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O papel social da mulher e sua inserção no mercado de trabalho: reflexos na dinâmica

As convenções do início do século XIV ditavam que o marido era o provedor do lar, que a mulher não precisava e não deveria ganhar dinheiro. As que ficavam viúvas, ou eram de uma elite empobrecida e precisavam sustentar seus filhos, faziam doces por encomendas, arranjo de flores, bordados e crivos, davam aulas de piano, dentre outras atividades que, além de pouco valorizadas, eram mal vistas pela sociedade. Assim, a trajetória das mulheres foi marcada pela submissão, que sofria com os mandos e desmandos masculinos, seja pela força física, seja pelas obrigações impostas pela sociedade.

As raízes históricas desse processo de dominação e jugo que penderam sobre as mulheres no decorrer dos séculos são destacadas por Coutinho (2003), ao trazer como exemplo de subordinação o que dizia o Código de Manu (1000 a.C) no Art.415:

Uma mulher está sob a guarda de seu pai durante a infância, sob a guarda de seu marido durante a juventude, sob a guarda de seus filhos em sua velhice; ela não deve jamais se conduzir à sua vontade. [...] A ciência mais útil para uma mulher é o governo da casa. (COUTINHO, 2003, p.33).

Para o filósofo Aristóteles (1997), a mulher embora livre não poderia participar da vida pública, porque suas deliberações careciam de razão, por ser essa conduzida pela emoção. Ao homem caberia, por natureza, a função de comandar, uma vez que possuiria qualidades morais de forma perfeita, consubstanciada na razão organizadora e a mulher, portanto, estaria destinada à função de obedecer.

Beauvoir (1980) sustenta que o pensamento rousseauniano (referente ao filósofo suíço e iluminista Jean-Jacques Rousseau – 1712-1778), observa o mesmo caráter de subordinação, de mando-obediência nas relações entre os sexos, acreditando que toda educação da mulher deve ser relativa ao homem, por acreditar que esta tem que ser feita para ceder ao homem e suportar-lhe as injustiças.

Com o desenvolvimento do sistema capitalista de produção diante da explosão da Revolução Industrial no final do século XVIII e decorrer do XIX, as mulheres foram lançadas na maquinaria do capital e extração de mais valia. Estas, assim como as crianças, passaram a vender sua força de trabalho ao processo produtivo, submetendo-se a tarefas extenuantes, sob jornadas excessivas pelas quais recebiam baixos salários. Pesquisadores do século XIX como Friedrich Engels, em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, e Karl Marx, em O Capital, desvelaram a condição degradante do trabalho feminino e de crianças nas fábricas e minas inglesas. Até mesmo escritores da literatura universal denunciaram, em seus romances, as condições aviltantes do trabalho feminino, das crianças e dos homens nas minas que abasteciam a indústria de países como Inglaterra e França, como exemplo o francês Émile Zola, na obra Germinal.

Neste contexto de exploração da força produtiva feminina, algumas leis trabalhistas voltaram-se para a proteção do trabalho da mulher, porém vários eram os discursos para justificar a desigualdade salarial. Segundo Coutinho (2003),

[...] tais leis, embora justificadas pelo fundamento da proteção, acabariam por cristalizar as desigualdades entre homens e mulheres, fundadas no preconceito de que o trabalho da mulher seria inferior ao do homem devido à existência de uma debilidade natural da mão-de-obra feminina, certamente associada à idéia de menor força física das mulheres, legitimando, assim, a percepção de

salários menores (COUTINHO, 2003, p. 33).

Mesmo com toda conquista no âmbito legal, Coutinho (2003) afirma que algumas formas de exploração perduraram durante muito tempo. Jornadas entre 14 e 18 horas e diferenças salariais acentuadas eram frequentes. A justificativa desse ato, socialmente difundida, continuava centrada nas aptidões femininas e masculinas, sob a alegação de que existiam serviços que só as mulheres poderiam executar com perfeição, enquanto outras só os homens poderiam, eficaz e artisticamente, fazer. Como exemplo, tem-se a função de gerenciar ou chefiar, que era dirigida especialmente ao homem.

Outra justificativa, desta vez utilizada por Bossa (1998), era o consenso de que era dever exclusivo do homem o sustento do lar, enquanto à mulher cabiam apenas atividades extradomésticas que permitissem a complementação do orçamento familiar. Com isto, percebe-se claramente que a moral vigente valorizava os deveres familiares exercidos exclusivamente pela mulher, partindo daí a concepção de que a mulher é a “Rainha do Lar” e que deve servir ao homem e aos filhos.

A partir da década de 1970, com o fortalecimento do movimento feminista, as mulheres conseguiram transpor barreiras conquistando um espaço maior no mercado de trabalho. Além disso, também passaram a contar com o aparecimento de instrumentos de controle de natalidade, o que afetou diretamente as relações de gênero, ocasionando a evolução das relações familiares.

Para Nunes (2003), esta redefinição das relações familiares e sua influência na redefinição dos papéis de gênero (masculino e feminino) encontraram na família o lugar privilegiado de manifestação. Neste sentido, afirmam diferenciações entre homem e mulher no seio do casal e da família, que perpassam por alterações profundas no „status‟ da mulher moderna, urbana, comparando à sua situação nas sociedades tradicionais, rurais. De mãe de família e dona de casa, „apenas‟, segundo os padrões tradicionais, passou à sócia e companheira, à igual ao homem (NUNES, 2003, p. 41).

