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Participação no contexto brasileiro: reflexões, reivindicações e conquistas

2. PROCESSOS DEMOCRÁTICOS NA ESFERA SOCIAL

2.3 Participação no contexto brasileiro: reflexões, reivindicações e conquistas

Na América Latina a busca por espaços que aumentam a participação na esfera social é ainda um dos aspectos mais desafiadores no contexto das relações democráticas. Para Jacobi (2002), a partir da década de noventa, a participação e suas diversas dimensões vem sendo defendida e institucionalizada dentro da democracia representativa. Diante disso, a participação popular é vista como uma das maneiras de se ampliar as possibilidades de acesso dos setores populares para o desenvolvimento social, fortalecimento dos mecanismos democráticos, bem como de controle social do Estado. No entanto, o que se percebe é que, em linhas gerais, as propostas participativas ainda estão mais no plano retórico do que efetivamente prático.

Carvalho, M. do C. A. A. (1998) em uma discussão sobre formas de participação social no contexto brasileiro, destaca que a década de noventa ficou marcada por uma generalização do discurso de participação. Segundo ela, é importante diferenciarmos as expressões democracia, participação, controle social e parceria já que elas não possuem o mesmo significado. Nesse sentido, Teixeira (2001) destaca que a participação não pode ser vista simplesmente como um conjunto de regras que constituem, por exemplo, uma democracia procedimentalista, conforme discutido em Bobbio (1997), mas com mecanismos próprios, que

podem ser institucionais ou não. Os institucionais podem se caracterizar pela permanência e regularidade. No entanto, corre “o risco de envolver os agentes sociais na lógica própria do poder, na racionalidade técnico-burocrática” (TEIXEIRA, 2001, p. 29). Assim, há a necessidade de outros mecanismos de participação como o dos movimentos sociais que, de alguma maneira, garantem a autonomia e potencialização de ações frente ao Estado, à sociedade política e ao mercado.

As redefinições das relações entre sociedade civil e Estado, vivenciadas no Brasil na década de setenta, foi marcada por um contexto de mudanças no âmbito econômico e político. Essa conjuntura resultou em demandas sociais distintas suscitando novos espaços, formas de participação e relacionamento com o poder público (CARVALHO, M. do C. A. A. 1998; JACOBI, 2002). Esses espaços tiveram como principais representantes da esfera social, os movimentos populares e diferentes instituições sociais que articularam “demandas e alianças de resistência popular e lutas pela conquista de direitos civis e sociais” (JACOBI, 2002, p. 446). Além disso, é nesse contexto também que, segundo Carvalho, M. do C. A. A. (1998), emerge a educação popular fundamentada nos pressupostos de Paulo Freire. Na lógica da reciprocidade entre educador e educando, a educação popular abre caminhos para a

elaboração coletiva e crítica da vida individual e social das classes populares, constituindo espaços onde se dessacralizam hierarquias e autoridades, onde se constroem conhecimentos coletivamente, onde se elaboram coletivamente projetos de transformação social, processos que levam esses setores, excluídos da agenda 'pública', a ocupá-la, provocando a constituição de uma esfera pública (CARVALHO, M. do C. A. A., 1998 , p.2).

O surgimento desses movimentos sociais oportunizou a criação de novos espaços de reivindicações e recusas das relações de subordinação. Constitui-se, nesses ambientes, uma “cultura participativa e autônoma”, suscitando em organizações populares que se mobilizariam para garantir e ampliar direitos relacionados ao trabalho, melhores condições de vida no contexto rural e urbano, bem como visar transformações de carências vividas em seus entornos como práticas reivindicatórias. É a partir dessa “nova cultura” que questões relacionadas à inserção de novos temas na agenda pública, aquisição de novos direitos, reconhecimento de novos sujeitos de direito foram colocados em pauta (CARVALHO, M. do C. A. A. 1998; JACOBI, 2002). Apesar de que, segundo Carvalho, M. do C. A. A. (1998), os diálogos e negociações de posições antagônicas ainda levavam “à cooptação ou à repressão” (p. 3).

