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1. A ECONOMIA DA SOJA EM MERCADOS AGRÍCOLAS GLOBAIS:

1.4. O papel do Direito e dos juristas na (des/re)construção de ideias, conceitos e

A maior integração comercial, econômica e financeira decorrente da globalização79 ensejou significativa aproximação entre o Direito e a Economia enquanto

disciplinas, sendo geralmente aceita a ideia de que a globalização trouxe impactos significativos para o Direito, reclamando respostas adequadas não somente de Estados e de suas estruturas normativas, mas também e principalmente dos juristas. Nesse contexto, a interdisciplinaridade surge como um desafio, e a dimensão econômica passa a apresentar reflexos indeléveis na construção de mercados e na fruição empírica de direitos humanos e fundamentais.

Entretanto, na missão de identificar problemas, avaliar demandas e, principalmente, construir soluções, o Direito tem ficado em segundo plano, tem chegado atrasado. Olvidando-se da matéria-prima do Direito – diálogos, argumentos, interações humanas, consensos – a doutrina jurídica brasileira tem se utilizado predominantemente de metodologias marcadamente dogmáticas e autorreferenciadas, num “juscentrismo” que se reveza entre posturas estreitamente positivistas e teorizações processuais orientadas por uma visão de validade abstrata e genérica de direitos subjetivos, resultante da atividade de um Poder Judiciário que, sem qualquer pudor ou autocrítica, aparenta

79 O fenômeno da globalização pode ser definido como “transformações institucionais de processos sociais,

políticos e econômicos em diversas partes do mundo, que têm ocorrido de maneira crescentemente interdependente” (CASTRO, 2014, p. 49)

estar desconectado da realidade, dos dramas concretos e dos anseios da sociedade. Decisões judiciais, mesmo de Tribunais Superiores, quando não são conflitantes e incoerentes entre si, comumente negligenciam a realidade empírica complexa e as suas consequências jurídicas concretas na vida de pessoas, empresas e comunidades.

Se é certo que o Direito pode e deve desempenhar função relevante na construção, consolidação e reformulação de práticas constitutivas de um conceito de mercado agrícola sustentável, equitativo, inclusivo e, portanto, justo, tem sido evidente a perda de protagonismo da área jurídica no contexto de dinâmicas interdisciplinares que se estabelecem com as chamadas “áreas técnicas”.

Ademais, nesse processo, o Direito tem perdido a característica que lhe confere identidade e que o torna insubstituível em relação às chamadas “áreas técnicas”: a qualidade de sempre poder dizer o que é (in)justo, (des)arrazoado do ponto de vista prático, certo/errado, bom/ruim, ou seja, de sempre emitir juízos valorativos sobre qualquer situação, atingindo quando necessário até mesmo as “certezas” e “verdades” criadas pelas próprias “áreas técnicas”, tais como a econometria, a engenharia, a estatística, a matemática etc80.

Contudo, a verdade é que, mesmo para as chamadas “áreas técnicas” ou para as disciplinas ditas “científicas”, tem-se, mais propriamente, a estabilização de consensos em relação a determinadas premissas, métodos, conceitos. Tais fundamentos podem sempre ser checados, questionados, aprimorados, reformulados, num processo dinâmico e contínuo que se inicia, aliás, por consensos linguísticos, muitos dos quais o Direito pode ajudar a criar.

O tema do uso agrícola de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs), por exemplo, tem gerado não só dissensos no meio dito “técnico-científico”, como também tem iluminado questões fundamentais, incluídas no âmbito da segurança alimentar, saúde humana, preservação do meio-ambiente, e abrangendo ainda questões econômicas e jurídicas não menos importantes: proteção da ordem econômica constitucional, especialmente em relação à formação de oligopólios e oligopsônios, assim como a preservação da livre iniciativa no que toca particularmente à garantia de diversidade de mercados agrícolas para pequenos produtores rurais.

