• Nenhum resultado encontrado

Parcerias que deram certo? – Ajustes entre homens e mulheres para a educação e conservação dos órfãos

No documento Belo Horizonte, 13 de fevereiro 2017 (páginas 167-170)

Foi perguntado (...) a ele dito tutor pela pessoa do órfão Basílio e por ele foi respondido que se achava vivendo na companhia de sua mãe Efigênia Roseira que o tratava e educava trazendo-o na escola debaixo da inspeção dele tutor...237

O fragmento destacado acima é parte da prestação de contas do tutor João Ribeiro Guedes. João era irmão do negociante Manuel Ribeiro Guedes, que havia falecido no ano de 1788, em Vila Rica, mesmo ano em que o termo de tutoria foi assinado.

Em 1786, quando Manuel decidiu mandar redigir suas últimas vontades em testamento, ele nomeou como seu herdeiro universal um tal de Basílio, pardo forro, filho de Efigênia Roseira, crioula forra e moradora da rua Nova de Vila Rica. Como Basílio tinha apenas 5 anos de idade quando o inventariado faleceu, a nomeação de um tutor se fez necessária, sendo eleito para tal exercício o já mencionado João, que também foi o testamenteiro e inventariante.

Detalhe importante é que, na verdade, o tal Basílio era filho do testador, informação que conseguimos identificar apenas posteriormente, quando o menor alcançou a provisão régia para sua emancipação. Diante disso, não tivemos condições de vislumbrar como se dava a relação de Manuel com a mãe de Basílio.

Apesar disso, pelas declarações do tutor apresentadas no trecho acima, parece que ele e Efigênia conseguiram estabelecer uma parceria para cuidar de Basílio: a mãe manteve o menor sob seus cuidados, inclusive “trazendo-o na escola”, enquanto o tutor assumia a função de inspecionar essa tarefa.

Na documentação investigada vimos que esses “arranjos” foram bastante comuns: o juiz ou o pai do órfão nomeava um homem para assumir a tutoria, mas, no dia a dia, era uma mulher que ficava com o menor. Acreditamos que isso se dava por diferentes motivos: o tutor já tinha sua família constituída e não tinha condições de levar o órfão para seu domicílio238; em decorrência de acordos, inclusive mediante

237 Inventário de Manuel Ribeiro Guedes. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 118, Auto 1500, Ano 1788,

fl. 27v.

238 Mesmo nos casos em que o órfão ia morar com o tutor, é possível que ele fosse cuidado por uma mulher

– a esposa do tutor ou uma escrava, por exemplo. Afinal, como apontamos nos capítulos anteriores, era entendimento do período que o cuidado diário era prerrogativa feminina. Soma-se a isto uma outra forma de pensar especificamente sobre as meninas: elas deveriam aprender as “prendas próprias de seu sexo” com uma mulher. Em outros termos, entendemos que essa “divisão de tarefas” entre tutores e o grupo feminino foi bem maior, apesar de não podermos afirmar em decorrência da ausência de fontes. Essa compreensão deu-se em decorrência das amostras que analisaremos nesse capítulo, mas também em virtude de uma

168 pagamentos firmados entre o tutor e uma cuidadora239; quando eram parentes240;

quando o tutor assinava o termo de tutoria de maneira coagida241; previamente

combinado entre as partes242; dentre outros.

O objetivo deste capítulo é analisar esses tipos de relações estabelecidas entre alguns tutores e mulheres. Em nosso entendimento, a constituição de parcerias configurava-se como uma possibilidade para as mulheres participarem das decisões ligadas à administração e sobrevivência da família e contribuir na definição do futuro e educação dos órfãos quando elas não assumiam a tutoria. Nesses termos, as parcerias poderiam se configurar como uma forma de estratégia para as mulheres.

Para este capítulo, estamos entendendo o termo “parceria” como os ajustes surgidos entre alguns tutores e mulheres a partir do falecimento do pai do órfão. Esses ajustes poderiam ser manifestados, como os contratos com criadoras pagas ou respeitando-se uma organização familiar já existente que não se alterava em decorrência da morte paterna. Retomando a noção de Bourdieu (2004), essas parcerias seriam então estratégias na medida em que seriam frutos de decisões explícitas ou praticadas sem um planejamento prévio entre as partes, mas que permitiam às mulheres participarem da educação e manutenção de seu grupo familiar.

Podemos dizer que as parcerias surgiam em virtude de uma necessidade advinda da legislação que obrigava a nomeação de um tutor. Mas não podemos deixar

realidade que será discutida no próximo capítulo a respeito dos expostos. Houve um número significativo de homens matriculados na Câmara Municipal de Vila Rica que assumiram a criação de enjeitados, mediante pagamento. Conforme Franco (2014), eles certamente eram casados. Laura de Mello e Souza (1999) fez as mesmas considerações para a cidade de Mariana do século XVIII e acrescentou que poderiam ser também senhores de escravos que usavam suas cativas como criadeiras.