Diferentemente da década de setenta, a de oitenta marca uma nova fase de interação entre movimentos sociais e os órgãos públicos. Enquanto a década de setenta representou um contexto de reivindicações, a de oitenta é marcada por uma sistematização de propostas

políticas mais elaboradas, que eram levadas aos canais institucionais conquistados. O direito à participação, oriundo da redefinição dos próprios direitos, ganha reconhecimento na Constituição de 1988 que passa a prever a “participação direta dos cidadãos através dos chamados institutos de democracia direta ou semi-direta como o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular da lei, as tribunas populares, os conselhos e outros canais institucionais de participação popular” (CARVALHO, M. do C. A. A. 1998, p. 03). E ao longo da década de noventa, a participação passa a ser compreendida não somente como forma de obtenção e garantia de direitos, mas em um contexto de redefinição dos direitos e da gestão da sociedade, ou seja, amplia-se o olhar para uma participação que auxilia nas definições do tipo de sociedade que se deseja construir. Assim, além de práticas participativas inovadoras, que ganhavam cada vez mais institucionalidade, surgem também, segundo Jacobi (2002), novos movimentos, esses fundamentados em ações solidárias que estavam centradas em valores éticos ou que visavam à revalorização da vida humana.

Diante do exposto, Carvalho M. do C. A. A. (1998) ressalta as principais formas de participação da sociedade no Brasil, oriundas desse contexto de lutas e conquistas, destacando três práticas marcadas pela co-gestão entre Estado e sociedade: Orçamento Participativo, Conselhos Gestores e Parcerias entre Estado e Sociedade.

Os Conselhos Gestores, segundo a autora, podem ser considerados como espaços privilegiados para o exercício político e têm como principais características a respeitabilidade, transparência e comprometimento público. Constituindo-se de fóruns de participação, que articula o relacionamento entre o Estado e a sociedade civil, os conselhos gestores podem ser considerados canais para a participação da população nos direcionamentos das políticas sociais. Estabelecido pela Constituição Federal de 1988, esses conselhos consideram a participação da sociedade em diferentes áreas. Rocha (2009) ressalta a participação da comunidade nas seguintes instâncias sociais: na saúde; na assistência social, através da organização representativa na formulação das políticas sociais; e também na educação, através da gestão democrática do ensino público. Gomes (2003) evidencia que os conselhos estão voltados também para temas transversais, envolvendo direitos e comportamentos da sociedade, como direitos humanos, violência contra a mulher e direitos dos idosos. Referente aos objetivos, os conselhos estabelecem mecanismos de formulação de diretrizes, programas sociais, prioridades, maneiras de acompanhamento e controle da gestão, fornecimento de informações, planejamento e avaliação das ações (ROCHA, 2009).

Referente à eficácia dos Conselhos, entendida como a capacidade de deliberar, controlar e fazer cumprir as decisões tomadas, Teixeira (2000), citado por Gomes (2003), ressalta que é

preciso analisar a efetividade em três aspectos. O primeiro deve ser visto diante das condições de acesso à informação, capacitação técnico-política dos conselheiros, tempo e recursos humanos, tecnológicos e físicos. O segundo está relacionado com o comprometimento da democratização das decisões, controle e responsabilização. E, por último, a busca pela efetividade deve estar articulada com a mobilização social, fazendo com que as deliberações recebam apoio e contribuição, ou seja, a divulgação das ações e das discussões devem ser publicizadas, visíveis. E ainda, o bom desempenho dos Conselhos não depende apenas dos representantes da sociedade em geral, mas também de um intenso esforço de negociação entre os atores sociais e o governo.