E, justamente por tais implicações, o Direito, independentemente de consensos ou dissensos no meio “técnico-científico” não só pode como deve participar ativamente

dos esforços de ordenação das atividades econômicas relevantes, favorecendo espaços de discussão colaborativa e democrática tanto para a elaboração de normas regulatórias quanto para a análise crítica de legislações e/ou de políticas públicas eventualmente já existentes.

Ainda a título ilustrativo, considerando os propósitos e as limitações do presente capítulo, um outro exemplo do papel construtivo do Direito81: a elaboração de um

conceito de agronegócio tipicamente brasileiro, aqui em perspectiva.

No Brasil, o conceito de agronegócio ainda se apresenta errático e bastante influenciado por posições políticas. De um modo geral, o agronegócio brasileiro tem sido associado quase que exclusivamente aos interesses de um grupo de grandes empresários rurais. Noutro extremo, o conceito de agricultura familiar tem sido associado a uma visão preconceituosa e empobrecida de produtores rurais amadores, pouco sofisticados e ineficientes.

Conforme observa Sérgio Sauer (2008, p. 67), a despeito de representarem conceitos apenas descritivos de simples categorias empíricas, os processos sociais e embates políticos no setor rural brasileiro, especialmente a partir da Revolução Verde no início dos anos 1990 – tida por muitos teóricos como um processo de “modernização conservadora” –, transformaram as noções de agronegócio e de agricultura familiar em “conceitos-síntese”82, os quais, mercê da construção, da apropriação e do uso respectivos,

foram capazes de construir valores e expressar identidades sociais antitéticas (SAUER, 2008, p. 36-37).

Tais circunstâncias têm trazido implicações na própria divisão organizacional de competências administrativas entre os Ministérios envolvidos com atividades agropecuárias, o que, por sua vez, reflete-se no alcance de políticas públicas agrícolas em favor dos respectivos destinatários.

No governo da Presidente Dilma Russef, no âmbito do Poder Executivo Federal, os agricultores em condições de fragilidade produtiva e alimentar eram amparados por programas, projetos e ações conduzidos pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Agricultores familiares, bem como os assentados da reforma agrária eram atendidos pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). E agentes

81 Nesse sentido, confira-se (LANG, 2013).

82 Na acepção de Porto e Siqueira (1997), do ponto de vista sociológico, para além de conceitos teóricos, os conceito de “agronegócio” e de “agricultura familiar no Brasil” passaram a reunir sentidos unificadores (“conceitos-síntese”) de uma série de situações empíricas.

do agronegócio (aqui incluídas empresas rurais com perfil familiar) eram atendidos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Durante o governo do Presidente Michel Temer, o MDA, extinto, foi incorporado ao MDS, dando origem ao Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Agora, no governo do Presidente Jair Bolsonaro, o MAPA foi mantido e MDS foi fundido aos extintos Ministérios da Cultura e do Esporte, dando origem ao novo Ministério da Cidadania83.

Todavia, afastando-se de estereótipos, nem toda agricultura familiar é de subsistência, assim como nem todo produtor rural inserido no complexo do agronegócio é latifundiário. Desse modo, ressalvados os produtores rurais em situação de indiscutível vulnerabilidade socioeconômica, por que todos os produtores rurais que gerem excedentes comercializáveis não são abrangidos por uma mesma política pública agrícola nacional, única? Porque todos esses produtores rurais, independentemente de ostentarem perfil familiar, não são igualmente atendidos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA)? Rememore-se, porquanto extremamente pertinente, que apenas os atores e/ou agentes econômicos alcançados pelo MAPA participam, por exemplo, da elaboração do Plano Safra, principal política pública de crédito rural84.

Assim, o uso dos conceitos de “agronegócio” e de “agricultura familiar” tem conduzido ao contraste, à disputa e à segregação entre agroindústrias, agricultores familiares e camponeses, muito embora sejam perfeitamente factíveis iniciativas e políticas públicas na área agrícola que articulem e/ou viabilizem a satisfação de interesses convergentes de micro, pequenos, grandes, gigantes produtores rurais, sejam eles agricultores de subsistência, empresas agrícolas familiares, complexos agroindustriais exportadores de commodities etc.

