencar, no VI Ateliê de Coreógrafos Brasileiros, Salvador, 2006.

Na verdade a gente precisa, com a colaboração, levar em consideração e localizar a competência de cada um. Não vamos passar por cima disso, não passar por cima dos limites de ninguém. No Dimenti, aos poucos, fomos encontrando juntos os ajustes, foi muito difícil uma época fazê-los sair dessa inércia acomodada de ter sempre uma produtora (MELLO apud MELLO et al., 2006, p. 17). Esta inércia a que se refere Mello dilui-se quando o grupo fecha o compromisso consigo mesmo, pois o “compromisso é justamente a palavra que nos rege, enquanto grupo. Aliás, o mais estranho ainda é que fazer parte de um grupo, hoje em dia, também soa meio contraditório” (LORDELO apud MELLO; ALENCAR, 2006), um compromisso levado a um reconhecimento da importância da produção como elemento primordial nos grupos contemporâneos, ou seja, “Quando eu sou educador, eu sou tão diretor quanto performer. E quando eu sou diretor, eu sou educador. Assim como produção e criação artística são coisas interdependentes” (ALENCAR apud MELLO et al., 2006, p. 21). Esta interdependência oferece uma base sólida para a criação, a qual parte de um sentido de mestiçagem de corpos, referências e procedimentos.

Essa mestiçagem de referências e procedimentos – eis, enfim, uma imagem reconhecidamente nordestina – embala nossos processos de criação. Trabalhar em grupo ao longo dos anos tem uma vantagem que só depois de um tempo pode ser entendida [...] como procedimento fundamental no aprendizado e construção de uma poética e afetividade. (ALENCAR, 2006, p. 66).

Reformulando a situação, é justamente desta mestiçagem que sou parte como latino-americano; nestes corpos baianos, porque o Dimenti assegura que “somos baianos, novos baianos e enquanto houver receita de moqueca e clichê, haverá Dimenti” (ALENCAR apud MELLO; ALENCAR, 2006). O fato de essas pesquisas sobre o corpo e processos criativos em artes cênicas contemporâneas serem realizadas na Bahia tem muito a ver com o potencial criativo e corporal dessa mestiçagem baiana e, sobretudo, penso que só poderia esperar desse grupo, novos processos originais, mesclados com dedicação e o jeito dimentiano em que “juntos é mais fácil”.9

O grupo Dimenti, desde o início de sua pesquisa, esteve interessado no cartum e no clichê. O clichê, como elemento para releituras de estereótipos, baseia-

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“Juntos é mais fácil” frase característica do grupo Dimenti. Frase que defende a proposta do grupo, uma lógica que motiva a opção de não trabalhar sozinho e de criar uma coerência de colaboração. Todo mundo é responsável por uma parte de um todo chamado Dimenti, assim as tarefas pesam menos. Não sempre tranquilo e harmonioso, mas para o grupo é um lugar democrático e produtivo.

se nesse novo olhar dos jovens para uma cultura brasileira impregnada de múltiplas significações. O trabalho a partir do clichê está presente desde a origem do grupo até Batata!, mas o trabalho do cartum foi evoluindo até uma nova concepção, ou seja, no início, o cartum estava presente na forma e na encenação, até que ele foi se diluindo.

Percebo que a peça chave para um salto qualitativo na movimentação, conceitualização e concreção de princípios do grupo é Chuá, onde o grupo consegue desvincular-se do cartum como elemento de pesquisa e chega próximo a um desenvolvimento do corpo borrado e borrão atualmente definido. Para chegar a essa corporeidade, essas interrupções e ao borrão, como elemento definido e permeável por múltiplas variáveis, este trabalho vê-se ainda mais esclarecido em O Poste, A Mulher e O Bambu e em Sensações Contrárias.

A maturação da proposta parte da evolução dos processos criativos, que estão plenos da vontade de pesquisar, tanto na prática como na teoria. No Dimenti, os ensaios incluem a leitura de textos a serem trabalhados, textos de teóricos, textos filosóficos e psicológicos; assistir a vídeos, filmes; reformular espetáculos; trabalhar no figurino, cenário e na produção; além do necessário diálogo entre amigos.

A partir do meu olhar como pesquisador, acredito que não está errada minha percepção, ao afirmar que, definitivamente, o amor está no meio disso tudo. Um amor e uma paixão que conduz um grupo de jovens criadores a atingir a maturidade de sua proposta e pesquisa cênica, durante dez anos, nos palcos brasileiros.

Amor e morte. Mortes que, a exemplo do cartum, são levianas. No capítulo seguinte são abordados, novamente, nossos queridos desenhos animados, em que os desenhos são esses corpos dimentianos, e a morte é o simbolismo de um novo renascer, rápido e sempre evoluído para criar novas possibilidades, para teorizar e, melhor ainda, fazer bons espetáculos.