Enquanto os Conselhos emergem de demandas da sociedade, visando processos decisórios para políticas sociais, as Parcerias, também como forma de experiência de co-gestão em participação no âmbito social, se inspiram, conforme Silva, Jaccound e Beghin (2005), em demandas de reorganização da intervenção do Estado no campo social, ou seja, estão voltadas para a execução de políticas sociais. As Parcerias também emergiram dos movimentos sociais a partir da década de setenta, como fortalecimento da democratização do país e envolvem redes de voluntariado, solidariedade parental ou de vizinhanças e instituições comunitárias. Carvalho, M. do C. A. A. (1998) destaca algumas experiências oriundas do processo de Parceria, como programas de alfabetização de adultos e cooperativas, os quais são desenvolvidos com a colaboração entre governos municipais e organizações comunitárias. Para a autora, quanto mais essas relações se consolidarem democraticamente, mais o poder de decisão conjunta será efetivado, seja nas definições do planejamento do programa, estabelecimento de regras e critérios de administração e/ou nas prestações de contas. As atividades de Parceria promovem um processo de construção e gestão coletiva, potencializando aprendizados de auto-organização e autogestão, como é o caso, por exemplo, das cooperativas, das ONGs, nas quais, “Repartir o poder de intervir e de decidir é uma meta e um resultado que se pode esperar das experiências de parceria” (CARVALHO, M. do C. A. A, 1998, p. 19). A autora ainda destaca que a Parceria depende das disposições governamentais, já que a sua ausência faz romper os convênios, evidenciando a fragilidade, redução de autonomia e independência desse mecanismo de participação na sociedade.

Por fim, a última prática participativa institucionalizada, explicitada por Carvalho, M. do C. A. A. (1998), Jacobi (2002), Santos e Avritzer (2002) e outros estudiosos, está o Orçamento Participativo no âmbito municipal. Essa experiência, já explicitada, é oriunda também das reivindicações dos movimentos populares na década de oitenta e se tornou, de acordo com Bezerra (2016), uma “referência internacional em inovações institucionais que

visam à participação de atores sociais, individuais ou coletivos, na elaboração, gestão e controle de políticas públicas” (p. 2). Para Carvalho, M. do C. A. A. (1998), o Orçamento Participativo é um processo de consultas e debates sobre o orçamento público dos municípios, que gera, a cada processo, aprendizagens, redefinições de metodologias e do alcance das participações entre a população participante e o governo. É a partir dele que problemas urbanos vivenciados por setores menos favorecidos da sociedade ganham destaque e “vozes”, proporcionando prioridades de investimentos e possíveis alternativas. Referente à dinâmica do processo, passada essa fase inicial, uma organização grupal passa a acompanhar a execução orçamentária e as obras.

Outra definição do Orçamento Participativo é dada por Wampler (2008 apud BEZERRA, 2016, p. 03) que entende como

[...] um processo decisório que se estende por todo o ano fiscal. Em assembleias organizadas com esse fim, os cidadãos se engajam, juntamente com funcionários da administração, em negociações sobre a alocação de gastos que envolvam novos investimentos de capital em projetos tais como clínicas de assistência médica, escolas e pavimentação de vias públicas.

O Orçamento Participativo, no seu fundamento, deve acontecer anualmente e é dinamizado por assembleias nos bairros, nas regiões e no município com delegações de representantes em cada região. Segundo Carvalho, M. do C. A. A. (1998), o “Conselho Municipal de Orçamento” discute as prioridades para os investimentos e os delegados de cada bairro e região fazem o acompanhamento e fiscalização da execução. O processo se caracteriza pela sua diversidade em termos de amplitude e alcance devido, por exemplo, ao grau de compromisso do governo com as deliberações do conselho, seu papel deliberativo ou consultivo e a própria porcentagem destinada ao orçamento. Além disso, essa prática possibilita desenvolver uma compreensão mais ampla e diretiva dos problemas sociais do município, construção de parâmetros públicos, transparência, valores voltados mais para a solidariedade e coletividade, do que para critérios particulares, partidários ou ideológicos. E ainda, a proposta do Orçamento Participativo contribui para a superação das decisões tecnocráticas e clientelistas, sendo que a medida que a mesma se fortalece e amplia seu caráter democrático, possibilita ampliar e inverter prioridades, ou seja, coloca em pauta “melhoria das condições de vida da população tradicionalmente excluída dos serviços públicos” (CARVALHO, M. do C. A. A., 1998 , p.5).

