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Por um lado, a UNESCO, através o Comitê do Patrimônio Mundial e da

Convenção do Patrimônio Mundial (1972), visa a fazer frente às ameaças do mundo pelas quais passam os territórios de identidade e propala seu objetivo de proteger e conservar os bens mundiais de valeur universelle exceptionnelle com o discurso da participação de todos e com interesses acordados (UNESCO, 2009, p. 03, tradução nossa). Por outro lado e simultaneamente à busca da proteção, caminham os agentes diretamente propulsores da

patrimonialização global, aqui tratados como arquitetos do mundo, como também abordou

Videla et al (2010). Logo, graças à ciência, à tecnologia e à informação (que dão nova forma aos territórios e favorecem conexões mais longínquas que levam ao desenvolvimento das relações internacionais), além da difusão do conhecimento sobre os lugares especiais, que objetivam a preservação das singularidades, o processo de mundialização econômica subsidiada pelas agências multilaterais se apodera de tais singularidades (no caso, o Patrimônio Mundial) e mesmo de discursos científicos para se auferir não apenas o lucro, mas a renda de monopólio nos lugares “construídos” como especiais.

É nesse contexto de virtualização e mercantilização dos lugares que a Convenção do Patrimônio Mundial (1972) – e algumas das diretrizes globais que a sucedem, como as apontadas no quadro 01 – são tomadas pelas governanças urbanas, que dão relevância ao conceito de valeur universelle exceptionnelle, como princípio diretor para a conservação e a gestão dos bens do Patrimônio Mundial, na lógica, então, da “preservação” para a mercantilização. Há, também, por parte da UNESCO, a crescente importância dada ao conceito de paysage urbain historique, como estratificação de dinâmicas anteriores e atuais que envolvem o ambiente natural e construído, o patrimônio material e imaterial. Isso leva a uma preocupação atual e global com a função da arquitetura contemporânea nos conjuntos históricos e sua harmonia com os valores de contexto histórico (e não simplesmente a contextualização de novas construções).

No cerne da patrimonialização global, dos aspectos econômicos e da evolução da função das cidades (que envolvem o alavancamento da economia urbana com o turismo), há a influência dos agentes econômico-financeiros mundiais, que se apoderam da polêmica

d‟authenticité et d‟intégrité89 propaladas pela UNESCO por ocasião da preocupação do

organismo com as villes historiques vivantes, construindo seu próprio discurso. Sánchez (2003) lembra-nos que o esforço político de prefeitos e governos de cidades em vender o

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sucesso e promover a reinvenção dos lugares encontra-se diretamente associado aos arranjos de interesses originados nos mercados de políticas públicas, do turismo, de consumo, imobiliário, e outros, bem como de dar visibilidade internacional a seus projetos e ações urbanas, objetivando um trânsito notável junto aos arquitetos do mundo (agências multilaterais – BID / BM – e Estados nacionais, além de ONGs e outros organismos).

Entendemos que os documentos normativos e as diretrizes da UNESCO, os conceitos tratados e as propostas indicadas favorecem a ampla divulgação dos projetos de cidade cada vez mais adaptados às diretrizes globais, inserindo-se em um novo contexto espacial que exige uma espetacularização das representações locais, difundidas pelas agências multilaterais. Diz Sánchez (2003) que é no processo de construção de um mercado de cidades que essas agências têm centralidade política e, nesse contexto, a explicitação e a circulação de imagens do que denomina “cidades-modelo” ganha especial sentido. Nessa trama, insere-se a busca da chancela da UNESCO (veremos, no quinto capítulo, que o Programa Monumenta [BID / República Federativa] exige, antes de qualquer coisa, que as cidades contempladas estejam inscritas em um dos livros do tombo do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Identificaremos, também, que o Programa Monumenta contemplou a quase totalidade das cidades brasileiras inscritas na Lista do Patrimônio Mundial).

Tratar o BID e o BM (atrelados aos Estados nacionais) como arquitetos do

mundo justifica-se pela situação dual que o termo arquiteto nos remete, de acordo com Videla et al (2010): se, por um lado, traz a idéia de “mestre construtor” (no grego antigo arkhein nos remete a “quem começa”, “quem comanda” e, no latim, textura significa “rede, textura, estrutura”), por outro, normalmente, arquiteto é um técnico (privilegiado e capacitado) formado para “ordenar” para quem tem o poder de contratá-lo e não para quem necessita do mesmo para uma vida digna nas cidades.

