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2 O MUNDO QUE O MESTIÇO CRIOU: INTELECTUAIS E NARRATIVAS DE

2.1 NARRATIVAS DA MESTIÇAGEM

2.1.1 Parênteses conceituais: identidade e mestiçagem

Stuart Hall em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade (2006, p. 21), postula que “Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada.”.

Uma vez formada e formulada, pode-se compreender a identidade não apenas como “ganhada ou perdida”, mas também como negociada e/ou criada. Como produtos do processo histórico, as identidades se adéquam aos contextos nos quais se inserem, bem como atendem a determinadas necessidades de grupos que as reivindicam para si moldando-as a partir de seus interesses. Desta forma, a identidade também passa a ser uma questão política, posto que, “A identidade se torna uma questão de poder e autoridade quando um grupo procura realizar a si próprio de uma forma política. Este grupo pode ser uma nação, um Estado, um movimento, uma classe, ou alguma combinação instável de todos eles” (GILROY, 2007, p. 125).

As questões identitárias passam a ser construídas por meio de relatos, narrativas que dão conta de aspectos que formam, em macro contextos, a(s) ideia(s) de nação, por exemplo, e para se firmarem ao ponto de serem oficializadas, institucionalizadas, elas passam pelo processo de negociação, como pontua Hugo Achugar (2006, p. 162-163). Esses relatos que moldam a identidade são produzidos, como destaca Achugar (Ibid.), a partir de uma negociação que envolve intelectuais, ou “ativistas vinculados aos sujeitos sociais tradicionais”, ou até mesmo novos sujeitos, em uma disputa pelo discurso e pela representação. A negociação implica em “uma batalha por ocupar a posição do que tem/ possui a história, do que sabe e do que escolhe.” (Ibid.). E possuir este relato, criar esta identidade, é parte crucial nas disputas pelo poder.

No caso de Cabo Verde, a reivindicação/criação da identidade mestiça pela elite letrada, serviu como forma de se distinguir dos portugueses, na época colonial, colocando-se como “autênticos filhos da terra” e, portanto, aqueles que deveriam ter o domínio do arquipélago, ocupando os cargos exclusivos destinados aos lusitanos dentro da administração colonial.

Para exercer tamanha influência dentro das estruturas sociais, de modo a alcançar uma ascensão de classe, a mestiçagem cabo-verdiana atravessou as três concepções para o termo que Verônica Toste Daflon (2014, p. 309) estipula; a) como processos de mistura biológica de diferentes fenótipos/raças humanos; b) enquanto ideologia utilizada nas narrativas nacionais de vários países que fizeram parte das colonizações ibéricas; c) e no formato de teoria antropológica, dissociada da ideia de raça, que descreve práticas de bricolagem, fusão, sincretismo e hibridização cultural, para abarcar as aglutinações de valores, hábitos, princípios e práticas culturais entre variadas etnias. Ao passo que se alega a não existência de grupos de habitantes nascidas(os) nas ilhas13, como sinalizado anteriormente, as(os) nativas(os) cabo- verdianas(os) sob o signo da miscigenação, posto que, conforme descreve Lopes Filho (1983), a filiação dos primeiros “filhos da terra” não poderia ser de mãe e pai portugueses/europeus, cabendo a maternidade às mulheres sequestradas pela escravização na então designada “Costa da Guiné”.

Mesmo sem o reconhecimento da paternidade de filhos14 oriundos de relacionamentos não oficializados (e nem sempre consensuais), alguns primogênitos conseguiram ascender socialmente através do regime15 de morgadios, o qual estabelecia a inalienabilidade e indivisibilidade das terras, além da isenção de impostos à Coroa e privilégios nas vendas de artigos produzidos em suas propriedades. Posteriormente, com o envio dos filhos16 para formação na antiga metrópole, as famílias pertencentes à elite vislumbravam o acesso aos cargos administrativos nas ilhas, lugares ocupados predominantemente por portugueses, mas que garantiam uma estabilidade financeira maior que o cultivo da terra, face ao arrefecimento do comércio com os países continentais que o fim do regime escravista não mais propiciava.

Foi essa classe interposta entre os colonos brancos/europeus e os camponeses que

13 Sobre o processo de reterritorialização enquanto configurador de identidades, etnicidades e territorialidades, Furtado (2013, p. 4) oferece a seguinte análise/hipótese: “No caso cabo-verdiano, uma colônia de povoamento, sustentamos que existe um triplo processo que imbrica a relação entre território, etnicidades e identidades. Com efeito, tendo sido, como atestam muitos historiadores, encontradas desabitadas, a ocupação das ilhas de Cabo Verde constitui, a um só tempo, (i) um processo de construção de um território (no sentido de que o território é o processo de historicização de um espaço físico e também simbólico, (ii) de desterritorialização, uma vez que implicou, no caso dos africanos e de muitos degredados europeus, a expropriação de seus territórios de origem, (iii) e de reterritorialização, uma vez que os moradores das ilhas tiveram que (re)construir e (re)construir-se num novo território”.

14 O reconhecimento de filhas nessa conjuntura não é discutido, no que pode ser compreendido como uma recusa ainda maior em registrar as meninas com paternidade portuguesa.

15 Regime sucessor das donatarias e sesmarias que não permitiam a sucessão patrimonial dos donatários. Foi através da estratégia de fixação dos morgadios que a Coroa encontrou uma forma de maior ocupação das terras pelos colonos a partir do século XIV. Apesar de que em um primeiro momento, uma pequena elite branca colonizadora teria monopolizado a ocupação das terras. (BORBA; ANJOS, 2012, p. 41).