Mesmo considerando que a relação igualitária entre gêneros ainda não é a regra, percebe-se a necessidade de se avançar nesta direção, excluindo a exclusividade do duplo papel familiar e profissional que atinge as mulheres e sobre a necessidade de serem criadas estruturas sociais que lhes permitam trabalhar fora de casa e os maridos também se ocuparem dos filhos e da família (NUNES, 2003, p. 49). Afinal, duplo papel não deve

restringir-se à mulher, e o direito de combinar emprego remunerado e maternidade ativa é elemento da qualidade de vida, à qual cada um deve ter direito de acesso (ONU, 1968, apud NUNES, 2003, p.49).

Além disto, é importante considerar que o conceito de família nas últimas décadas vem sofrendo inúmeras transformações decorrentes de mudanças econômicas, políticas, tecnológicas e sociais. Tal fato tem contribuído para a ocorrência de modelos alternativos ao modelo conjugal nuclear, como o aumento do número de famílias chefiadas por mulheres, de crianças sendo criadas por seus avós.

Consequentemente, Nunes (2003) afirma que a mudança no papel social da mulher provoca a ruptura da vida familiar nos moldes tradicionais, ou seja, nos moldes da família nuclear, patriarcal, acarretando o surgimento das famílias denominadas de classe média, que podem ser definidas a partir de seu caráter efêmero, indicando transitoriedade. Assim, com o intuito de universalizar as normas dominantes na classe média urbana, assume-se no interior do grupo social a concepção de que a mulher deve trabalhar no mercado, a educação dos filhos deve ser divida com o Estado e com a iniciativa privada e o matrimônio deixa de ser eterno, indissolúvel (NUNES, 2003, p.46).

Carvalho (2012), ao nos remeter à forte presença da mulher como provedora do lar, afirma que este fato pode ser considerado um dificultador para as famílias no processo de educação dos filhos, sendo aquelas em situação de vulnerabilidade social, expostas às condições de pobreza, violência e desigualdade, as mais propensas a sentir tal efeito.

Entre as novas características da família brasileira, é possível identificar a forte presença da mulher como provedora do lar, a mudança de papéis quanto ao genitor responsável pelo cuidado dos filhos, mas, principalmente, as maiores dificuldades que as famílias encontram na educação dos filhos num momento em que a mulher deixou o papel do lar em busca da realização também profissional ou da necessidade do sustento de sua família. Nesse sentido, as famílias que se encontraram em situação de vulnerabilidade social ganham destaque por acumularem não apenas estas características, mas também, o peso da desigualdade e da exclusão, que as priva na maioria das vezes de superarem as dificuldades que expõem seus filhos aos riscos, principalmente pela ausência de práticas educativas que previnam comportamentos inadequados (CARVALHO, 2012, p. 221).

A ascensão da mulher no mercado de trabalho, segundo Nunes (2003), também acarretou a redução do tamanho do grupo doméstico ao núcleo familiar-conjugal e a

segmentação familiar, que significa o isolamento da rede familiar ampliada. O isolamento da rede familiar ampliada ocorre a partir do momento que as famílias estão menores, os avós e outros familiares muitas vezes não vivem nas proximidades, e os bairros são menos coesos e comunitários do que no passado (CORSARO, 2011, p. 325). Acredita-se que este isolamento acarreta a perda pela família das suas funções de produção, políticas e religiosas, a divisão das responsabilidades financeiras e educacionais com instituições públicas e privadas passando a ser lugar voltado apenas para residência e consumo. Neste sentido, pode-se dizer que as principais funções que permanecem são socializar a criança e garantir equilíbrio psicológico ao adulto (NUNES, 2003, p.44).

Também pode-se afirmar que a imersão da mulher no mundo do trabalho acarretou a falta de tempo para os filhos, falta de tempo para o exercício do cuidado (CORSARO, 2011, p.325). As exigências do mercado de trabalho possuem como conseqüência imediata a forte pressão sobre as mulheres, que cada vez mais se queixam do tempo exíguo dedicado ao acompanhamento das atividades rotineiras dos seus filhos.

Diante desse quadro, constata-se a trajetória de responsabilização das famílias pela provisão de bem estar social, calcado por um padrão específico de inter-relação, denominado familismo, na qual, em nível macrossocial, a família é instituição provedora central e que, em nível microssocial, uma rede de mulheres (mães, filhas, avós, vizinhas, etc.) responde pelo cuidado, com as famílias estendidas, a vizinhança e a ajuda mútua (MARCONDES, 2013, p.49).

Contudo, Marcondes (2013, p. 49) salienta a importância da desfamilização, ou seja, a desresponsabilização da instituição familiar pela provisão de bem estar social, seja por meio da provisão estatal ou do mercado. A presença do Estado é destacada como garantidor e corresponsável pela provisão de bem estar social, de modo que não se deixem na mão das famílias as responsabilidades pelas contingências familiares. No entanto, a autora destaca a diferença entre corresponsabilidade de estatismo, ao pressupor mais engajamento do Estado, e não a sua responsabilização pela totalidade da provisão, alegando que a desfamilização nunca será ampla o suficiente para que a problemática do cuidado se resolva apenas na esfera pública, e, em verdade, o caminho da desfamilização plena pode não ser mesmo desejável (MARCONDES, 2013, p. 50).

Em consequência, tais observações nos permitem avançar na compreensão da família e seus elementos constituintes na sociedade contemporânea, sem perder de vista as transformações na dinâmica familiar e os impactos na vivência da infância.