239 O Alferes Manoel Dias Monteiro, por exemplo, contratou uma tal de Paula da Costa Guimarães para

cuidar de cinco órfãos, filhos do falecido Alferes Antônio Lopes de Oliveira. Consta que Paula levou todos os órfãos para sua companhia e que o tutor havia combinado de “assistir com o necessário”. Inventário de Antônio Lopes de Oliveira. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 56, Auto 630, Ano 1816.

240 Dentre as possibilidades: um dos filhos do falecido que assumia a tutoria dos irmãos e ainda morava

com a mãe; o tutor e a mãe do órfão eram irmãos e moravam na mesma casa; o tutor era o padrasto. Antônio Martins Diniz, por exemplo, era tutor dos órfãos de Antônio Marinho da Cruz. Em um requerimento existente dentro do inventário deste último, o tutor ressaltou que a mãe dos menores “morava junto com ele, pois eram irmãos”. Inventário de Antônio Marinho da Cruz. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 56, Auto 625, Ano 1815, fl. 44.

241 Há vários casos na documentação que evidenciaram como a nomeação de um tutor representava, muitas

vezes, uma tarefa difícil para o juiz de órfãos. Nessas circunstâncias, os homens indicados alegavam impossibilidades variadas, como já destacamos no capítulo 2 e como, do mesmo modo, foi observado por Oliveira (2008).

242 João Nunes Maurício Lisboa, por exemplo, foi nomeado tutor de uma exposta chamada Antônia, que

morava na casa de Ana Maria de Faria. A menina havia sido uma das herdeiras de Miguel Moreira Maia, que lhe deixou em testamento uma casa, que deveria ficar sob os cuidados de Ana Maria até que a menor tivesse capacidade para cuidar do bem doado. Juntamente ao termo de tutoria que João Nunes assinou constava a seguinte informação: "Declaro que assina o dito tutor a tutoria sem obrigação alguma de responder pelos alugueis das ditas casas, mas sim a inventariante [Ana Maria de Faria] que se acha sustentando e criando a dita órfã, debaixo deste protesto assina o dito tutor e a inventariante..." Inventário de Miguel Moreira Maia. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 122, Auto 1537, Ano 1812, fl. 06.

169 de considerar também que, em alguns casos, elas ocorriam em decorrência do contexto existente. Citemos aqui, por exemplo, quando as mulheres eram as inventariantes ou arrematavam os bens dos menores, o que, consequentemente, provocava a permanência das legítimas herdadas nas mãos femininas.

Ao analisarmos a documentação, vimos que, a partir das parcerias, os papéis se imbricavam. Como apresentaremos, era bastante comum as mulheres entrarem em contato com os juízes de órfãos solicitando dinheiro guardado no cofre do juízo, o que, em tese, era de obrigação do tutor. Também identificamos prestações de contas de tutorias declaradas pelo tutor e a mulher, quando sabemos que isso era da obrigação apenas do primeiro. Sendo assim, para analisá-las, não podemos deixar de considerar as relações de gênero que se estabeleceram.

Como destacamos na introdução, o “lugar educativo” ocupado pelas mulheres era dinâmico. Assim sendo, temos que pensar nas relações que se estabeleceram e que acabaram influenciando as ações femininas. No presente capítulo, especificamente, temos que considerar as relações constituídas com os tutores que estavam fundadas nas diferenças entre os sexos: a mulher sendo responsável pelas questões “mais práticas” da criação e educação dos órfãos; e o tutor, das obrigações “legais”, ligadas ao poder, em conformidade com Scott (1990).

Nesse sentido, nossa intenção é demonstrar que as parcerias acabaram permitindo uma releitura da tutoria, na qual os papéis prescritos eram vivenciados conforme o contexto e as necessidades. Mais do que isto, evidenciar que a tutoria “compartilhada” permitia um intenso exercício de poder por parte dos tutores e das mulheres que necessitavam jogar o “jogo social” então existente para alcançar seus objetivos: no caso dos tutores, não terem problemas com a justiça, correndo o risco de serem presos ou arcar com possíveis prejuízos das legítimas dos órfãos; já em relação às mulheres, conseguirem manter a si e a seu grupo familiar, além de promover algum tipo de educação para os menores como forma de garantir o sustento deles no futuro.

Para realizarmos essa discussão, organizamos este capítulo em quatro partes. Num primeiro momento vamos apresentar os homens e mulheres que estabeleceram as parcerias, segundo a documentação investigada. Depois, ater-nos-emos aos motivos e como se davam as parcerias. É ainda nesta etapa que evidenciaremos algumas parcerias que não deram certo. Em seguida, nosso interesse é trazermos à luz os tipos de educação que resultaram desses acordos. Para finalizar o presente capítulo, consideramos importante trazer a trajetória da família de Dona Josefa de Ávila Figueiredo. Nossa intenção, a partir dessa família, é tecer um quadro que demonstre de modo mais particular como a tutoria conferida a um homem não impossibilitava a

170 participação feminina nas questões familiares ligadas à administração dos bens e educação das crianças e jovens.

3.1

Estabelecendo um perfil – os homes e mulheres envolvidos

No documento Belo Horizonte, 13 de fevereiro 2017 (páginas 167-170)