16 O uso do gênero masculino se refere à característica deste tipo de emigração ser realizado principalmente por homens, como pontua Marzia Grassi (2007).

reivindicou a alcunha de mestiços17. Sob esse prisma, os mestiços serviam como mediadores entre a coroa portuguesa e os pequenos comerciantes e agricultores, ou nos termos de Anjos (2004, p. 275) entre a “população do arquipélago e a metrópole – Portugal”, visto que representavam o híbrido entre essas duas classes/polos – aliás, muito mais identificados com a primeira. Assim, além de compreender a identidade mestiça enquanto intermédio étnico de europeus e africanos (como pontuam Gabriel Fernandes (2002), José Carlos dos Anjos (2006) e Cláudio Furtado (2012)), – respondendo a uma pergunta anterior – é preciso compreendê-la

também como categoria de classe, posto que foi a partir da mestiçagem que a elite letrada

erigiu a ‘peculiaridade’ da identidade cabo-verdiana enquanto grupo privilegiado.

Desse modo, a elite cabo-verdiana do período colonial se legitimava por meio de sua condição nativa, como descendentes de europeus nascidos nas ilhas, mas como já citado anteriormente, Lopes Filho (1983, p. 19) assinala que a herança materna das(os) primeiras(os) cabo-verdianas(os) é majoritariamente africana. No processo de mestiçagem reivindicada por essa elite, o espólio das mães negras (predominantemente bissau-guineenses) se esvazia perante o legado paterno português e que, por sua vez, são sobrepujados pela condição de originários do arquipélago. Neste sentido, a proposição de Boaventura Santos (2003, p. 40) de que, como “Expressão da democracia racial, os mulatos contribuíram – sem querer e contra os seus interesses — para legitimar a desigualdade social racista.” não se sustenta, principalmente no caso de Cabo Verde, uma vez que o tipo mestiço se impõe enquanto classe superior, subjugando outras categorias para se sobressair no cenário político das ilhas.

É interessante observar que, através da simplificação, a identidade parece algo apenas biológico, envolvendo heranças genéticas e locais de nascimento, quando mais profundamente o processo de identificação se respalda como forma de distinção que busca uma peculiaridade, quase uma autenticidade, através de narrativas históricas que promovam a sustentação/legitimação desse status ‘diferenciado’. Sob essa ótica, Gomes dos Anjos (2006, p. 140) propõe um sistema trinário de oposições para a compreensão dessa reivindicação da diferença, no qual o mestiço se opõe ao africano e concomitantemente também é contrário ao europeu, e estes dois são divergentes entre si – já em termos “raciais”.

A diferença assim adquire um protagonismo ainda maior que a identidade, colocando- se em planos como o físico, o psíquico e o social. A distinção precisa ser marcada por intermédio de diversas formas simbólicas, como postula Hall (2006, p. 63), seja por meio de “sistemas de representação e práticas sociais (discursos)”, seja através de características

17 Coloco o termo apenas no gênero masculino para evidenciar, também, que tal reivindicação é parte de uma demanda idealizada, principalmente, por homens.

físicas como cor da pele, textura do cabelo e outras marcas simbólicas “a fim de diferenciar um grupo de outro”. É dessa forma que José Carlos Gomes dos Anjos (2006) descreve a mestiçagem, como uma diferença idealizada, um “totem”:

A cabo-verdianidade tem, sob esse prisma, a mestiçagem como uma espécie de totem. Ela é uma espécie de essência que conforma o conjunto dos corpos cabo-verdianos. Perfil físico, relações sociais, a morabeza, posição geográfica, tudo pode ser lido a partir desse tipo médio, nem negro, nem branco, cuja melhor expressão é o velho mito dos restos da Atlântida cultivado entre os intelectuais cabo-verdianos desde o início do século. (ANJOS, 2006, p. 140)

Contudo, dentro desse processo de “combinação” racial, é importante definir as diferenças entre as categorias analíticas de crioulização e mestiçagem, como destaca Cláudio Furtado (2012, p. 152):

Nos estudos sobre Cabo Verde, as categorias analíticas centrais têm sido, majoritariamente, a mestiçagem e a crioulização, como elementos caracterizadores dos habitantes locais.

Para o caso da mestiçagem, trata-se, como o refere Sérgio Costa, de uma noção sociológica e não fenotípica, que fundamenta grande parte dos trabalhos dos construtores da cabo-verdianidade.

Já o conceito de crioulização é fortemente polissêmico, mudando de significado de acordo com autores e momentos históricos. No entanto, o que parece comum entre os autores, que o elegem como categoria explicativa, é a dimensão linguística, ou seja, a capacidade de produção de um novo instrumento de integração societário, e a criação de um ethos cultural específico não passível de ser subsumido nas suas matrizes.

Portanto, segundo Furtado (2012), enquanto a mestiçagem se apresenta como noção sociológica, não baseada em aspectos físicos – o que não excluí sua configuração racial –, fundamental para a construção de uma ‘peculiaridade’ cabo-verdiana, a crioulização é um conceito polissêmico que se relaciona predominantemente com a questão linguística, no caso da língua materna do crioulo cabo-verdiano, o qual engendra um conjunto de traços identitários que reconhece igualmente as contribuições recebidas.

Entretanto, diferentemente do que propõe Furtado (2012), a teorização proposta por Mário Lúcio Sousa acerca da crioulização não prioriza a dimensão linguística e se reivindica como um processo de aquisição cultural. Discuto com mais profundidade no quinto capítulo que, mesmo abordando temas como a escravização e a população negra e pobre das ilhas em contexto de colonização, o tratamento de tais aspectos vislumbra uma experiência universal, muito mais relacionada à diáspora negra nas Américas – numa perspectiva bastante ocidentalizada – do que o reconhecimento da contribuição negra dos demais países africanos para a cultura cabo-verdiana.