É claro que nem todos os agentes que operam no mercado de cidades têm a mesma transcendência política ou o mesmo alcance territorial. Logo, as instituições internacionais, especialmente as agências multilaterais, representam uma centralidade como agentes do mercado do Patrimônio Mundial. Diz Sánchez (2003) que, mediante redes de informação, programas de financiamento para ações localizadas, documentos, relatórios técnicos e manuais, bem como através da outorga de prêmios e láureas às chamadas “experiências de sucesso”, essas agências condicionam as pautas e determinam os processos de legitimação internacional de algumas imagens de cidade e, portanto, de alguns projetos de cidade. Diz a autora que esse interesse ideológico e prático-estratégico das agências em promover projetos representa a possibilidade de investimento e fonte de lucro; afirmamos que não apenas o lucro, mas a renda de monopólio.

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Não podemos perder de vista que os processos contemporâneos de globalização econômica (e, nesse espectro, os agentes hegemônicos do capital) se relacionam com as localidades e as formas culturais, através do significado de “renda monopolista” um conceito da economia política, diz Harvey (2005). Na perspectiva desse geógrafo, o conceito pode propiciar interpretações valiosas sobre muitos dilemas práticos e pessoais resultantes do nexo entre globalização capitalista, desenvolvimentos político-econômicos locais e evolução dos sentidos culturais e dos valores estéticos.

Toda renda se baseia no poder monopolista dos proprietários privados de determinadas porções do planeta. A renda monopolista surge porque os atores sociais podem aumentar seu fluxo de renda por muito tempo, em virtude do controle exclusivo sobre algum item direta ou indiretamente, comercializável, que é, em alguns aspectos, crucial, único, irreplicável. (HARVEY, 2005, p.222)

Logo, a difusão do conhecimento (saber da existência) sobre os lugares tratados pela UNESCO como de valeur universelle exceptionnelle é, por contraste, uma relevante e, por vezes, primeira manifestação da situação de contato, isto é, a primitiva quebra do “isolamento”. Em realidade, o isolamento absoluto torna-se relativo à partir da descoberta da comunidade isolada, torna-se um semi-isolamento, o qual passa a se diferenciar, a partir desse momento, pelos graus de contato e interação da comunidade contatada com a sociedade nacional e internacional. Na concepção de Harvey (2005), quanto maior o contato, menor a autenticidade da cultura e menor a originalidade local, contradizendo a lógica da valorização dos lugares estipulada pela própria UNESCO, que inscreve na Lista do Patrimônio Mundial os bens considerados por sua authenticité et intégrité e, na sequência, esses lugares se vêem repletos por turistas, como verificamos tanto em Ouro Preto quanto em Diamantina, cidades que, após as inscrições na Lista, respectivamente em 1980 e em 1999, tiveram o fluxo turístico elevado e as ações em prol do patrimônio redimensionadas.

Faz-se necessário um parêntese para entendermos o que a UNESCO trata por

valeur universelle exceptionnelle – conceito que é objeto de múltiplas reflexões desde a entrada em vigor da Convenção do Patrimônio Mundial (1972) – e para apontarmos os critérios utilizados para a inscrição dos bens na Lista. “O valor universal excepcional significa uma importância cultural e/ou natural excepcional que transcenda as fronteiras nacionais e que apresente características inestimáveis para as gerações atuais e futuras, para a totalidade da humanidade. Dessa maneira, a proteção permanente deste patrimônio é da mais alta importância para toda a comunidade internacional. O Comitê define os critérios para a inscrição dos bens sobre a Lista do Patrimônio Mundial”, continua o documento (UNESCO, 2008a, p. 04, tradução nossa), “por ser considerado de um valor universal excepcional, um

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bem deve igualmente responder às condições da integridade e/ou de autenticidade e deve se beneficiar de um sistema adaptado de proteção e de gestão para assegurar sua salvaguarda”.

 Exceptionnelle: Para que os bens tenham um valor universal excepcional, é fato que seja excepcional. A Convenção do Patrimônio Mundial aponta para a necessidade de uma “géographie du superlatif – les lieux naturels et culturels les plus exceptionnels de la Terre” (UNESCO, 2008a, p. 02).

