• Nenhum resultado encontrado

6.3 Memórias do processo de construção do referencial curricular amapaense a partir da

6.4.1 Participação de agentes não educacionais no processo

Ao entrevistarmos os participantes, levamos em consideração principalmente sua participação em seu componente curricular, sendo que algumas categorias ficam mais claras em algumas entrevistas e em outras não, por parte dos professores. Desta forma, alguns professores apresentam narrativas mais aprofundadas e outros manifestam-se apenas no plano da aparência. Quando pedimos ao entrevistado Numênio para ele descrever a participação de agentes não educacionais no processo de elaboração do RCA, o mesmo descreve essa participação primeiro em uma visão geral que remonta até mesmo um pouco da história do seu componente dentro da BNCC e do RCA. Nessa perspectiva, quando questionamos Numênio se ele havia percebido a participação de agentes não educacionais no processo de construção do RCA, em meio a sua narrativa a resposta foi:

Pensado o externo para além do Amapá, sim, esse componente não são todas as editoras que produzem livros didáticos, mas aquelas editoras que produzem livros didáticos e isso significava ter mercado pra venda de seus dos respectivos materiais, elas acompanharam todo o processo e buscaram influenciar esse processo, na grande maioria dos casos as editoras que produzem, distribuem e vendem material didático, elas estão associadas a grupos. Então é uma disputa por espaço e por público comprador de seus materiais didáticos, então essa influência aconteceu (NUMÊNIO).

O relato de Numênio denuncia uma forte pressão em torno de seu componente por parte de empresas que produzem livros didáticos. Sabemos que não é de hoje que empresas buscam a todo custo lucrar com a educação, sendo que o forte apelo pelo lucro e a mercantilização da educação implicam na fragilização dos sistemas públicos educativos. Esse processo, para além de ter impactos na produção de material didático como é o caso do componente curricular citado pelo entrevistado Numênio, também tem implicação nas condições de trabalho, na gestão e no próprio financiamento da educação pública.

A denúncia de Numênio retoma os enfrentamentos da escola pública nos debates em esfera nacional em torno dos limites entre o público e o privado, bem como as possíveis relações que poderiam se estabelecer entre os mesmos com a implementação da BNCC. Para Grosso e Magalhães (2016), dentre os modelos de privatização usados pelo capital para mercantilizar a educação pública encontra-se a privatização da política educacional marcada

pela consolidação de agentes privados influenciando as tomadas de decisões nas políticas educativos.

Em meio ao debate, Costa (2018) explicita que existe um movimento de internacionalização da Educação Básica de interesses político-econômicos que conta com agentes estatais e privados que desenvolvem estratégias e instrumentos como: formulação de políticas curriculares, reconfigurações, adaptações dos currículos com foco em conteúdo do conhecimento, aprendizagens e avaliações. Assim, a fala de Numênio evidencia que a educação da Amazônia Amapaense também está passando por um processo de pressão do mercado do livro didático para que o nosso RCA, que deveria ser uma proposta mais regionalizada, não seja diferente da proposta nacional, uma vez que a padronização nesse processo facilita a produção de materiais didáticos dessas empresas que podem vender em maior quantidade seus livros, além de aferir um maior lucro com a produção mais barata devido à padronização.

Esse movimento influenciou a política educacional e, consequentemente, a política de currículo, que passaram a ser criadas com a presença do setor privado em parceria com o Estado. Desta forma, o desenvolvimento da política de currículo encontra-se permeada por agentes que disputam o poder de decisão no momento de construção das normativas educacionais. Para D'Avila (2018), os agentes privados na política educacional brasileira assumem o papel de intelectuais orgânicos do capital, criticando e desqualificando tudo que vai de encontro ao projeto neoliberal de educação. Os agentes propõem a política educacional nos moldes de suas próprias necessidades. Não é por acaso que Freitas (2018), ao analisar o componente citado por Numênio, evidencia que muitos são os ajustes necessários para que o componente venha atender seus fundamentos teóricos e pedagógicos.

