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2 DIMENTI

2.4 CRIAÇÕES DO DIMENTI

2.4.8 Sensações Contrárias (2007)

Foto:João Meirelles

Figura 11 – Videodança Sensações Contrárias

O trabalho Sensações Contrárias apresenta-se em um formato diferenciado, constituindo-se em videodança, baseado no universo de Nelson Rodrigues, porém, inspirado no cotidiano do recôncavo baiano. Os corpos perdem o controle e deixam escapulir ações imprevistas por meio de aparentes falhas, acidentes e descontinuidades no videodança Sensações Contrárias (Figura 11).

Um som, quase ruído, chega ao meu ouvido. Abre-se a imagem, ou melhor, dizendo, abrem-se, a partir de agora, uma enxurrada de imagens: uma menina em traje de banho com asas de borboleta e patins brinca no meio da casa, uma casa velha, com esconderijos; uma mulher fuma, bebe vinho, usa um chapéu de banho, atira vinho no chão, talvez parte de um ritual a seu orixá, um cachorro vira-latas carrega sua corrente e uma campainha de proteção no pescoço; som de respirações... Um homem negro faz massagem em um homem velho; corpos e cores misturam-se; uma mulher lava os cabelos e, de repente, aparece uma criança em uma piscina de plástico – ela brinca com seu corpo e com as articulações.

A menina passa, silenciosa e discretamente; o cachorro sai de um banheiro, onde um homem lava seu sexo; uma mulher, no chão, tenta se manter correta, entre trêmulas contrações e desconstruções corporais. A menina continua seu passeio pela casa; corpos caem de suas estabilidades contorcendo-se na cadeira, no sofá,

no banheiro, na mesa, entre livros, na entrada da casa, no quintal, entre a poeira... Corpos que se complicam em suas construções tradicionais; a estabilidade da cotidianidade é estremecida: não sendo possível suportar, os corpos desestabilizam-se.

Música de banda, imagem campestre. Vislumbra-se, agora, um outro lugar: uma praça, um conjunto musical, homens negros sem camisa tocando música de banda. A praça está deserta, apenas um jovem assiste à apresentação da banda e, sentado num banco, tenta se manter ereto; porém, acontece a mesma coisa: o corpo é instável, não consegue se manter e as contorções continuam, apesar da estabilidade tradicional aparente no exterior... No interior de si, as sensações são contrárias.

A análise desse trabalho – mais que pela estética, a qual se mantém desde O Poste, A Mulher e O Bambu (que remete a universos internos, vidas privadas e acontecimentos secretos) – tem seu enfoque no tratamento do corpo, já que nesse trabalho, pela ausência do texto, a imagem desse corpo tem um papel primordial. Um corpo fragmentado, abrupto e interrupto mostra a passagem pelas fronteiras do que é e do que aparenta ser; o corpo tenta se manter, mas a instabilidade é mais poderosa.

No início, os corpos aparentam certa comodidade, que vai se apagando e desestabilizando, ao passar das cenas. O chão é o sustento dos corpos retorcidos, corpos que aparecem com os limites transparentes, corpos borrados. A partir de meu olhar, é aqui que o diretor do grupo consegue colocar a sua pesquisa na práxis, reforçando trabalhos como O Poste. Neles, vemos esses corpos, mas pelo formato de curta metragem, parecem ficar na retina do espectador, em pouco tempo, múltiplas cenas, múltiplos corpos e a eliminação do consciente e inconsciente; do fora e do dentro.

Na análise do espetáculo, identifiquei uma progressão interessante no avançar do trabalho, um desenvolvimento espiralado que provoca várias emoções, e um final contagiante, tanto que o estável me pareceu incômodo, eu preferia o instável e sua sensação de constante movimento

CAPÍTULO III

3 CORPOGRAFIAS

DUENDE 1.° ¿Cómo te va por lo oscurillo? DUENDE 2.° Ni bien ni mal, compadrillo. DUENDE 1.° Ya estamos. DUENDE 2.° Y qué te parece. Siempre es bonito tapar las faltas ajenas. DUENDE 1.° Y que luego el público se encarge de destaparlas. DUENDE 2.° Porque si las cosas no se cubren con toda clase de preocupaciónes... DUENDE 1.° No se descubren nunca. DUENDE 2.° Y sin este tapar y destapar... DUENDE 1.° ¡Qué sería de las pobres gentes! DUENDE 2.° (Mirando la cortina.) ¡Que no quede ni una rendija! DUENDE 1.° Que las rendijas de ahora son oscuridad mañana. (Ríen.) DUENDE 2.° Cuando las cosas están claras... DUENDE 1.° El hombre se figura que no tiene necesidad de descubrirlas. DUENDE 2.° Y se van a las cosas turbias para descubrir en ellas secretos que ya sabía. DUENDE 1.° Pero para eso estamos nosotros aquí. ¡Los duendes!19

Duendes, Amor de don Perlimplín con Belisa en su Jardín

19 DUENDE 1.° Como vais pelo escurinho?

DUENDE 2.° Nem bem nem mal, compadre. DUENDE 1.° Aqui estamos...

