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O Pensamento Latino-Americano em Ciência-Tecnologia-Sociedade: um olhar para o

1. SITUANDO A EDUCAÇÃO CTS NO CONTEXTO BRASILEIRO

1.2 O Pensamento Latino-Americano em Ciência-Tecnologia-Sociedade: um olhar para o

É válido ressaltar a importância de uma literatura latino-americana para as discussões que envolvem esse contexto. Nesse sentido, Santos, B. S. (2007), referindo-se ao questionamento do uso das teorias do Norte para um contexto do Sul, afirma que “[...] para quem vive no Sul as teorias estão fora do lugar: não se ajustam realmente as nossas realidades sociais” (p. 19). Apesar da literatura do Norte para a compreensão e surgimento do movimento CTS ser importante, válida e a principal balizadora do contexto educacional, muitas discussões e percepções estão fora e/ou negligenciam a nossa realidade, aspectos que acabam refletindo também na educação científica. Diante disso, fazer uma reflexão sobre a literatura latino- americana é essencial para uma compreensão, de fato, do nosso contexto.

É neste sentido que discutimos o Pensamento Latino Americano em Ciência- Tecnologia-Sociedade (PLACTS). Seu nascimento está marcado por críticas à transferência tecnológica, de exploração de vantagens, e pela busca por uma maior independência científica e tecnológica, almejada por professores, principalmente, argentinos da área de “ciências duras” que desejavam desenvolver pesquisas e não possuíam condições para isso. Mesmo com a “escassa demanda social por conhecimento científico e tecnológico” e como causa disso, a debilidade na área de CT, para o PLACTS o “problema não era a falta de capacidade para desenvolver ‘boa ciência’, nem uma característica relacionada à nossa herança ibérica ou indígena. Tampouco era algo associada a um determinismo geográfico então em moda, do tipo ‘a ciência não pode prosperar nos trópicos’” (DAGNINO, 2008a, p. 17). O argumento central estava na necessidade de apoio que demandava a comunidade pesquisa, essa oriunda de um “Projeto Nacional” marcado por um desafio científico-tecnológico.

Diante disso, apesar do PLACTS apresentar aspectos comuns às tradições do Norte, ele tem como preocupação central a dinâmica vivenciada no contexto da América Latina, portanto, possui origem e objetivos distintos das outras vertentes. Além disso, o PLACTS, oriundo de

reflexões realizadas em setores da própria comunidade científica, buscava um redirecionamento, outros rumos para o desenvolvimento científico-tecnológico local. Essa tradição se desenvolveu, principalmente, a partir de pressupostos que envolveram discussões sobre a política científico-tecnológica (PCT) do contexto latino-americano e a construção de um novo modelo de sociedade, com horizonte para demandas efetivamente sociais. Entre os nomes mais referenciados dessa corrente podemos destacar: Amílcar Herrera, Jorge Sábato, Oscar Varsavsky, na Argentina; José Leite Lopes, no Brasil; Miguel Wionczek, no México; Francisco Sagasti, no Peru; Máximo Halty Carrere, no Uruguai; Marcel Roche, na Venezuela, entre outros (DAGNINO; THOMAS; DAVYT, 1996).

Para aprofundarmos a compreensão sobre o surgimento do PLACTS, entendemos como necessário contextualizar, em linhas gerais, as características econômicas e industriais da América Latina. Nesse sentido, destacamos que a partir da crise de 1929, com a recessão dos países desenvolvidos, os países periféricos passaram por uma reorientação, a partir de iniciativas do estado, que geraram processos de industrialização caracterizados por uma política de substituição de importações. Nessa época, empresas internacionais começaram a ser implantadas em países em desenvolvimento (DAGNINO; THOMAS; DAVYT, 1996). Ou seja, “foi um movimento de pressão externa a qual objetivava que países periféricos se apropriassem das tecnologias dos países centrais” (ROSO, 2017, p. 39).

Na década de quarenta, o processo de internacionalização dos países da América Latina se intensificou. O subdesenvolvimento condicionado aos países periféricos, devido à falta de desenvolvimento, segundo discursos hegemônicos, legitimava a expansão das indústrias para esses contextos, possibilitando, a partir dessa lógica, a condição de desenvolvimento. Segundo Dagnino, Thomas e Dayvit (1996), as empresas transnacionais que surgiram nesse contexto, e foram intensificadas na década de sessenta, estavam interessadas na produção para o mercado interno, para o local onde as empresas estavam inseridas. Como consequência desse processo tem-se determinações tecnológicas (implícitas) que condicionaram “o funcionamento da indústria local ao contínuo crescimento através da crescente importação de tecnologia e reduzindo o processo de adequação de tecnologias à escala micro” (ROSO, 2017, p. 40). Aspectos que implicaram na falta de investimentos em tecnologia local devido a facilidade e preços acessíveis em importar equipamentos e tecnologias, além de uma falta de proteção das tecnologias e bens produzidos nesse contexto, contribuindo, portanto, para a situação de dependência tecnológica. Esses aspectos cooperaram para que a produção local de CT se tornasse, cada vez mais, inviável quando comparada com a própria importação dos países desenvolvidos. Essa dinâmica, que visava o suposto desenvolvimento do contexto latino-

americano, se mostrou inadequada. É diante dessa forma de produção que os processos de transferência e de dependência tecnológica dos países latino-americanos se intensificaram (DAGNINO; THOMAS; DAVYT, 1996; SILVA, 2015).