Enfim, em tese, a complexidade e heterogeneidade do agronegócio brasileiro não é obstáculo suficiente para impedir a superação de dicotomias conceituais mencionadas, sendo possível adotar-se um conceito de agronegócio que contemple todos os atores e/ou agentes econômicos diretamente envolvidos com a atividade rural produtiva, independentemente do tamanho, do segmento e da região do país em que atuem. Mas uma visão abrangente e não discriminatória dos diferentes atores e/ou agentes

83 Cf. Medida Provisóra nº 870/2019. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/noticias/550465- medida-provisoria-preve-22-ministros-no-governo-bolsonaro/>. Acesso em: 10 Abr.2020.

84 O último Plano Safra Agrícola 2019-2020 destinou R$ 225,59 bilhões em créditos para financiamento de pequenos, médios e grandes produtores rurais brasileiros. Disponível em: < https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-06/plano-safra-tera-r-22559-bilhoes-em-creditos- para-agricultores-0>. Acesso em: 14 Abr. 2020.

econômicos do agronegócio demanda, já de saída, consensos linguísticos - em constante (trans)formação - a serem estabilizados mediante dinâmica interacional colaborativa e democrática entre os interessados, o que pode e deve ser pavimentado pelo Direito e pelos juristas.

A perspectiva estabelecida pela chamada Análise Jurídica da Política Econômica (AJPE), adotada neste trabalho, não só facilita a realização das tarefas necessárias à formação do entendimento jurídico crítico em relação à realidade empírica complexa da sojicultura tal como existente no Brasil, mas também auxilia a vislumbrar modos de superar problemas decorrentes de práticas estabelecidas na economia rural contemporaneamente.

Sob o aspecto da reconstrução de instituições, para além de atentar às nuances da interferência da tecnologia e do uso exacerbado de linguagem matemática em mercados agrícolas globalizados, a Análise Jurídica de Políticas Econômicas (AJPE)85,

em sua proposta de abertura interdisciplinar, também interage produtiva e construtivamente com conceitos da sociologia econômica. Assim, a AJPE apresenta-se como interessante referencial teórico tanto (i) para o objetivo geral deste trabalho – (des/re)construir ideias, conceitos e instituições relativas ao agronegócio brasileiro, de sorte a favorecer a noção de mercado agrícola sustentável, equitativo, inclusivo e, portanto, justo, valendo-se, aqui, predominantemente, dos aportes da Economia das Convenções (EC) - quanto (ii) para o objetivo específico de aferir a fruição empírica do direito de propriedade comercial do agricultor brasileiro de soja commodity padrão exportação mediante os ferramentais teóricos “Análise Posicional” e "Análise de Portfólio", legados igualmente pela AJPE.

O Direito, portanto, deve se dirigir à realidade vivida. Os juristas, por sua vez, diante de desafios contemporâneos que demandem trabalho interdisciplinar, devem assumir postura crítica e engajada no sentido de auxiliar a desconstruir e necessariamente reconstruir ideias, conceitos e instituições, especialmente por meio da pesquisa empírica.

O presente trabalho buscará contribuir nessa direção.

85 Quanto à AJPE, ver, especialmente, obras de Marcus Faro de Castro em Análise Jurídica da Política Econômica. Revista da Procuradoria-Geral do Banco Central./Banco Central do Brasil. Procuradoria- Geral.-Vol. 1, n. 1, dez. 2007 – Brasília: BCB, 2009; Direito, Tributação e Economia no Brasil: Aportes da Análise Jurídica da Política Econômica. Revista da Procuradoria-Geral do Banco Central./Banco Central do Brasil. Procuradoria-Geral. – Vol. 1, n. 2, jul-dez. 2011 – Brasília: BCB, 2011; New Legal Approaches to Policy Reform in Brazil. Revista de Direito da Universidade de Brasília. UnB: Brasília, 2013.

2. CONCEPÇÕES ECONÔMICAS DO AGRONEGÓCIO BRASILEIRO EM