 Universelle: o campo de aplicação da Convenção é mundial pela amplitude da importância dos bens a serem protegidos e de seu valor para todos os homens do planeta. Por definição, então, não se deve avaliar o valor universal excepcional dos bens de um ponto de vista nacional ou regional. [Verificamos, nesse ponto, uma grande contradição, quando a UNESCO (2009n, p. 03-04) aponta que as comunidades locais devem valorizar e reconhecer a relação do Patrimônio Mundial com seu patrimônio nacional, regional e local, contribuindo integral e positivamente para o développement

durable. Antes de qualquer caracterização, o patrimônio cultural

possui uma base geográfica da qual não se desprega materialmente, sendo referência local ou mundial para a comunidade local].90  Valeur: um bem excepcional e universal, seu valor, significa

claramente definir sua preciosidade, tratado sobre bases de critérios claros e coerentes, além de apontar o reconhecimento e a avaliação de sua integridade.

Os critérios utilizados pela UNESCO para a inscrição de um bem na Lista do Patrimônio Mundial foram se aprimorando ao longo das quase quatro décadas da Convenção, que tem como chave para seu sucesso a credibilidade oriunda da aplicação rigorosa e transparente do valeur universelle exceptionnelle (UNESCO, 2009, p. 03, tradução nossa). Seguem, abaixo, os dez critérios utilizados pela UNESCO (2008a, p. 05-06, tradução nossa) para chancelar um bem:

 critério (i): representar uma obra prima do gênio criativo.

 critério (ii): testemunhar uma influência considerável, durante um período dado ou em uma área cultural determinada, sobre o desenvolvimento da arquitetura ou da tecnologia, das artes monumentais, do planejamento das cidades ou da criação de paisagens.

 critério (iii): representar um testemunho único, ou ao menos excepcional, de uma tradição cultural, uma civilização viva ou desaparecida.

 critério (iv): representar um exemplo eminente de um tipo de construção ou de conjunto arquitetônico, ou tecnológico, ou paisagem ilustrativa de um ou mais períodos significativos da história humana.

90 Contradição, pois, como conceber o Patrimônio Mundial apenas na perspectiva de um valor pretensamente

universelle exceptionnelle? Nosso esforço é o de apontar a necessidade de uma visão dialética universal-

particular que envolve os bens culturais do mundo, considerando que é na relação entre a construção global do patrimônio – que se dá através dos mecanismos da patrimonialização global – e a transformação local das cidades-patrimônio, que podemos desvendar a lógica que as transforma material e simbolicamente.

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 critério (v): ser um exemplo eminente do estabelecimento humano tradicional, de uso tradicional do território ou do mar, que seja representativo de uma cultura (ou de culturas), ou da interação humana com o ambiente, especialmente quando esse se torna vulnerável sob o impacto de uma mutação irreversível.

 critério (vi): ser diretamente ou materialmente associado aos eventos ou às tradições vivas, das idéias, das crenças ou das obras artísticas ou literárias, adquirindo uma significação universal excepcional. (O Comitê considera que esse critério deve, preferencialmente, ser utilizado em conjunção com outros critérios).  critério (vii): representar fenômenos naturais significativos; áreas de

beleza natural e de uma importância estética excepcional.

 critério (viii): ser conjuntos eminentemente representativos de grandes estágios da história da Terra, compreender testemunho da vida, de processos geológicos em curso no desenvolvimento das formas terrestres ou de elementos geomorfológicos ou fisiográficos de grande significação.

 critério (ix): ser exemplos eminentemente representativos de processos ecológicos e biológicos em curso na evolução e no desenvolvimento dos ecossistemas e comunidades de plantas e animais terrestres, aquáticos, costeiros e marinhos.

 critério (x): representar habitat natural o mais representativo e o mais importante para a conservação in situ da diversidade biológica, compreendendo aqueles onde sobrevivem as espécies ameaçadas que possuem um valor universal excepcional do ponto de vista da ciência ou da conservação.