Passadas mais de duas décadas desde a implementação do Orçamento Participativo no contexto brasileiro, Bezerra (2016) em um estudo sobre a sua situação recente, evidenciando um declínio, aponta que o pico da adoção ocorreu durante o período de 2000 a 2004, seguido

de um decréscimo contínuo até o ano de 2012 e caso mantenha essa possível constância, desapareceria até 2024. Nesse estudo, a autora apresenta a hipótese de que o declínio estaria associado às mudanças na legislação fiscal e orçamentária, refletindo em desincentivos à adoção do processo. Para ela, mesmo que isso não ocorra de forma intencional à falta de novos incentivos no âmbito da federação acaba contribuindo para esse cenário. Esse contexto, que inclui uma baixa disponibilidade de recursos para a discussão e investimentos, implica num processo pouco atraente politicamente, já que há um menor impacto sobre a melhoria dos municípios e qualidade de vida da sociedade em geral.

Para Bezerra (2016), diante desse cenário e visando a manutenção do Orçamento Participativo como política local de participação, ele deveria passar por algum tipo regulação ou indução federal, exemplo do que acontece em outros países, como é o caso do Peru que possui uma lei federal para a adoção do processo. A legislação, no contexto brasileiro, está inserida, por exemplo, no Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2000) que prevê uma “gestão orçamentária participativa”, incluindo a realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, sendo essa uma condição para aprovação na Câmara Municipal. Enquanto inovação desse Estatuto tem o “Plano Diretor Participativo”, regulamentada pela Resolução n. 25 do Conselho Nacional das Cidades, que é incentiva por este Conselho e pelo Ministério das Cidades.

Referente à busca de regulamentações dos mecanismos de participação, relacionado ao orçamento, tem o Decreto 8243/2014 que instituiu a Política e o Sistema Nacional de Participação Social, mencionando em um dos seus artigos as etapas do ciclo de planejamento e orçamento (BEZERRA, 2016). Segundo a autora, apesar do Decreto representar um esforço para as políticas participativas, ela faz à menção de instrumentos12 já existentes com a ênfase nos Conselhos e Conferências do sistema federal de participação. Como o foco se concentrou no Governo Federal, os temas para a dimensão municipal, como o orçamento participativo municipal e dos planos diretores, não se fizeram presentes, contribuindo para que esses instrumentos sejam gradativamente abandonados.

Diante das discussões realizadas ao longo desse item propusemos, de maneira geral, exemplificar práticas participativas existentes no contexto brasileiro, a partir de uma dimensão histórico-cultural e de mecanismos decisórios pautados por um viés de lutas, conquistas e tentativas de consolidação e fortalecimento. Os desafios para consolidar e ampliar essas práticas, no contexto brasileiro, latino-americano e mundial, estão atrelados às predisposições

12 Os instrumentos já utilizados no âmbito do Governo Federal são os citados no seu artigo 06: “mesas de diálogo,

dos diferentes atores que os constituem: governos locais, indústrias e sociedade civil. Destacamos, de um lado, a importância dos governos e o incentivo às práticas democráticas participativas, pois esses possuem potencial para criar ou inibir espaços públicos que promovam a articulação e participação. De outro lado, a sociedade civil, que a partir da pluralidade e diversidade, tem papel fundamental na busca e reivindicações desses espaços, assim como na sua efetivação e permanência. A constituição de uma cultura participativa transformadora envolve diferentes aspectos, como valores, atores sociais, diálogo, mudança de atitude, legitimações, posse/acesso ao conhecimento, dentre tantos outros. No entanto, para possibilitá- la é necessário romper com a cultura dominante de participação, essa fundamentalmente marcada por atitudes passivas e pela democracia apenas representativa. Em outras palavras: é preciso incentivar/fortalecer ações e atitudes sociopolíticas da população. A busca pela complementariedade para outros processos democráticos não é uma tarefa simples, mas necessária tendo como perspectiva a busca por um modelo diferente de sociedade.

2.4 Indicativos de situações-limite e atos-limite frente à construção de processos