Em um segundo momento, Numênio faz uma análise da forma como ele percebeu a influência de agentes não educacionais no contexto local da Amazônia Amapaense, não perdendo de vista que processo de elaboração da BNCC e o processo de Elaboração do RCA, que são complementares. Como podemos evidenciar no próximo trecho de sua entrevista:

Pensando na influência mais localizada no estado do Amapá, essa influência foi um pouco mais tímida, Mas, precisamos entender que antes do RCA teve a BNCC e a BNCC, foram sim influências pro grupos editoriais e grupos econômicos. Por outro lado, também teve aquelas editoras para que não reconhecem o componente, inclusive propõe que ele seja retirada da base de referências, dos referenciais curriculares, fizeram inclusive campanha para que ele não permanecesse. Essas editoras hoje elas dão todo o suporte para todos os componentes curriculares. Você entra na plataforma delas, você pode fazer um planejamento, mas você não

encontra o componente que eu trabalho, porque é, digamos assim, discriminado, desvalorizado (NUMÊNIO).

O trecho acima deixa evidente que, direta ou indiretamente, o RCA seria afetado pelos interesses de grupos econômicos. A análise feita pelo entrevistado é a mesma que buscamos fazer no desenvolvimento dessa pesquisa, que pauta-se na não desvinculação dos elementos locais com os elementos macroestruturais, pois acreditamos que a não desvinculação desses elementos possibilita o entendimento da ideologia dominante por trás da política de currículo de base nacional.

Partilhamos da mesma percepção de D'Avila (2018), que nos ensina que os agentes privados a serviço do grande capital são, na realidade, representantes tanto do mercado quanto do Estado, que buscam controlar a política educacional de acordo com seus interesses.

Nessa lógica, os agentes podem ser pessoas físicas, institutos, fundações ou mesmo empresas de interesses econômicos e ideológicos. Cabe explicitar que os agentes atuam dentro das esferas governamentais marcando presença dentro do próprio estado e atuam também na forma de instituições filantrópica ou privada.

Ainda sobre a entrevista de Numênio, percebemos que o entrevistado não fez alusão direta às instituições não educacionais que estiveram presentes influenciando o processo de construção do RCA. Todavia, outra entrevistada neste mesmo eixo narrativo, quando questionada se existiu participação de instituições não educacionais no processo de elaboração do RCA respondeu: “Sim, teve a Fundação Lemann que nos orientou” (MONALISA). Essa instituição apresenta-se como uma organização sem fins lucrativos fundada pelo bilionário Jorge Paulo Lemann em 2002. Sua missão é:

Colaborar com pessoas e instituições em iniciativas de grande impacto que garantam a aprendizagem de todos os alunos e formar líderes que resolvam os problemas sociais do país, levando o Brasil a um salto de desenvolvimento com equidade (LEMANN, 2020).

Para alcançar sua missão essa fundação tem atuado em escolas públicas disponibilizando ferramentas online aos estudantes, apoiando a formação de gestores educacionais, implementado modelos de formação de professores, dentre outras ações.

Segundo Costa (2018), essa mesma instituição organizou e patrocinou o Seminário Internacional “Liderando Reformas Educacionais”, onde ocorreu a criação do Movimento Todos pela Base Nacional Comum na educação nos Estados Unidos. Essa fundação, na perspectiva de Costa (2018), compõe uma grande rede de parceiros privados com os agentes

estatais como UNDIME, CONSED e CNE, que são os responsáveis por idealizarem a construção da BNCC no Brasil.

Para D'Avila (2018), os agentes privados elaboram seus projetos com fortes investimentos na educação no que diz respeito às direções das políticas curriculares. Nessa lógica, o autor alerta que a escola, nessa perspectiva, pode se tornar um instrumento ativo de manutenção da ordem econômica. Desta forma, Costa (2018) alerta que não podemos ter uma visão ingênua da BNCC, haja vista que foi visível a participação de forma direta da Fundação Lemann e do Movimento pela Base na formulação da mesma.

Outras instituições foram apareceram na medida em que entrevistamos outros professores. Desta forma, quando perguntamos a professora Shely se ela conseguiu perceber a participação de agentes não educacionais no processo de construção do RCA, em meio à sua narrativa a resposta foi:

Eu consigo, eles não são ligados à educação, mas eles são a UNCME, a UNDIME, sempre nos acompanharam em todas as formações, em todas as organizações, estão presentes desde o primeiro encontro que nós tivemos com a equipe eles estão presentes (SHELY).

Essas duas instituições são apontadas como parceiras do RCA e suas logomarcas encontram-se expressas na capa RCA, como já foi evidenciado anteriormente. Em uma análise superficial pode-se deduzir (confuso, rever) erroneamente que essas duas instituições são instituições essencialmente educacionais. Todavia, a União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME) constitui-se como uma entidade de direito privado, sem fins lucrativos que possui sede e foro do Distrito Federal (DF), sendo que os associados podem ser os Conselhos Municipais de Educação legalmente criados e instituídos.