DUENDE 2.° E o que achas? Sempre é bonito esconder as faltas alheias. DUENDE 1.° E como é rápido que o público se encarregue de descobri-las.

DUENDE 2.° Porque se as coisas não estão recobertas com toda espécie de preocupações... DUENDE 1.° Não se descobrem nunca.

DUENDE 2.° E sem este esconder e descobrir... DUENDE 1.° O que seria da pobre gente!

DUENDE 2.° (Olhando a cortina.) Que não fique nenhuma fenda!

DUENDE 1.° Pois as fendas de agora serão a escuridão de amanhã. (Risos) DUENDE 2.° Quando as coisas estão claras...

DUENDE 1.° O homem pensa que não tem necessidade de descobri-las.

DUENDE 2.° E se dirigem para as coisas turvas para nelas descobrir segredos que já conhecia. DUENDE 1.° Mas é por isso que aqui estamos nós. Os duendes!

Foto: João Meireles

Figura 12 – Espetáculo Batata!

Pretendo descobrir fatos, eventos que se tornarão elementos de análise para esta pesquisa, assim como os duendes da noite de bodas de Perlimplín. Demonstrarei, especificamente, como distinguir os elementos por meio dos corpos do Dimenti, pois esse deparar-se com as informações que os corpos têm e que utilizam como ferramentas para a criação é, segundo a subpartitura de Pavis, um caminho a se descobrir.

Discutir esses elementos (curiosidades lúdico-corporais, história corporal, informações técnicas e culturais, base desse corpo bioarqueológico) será um meio revelador desses corpos em suas individualidades, dentro do processo do grupo. Esses corpos possuem uma abertura para certas estruturas pesquisadas por eles mesmos através do tempo, significando o corpo cartunesco que Alencar propõe na sua pesquisa.

A triangulação entre o meu olhar, os olhares dos colegas e de cada um deles sobre si mesmos, me permitirão deixar isso aparente, uma pesquisa qualitativa dos olhares, onde espero encontrar diversos detalhes e caminhos.

Anseio ser um duende, indagar, por meio de minha curiosidade, o porquê e o para que de todas essas informações; que contribuições, elementos e estruturas disponibilizam para nossas artes cênicas contemporâneas. Para isso, e com isso, desejo vislumbrar os interesses próprios dentro da proposta dimentiana, querendo comprovar a importância das informações e aquisições prévias à criação que ajudam ao intérprete no processo criativo, ou seja, a subpartitura por trás dos corpos do grupo no Espetáculo Batata! (Figura 12).

3.1 CORPOGRAFIAS, GÊNESIS

O termo corpografias foi fruto da minha participação no primeiro Seminários de Pesquisa em Andamento (SPA), que é uma disciplina do programa de pós- graduação. Ao debater com meus colegas a ideia de um tipo de biografia dos corpos que pretendia fazer com os integrantes do grupo Dimenti, surgiu a sugestão de que essas biografias corporais passassem a se denominar corpografias, versando à análise do corpo como uma caligrafia corporal de arquiteturas efêmeras inacabadas, sintetizando, nessa palavra, meu entendimento do olhar o corpo que expõe Michel Foucault, especificamente, ao falar dos corpos dóceis. Com esse termo, busco unificar, de forma sistematizada, minhas pretensões de analisar e descrever a biografia dos corpos no Dimenti.

Para iniciar essa discussão, quero esclarecer que dentro dessas corpografias encontram-se três diferentes pontos do olhar sobre os corpos de cada um deles: a) o olhar pessoal de cada integrante (considerando as suas aquisições e construções corporais); b) o olhar dos colegas do grupo (como agentes presentes nos processos transformadores e criativos; e c) o olhar do pesquisador (trabalhando sobre sua própria experiência como intérprete, criador e professor de corpo). A ideia é que entrecruzando esses olhares e os assuntos dessa construção corpórea, já mencionados, como a cultura local e as identidades, a trajetória do grupo e suas pesquisas, seja permitida uma análise complexa dos corpos do Dimenti, partindo deles mesmos. Essa questão de olhar dentre eles, como já é colocada por Geertz (1989, p. 15): “Se você quer compreender o que é a ciência, você deve olhar, em primeiro lugar, não para suas teorias ou as suas descobertas, e certamente não para o que seus apologistas dizem sobre ela; você deve ver o que os praticantes da ciência fazem.”

Desse modo, para mim, o olhar dos corpos dos integrantes do Dimenti em seus ensaios, criações, laboratórios, oficinas e apresentações foi de grande importância, como também conhecer seus olhares sobre eles mesmos, criando várias histórias de vida que se encontram em uma história de vida, chamada Dimenti.