As décadas de cinquenta e sessenta, contexto em que o cenário político vivido nos países da América Latina foi marcado por intervenções militares, teve como destaque a criação de conselhos nacionais de investigação de CT, caracterizados pelas “recomendações de política pregadas pelos organismos internacionais” (DIAS, 2008, p.02). Dentre esses conselhos, podemos destacar, por exemplo, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Organização dos Estados Americanos (OEA), que apresentavam recomendações relacionadas à visão linear/tradicional entre CT e desenvolvimento.

Diante do exposto e com o intuito de rever/questionar a situação vivida pelo contexto latino-americano frente à atuação internacional voltada para o desenvolvimento da CT é que começa a surgir a tradição do PLACTS. Além das questões já apontadas, essa vertente, emergente em meados da década de 1960, segundo Cutcliffe (2003 apud DIAS, 2008) esteve relacionada também aos movimentos sociais diante de manifestações por direitos civis e pelo meio ambiente, às críticas ao consumismo exacerbado, às preocupações relacionadas à pesquisa genética, à utilização da energia nuclear, entre outros. Movimentos que demonstraram preocupação e descontentamento em relação à CT, aspectos muito próximos do contexto do surgimento do movimento CTS do hemisfério Norte. No entanto, Dagnino, Thomas e Davyt (1996) destacam alguns termos próprios e marcantes do PLACTS, dentre eles, a busca por projetos nacionais, por estilos e pacotes tecnológicos, pelo desenvolvimento científico- tecnológico atrelado às demandas sociais e pela superação do modelo linear de desenvolvimento.

Um dos desdobramentos centrais desejado pelos seguidores do PLACTS estava na busca por uma política de CT, construída por uma agenda de pesquisa que contemplasse as demandas locais/regionais, fazendo da CT “um objeto de estudo público, um tópico ligado à estratégias de desenvolvimento social e econômico” (VON LINSINGEN, 2007, p. 7). Segundo essas análises, tais demandas não são contempladas pelo ofertismo, autonomia restringida ou pela transferência tecnológica, perspectiva em que as tecnologias vindas de outros contextos são inseridas numa dada sociedade. Nesse sentido, Varsavsky (1969) aponta para o fato de que as tecnologias, por exemplo, do hemisfério Norte, não necessariamente se adaptam às necessidades, estrutura física e social dos países latino-americano, logo questionar o modelo de transferência de tecnologia é essencial. Assim, segundo Dagnino (2010a), o PLACTS

constituiu-se numa orientação de um novo tipo de relação entre a tríade CTS. Dessa maneira, essa vertente, que se insere no movimento CTS, discute a necessidade de um redimensionamento da política científico-tecnológica no contexto dos países da América Latina.

Dagnino, Thomas e Davyt (1996) ainda destacam que o PLACTS por ter uma diversidade ideológica e de métodos, acabou não gerando uma metodologia de análise teórica “forte”. Além disso, outro fator associado a essa vertente está no fato de ela

[...] estar restrita ao plano descritivo da análise de CT, sendo que o plano normativo apresenta divergências ao passo que para alguns autores a política científico- tecnológica seria uma ferramenta para as tarefas revolucionárias e consolidação do estado socialista, enquanto outros consideram um aspecto integrante da estratégia nacional. Outro aspecto bastante disseminado no PLACTS é o objetivo de acoplar a infraestrutura de CT às condições produtivas da sociedade (HERRERA, 1995 apud ROSO, 2017).

Referente à década de oitenta, o contexto latino-americano é alterado para um esgotamento do modelo de desenvolvimento pós-guerra, fazendo com que os países centrais propusessem novas orientações de políticas. Essas, agora, estariam voltadas para facilitar o trabalho das multinacionais, através de tomadas de decisões e controle, estratégias de mercado, padrões de consumo e redução das fronteiras nacionais (DAGNINO; THOMAS; DAVYT, 1996). Nesse sentido, e como síntese das principais características dos anos oitenta e noventa, Roso (2017) destaca: a produção de estudos CTS locais foi incentivada pelas profundas mudanças em CT; a alteração de política de CT para política de inovação não foi incorporada na agenda política local; a integração internacional no contexto da América Latina foi gerada devido à inclusão de critérios unicamente econômicos; os estudos desenvolvidos por essa corrente foram perdendo espaço nos processos decisórios sobre CT devido ao caráter econômico neoliberal; a falta de demanda por estudos CTS esteve articulada ao processo de internacionalização de intelectuais que tiveram a atuação acadêmica voltada para o âmbito internacional e não pela ação política local; e, assim como nas anteriores, nessas décadas também não foi possível consolidar um marco teórico.

Diante do apresentado, é notório que a corrente latino-americana em CTS possui aspectos diferentes das vertentes do hemisfério Norte, seja em sua estrutura, demandas, teorias, contexto histórico-cultural. Assim, compreendê-la e problematizá-la é essencial para a busca de novas orientações para os estudos CTS, e que possam refletir também na educação. A essência desse pensamento está voltada ao contexto de desenvolvimento social, de questionamento à transferência tecnológica e da suposta neutralidade da CT, de busca por

políticas públicas em CT pautada por demandas locais/regionais e, portanto, de extrema relevância para os problemas vivenciados na nossa realidade. Aspectos fundamentais também para o propósito deste trabalho, visto que, caso essas perspectivas sejam silenciadas/negligenciadas, a constituição de uma cultura de participação ampla em CT e desenvolvimento de políticas públicas pautadas por demandas locais dificilmente serão consolidadas.