Uma vez associados, os conselhos se submetem a contribuir, diretamente com o pagamento de anuidade e indiretamente, com recursos para a manutenção da entidade. Dentre as suas finalidades, conforme seu regimento, estão: buscar soluções para os problemas educacionais comuns e diferenciados dos municípios brasileiros; participar da formulação de políticas educacionais, com representação em instâncias decisórias; e acompanhar sua concretização nos planos, programas e projetos correspondentes.

A UNDIME é uma sociedade civil, de pessoa jurídica, também de direito privado, sem fins lucrativos; com duração por tempo indeterminado, possui autonomia administrativa, financeira e patrimonial. Sua sede e foro, da mesma forma que a UCME, está no DF. Dentre as suas finalidades, conforme seu estatuto, estão: participar da formulação de políticas

educacionais nacionais, com representação em instâncias decisórias; e acompanhar sua concretização nos planos, programas e projetos correspondentes.

Para Silva (2018), essas instituições privadas influenciaram a construção das mais importantes decisões que são tomadas em nível de educação nacional. Não é por acaso que identifica-se a participação das mesmas entre os autores que ajudaram a construir o PNE.

Costa (2018) destaca que o foco dessa rede de parceiros presentes nas decisões do Estado encontra-se no estímulo da colaboração para se chegar a uma verdadeira convergência entre os setores públicos e privados.

D'Avila (2018) ressalta que os agentes privados expandem suas ações em todo o território brasileiro tanto na esfera privada quanto na esfera pública com as parcerias celebradas com Secretarias de Educação municipais e estaduais. Para Costa (2018), essa colaboração cria uma narrativa hegemônica sobre a qualidade da educação e os caminhos para atingi-la. D'Avila (2018) destaca que os agentes privados assumem papel de comissários do grupo dominante com o objetivo de estruturar o currículo na lógica empresarial, na qual a escola é pensada, sobretudo, para produzir os processos de subordinação. Para Freire e Guimarães (2003) a escola capitalista é a escola que produz a subordinação de acordo com o respectivo sistema, por isso mesmo é a escola escrava que encontra-se desprovida de um pensamento crítico.

Nesta mesma categoria foi possível identificamos outra instituição privada;

diferentemente das outras anteriores, essa encontra-se ligada mais ao aspecto prático da implantação da BNCC, como foi relatado: “Fomos para Brasília fazer um curso de formação, e quem deu esse curso foi um instituto privado, foi o REUNA, mas foi contratado pelo MEC para dar esse curso” (MIGUEL).

O instituto REUNA constitui-se juridicamente como uma associação privada. Dentre suas atividades desenvolvidas temos gestão, assessoria, consultoria, orientação e assistência ao sistema educacional em matérias de planejamento, organização e controle de finanças. É uma autêntica empresa educacional e adota um discurso de contribuir com um sistema educacional mais coerente (com a lógica do capital). Nessa lógica, possui quatro frentes de atuação: formação, material didático, currículo e avaliação. É uma parceira da BNCC construindo ferramentas e conteúdos a partir da filosofia educacional empregada pela mesma.

Para D’Avila (2018), a presença de agentes privados em meio à política busca garantir e justificar o discurso de que a educação da esfera pública é um fracasso. Em meio à política educacional o discurso é que falta qualidade na educação pública. Assim, Costa (2018) explicita que a qualidade da educação oriunda da BNCC constitui-se como uma

somatória de conteúdos poderosos, que foram cuidadosamente elaborados e que encontram-se em um estreito alinhamento com os direitos de aprendizagem que torna uniforme o que deve ser aprendido e controlado pelos padrões de avaliação. Essa busca incessante pelo domínio do currículo vem da certeza que a classe dominante tem que o currículo constitui-se como instrumento fundamental de formação e, consequentemente, como projeto de sociedade.

6.5 Direito de aprendizagem

Já evidenciamos que o direito de aprendizagem é um dentre os pilares que sustentam a BNCC e o RCA; nessa acepção buscamos saber dos professores formadores como eles compreendiam os direitos dentro do RCA levando em consideração a relação dos direitos de aprendizagem e Amazônia Amapaense. Assim, os resultados nesta categoria de análise foram dispostos didaticamente em duas subseções: 1. Relação das competências com os direitos de aprendizagem; e 2. RCA os direitos de aprendizagem na Amazônia Amapaense.