A partir do exame do conceito de valeur universelle exceptionnelle e dos dez critérios utilizados para inscrever bens culturais (critérios de i a vi) e bens naturais (critérios de vii a x) na Lista, podemos dizer que a busca da renda de monopólio – pela irreplicabilidade construída sobre os lugares – é tributária da lógica dialética universal-particular teorizada no primeiro capítulo. Entendemos, em amplo aspecto, que cada nova classe ou grupo hegemônico que ocupa o lugar do grupo que dominava anteriormente vê-se obrigado, para atingir seus fins, a apresentar seus interesses político-econômicos como sendo o interesse comum de todos os membros da sociedade. Ou seja, para expressar isso em termos ideais, tal grupo dominante é obrigado a dar às suas idéias e objetos a forma de universalidade, a apresentá-las como as únicas idéias racionais e universalmente legítimas, como apregoam Marx e Engels (Ideologia... p. 79-80). Se a UNESCO não visa, diretamente, a essa idéia, são os arquitetos do mundo que a consolida ao se apropriarem do movimento universal da preservação, dos instrumentos construídos para tal fim – no âmbito da própria UNESCO –, com o objetivo de mercantilizar os lugares de memória, os territórios de identidade e da natureza.

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Podemos dizer que alegações de singularidade, excepcionalidade, universalidade, autenticidade, particularidade e especialidade atribuídas aos lugares pelos órgãos de preservação e conservação91 são as alegações que também sustentam a capacidade de conquistar rendas monopolistas nos lugares. Torna-se, então, o melhor terreno possível para se fazer tais alegações o campo das práticas culturais, os territórios de identidade e as “rugosidades”92 historicamente constituídas. Para Braudel (1985, p. 115-117), o capitalismo

de hoje só pode ser entendido no processo que remonta à sua origem, e a busca da renda de monopólio segue esse fluxo histórico e cambiante. Hoje, ele mudou de forma e de proporção, fantasticamente, afirma o autor. Sua natureza está fundada nas seguintes provas:

 O capitalismo baseado sobre uma exploração dos recursos e das

possibilidades internacionais, em outras proporções, a fim de

atingir o mundo inteiro, ganha, inexoravelmente, potência. Seu

volume se faz presente; busca reconstituir este universalismo.

 O capitalismo está sempre apoiado, hoje, pelos monopólios de

direito e de fato, apesar das violências provocadas para tanto.

 Há de se considerar, com Braudel (1985), ainda, que o capitalismo não cobre toda a economia, toda a sociedade do trabalho igualitariamente; ele jamais os coloca em um sistema perfeito – está dividido em uma via material e na economia de mercado, que integram a economia capitalista, de maneira desproporcional, no território.

Braudel (1985, p. 118) reconhece a tendência monopolista do capitalismo, hoje, de forma que mercadorias e capitais não deixam de correr simultaneamente; os capitais e os créditos buscam atender e reforçar o comércio, as trocas exteriores, nacionais, regionais e locais, na interação local-global. Há de se considerar, nesse sentido, que o capitalismo segue o fluxo da história, que está sempre recomeçando, está sempre se refazendo e se ultrapassando; as ações voltadas ao Patrimônio Mundial – a partir dos arquitetos do mundo, notadamente – atendem à lógica universal e universalizante do capitalismo, que não se operacionaliza fora dos lugares pretensamente singulares: essa é uma nova tendência da consolidação da renda de monopólio a partir da mercantilização da cultura catalisada pelos arquitetos do mundo, com projetos e programas implantados em várias partes do mundo.

Paralelo à busca do monopólio nos lugares por parte tanto de municipalidades quanto de agentes do capital que atuam nas cidades, o BM proclama em sua página virtual ser

91 Não podemos nos esquecer, como alerta Vieira (2008, p. 63), que o conceito de conservação advém da própria transição da preservação do bem isolado (monumento) para o conjunto urbano enquanto bem cultural ou monumentalidade urbana, que se deu ao longo do século XX (COSTA, 2009). “Tal transformação no pensamento preservacionista acaba por desembocar no desenvolvimento do conceito de conservação urbana”. Logo, se o sentido original de preservação diz respeito à limitação da mudança, o de conservação diz respeito à inevitabilidade da mudança e à gestão desta mudança, como podemos ver na análise de Vieira (2008).

92 Se o trabalho cria e transforma valores, pensemos um pouco na materialidade pretérita, nos objetos históricos estabelecidos nos territórios e reapropriados no presente, com o turismo. As formas do passado, estruturas socioespaciais pretéritas, hoje no espaço, são tratadas por Santos (2002, p. 140) como “rugosidades”.

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uma fonte de assistência financeira e técnica vital para os países em desenvolvimento de todo o planeta; e o BID se declara ser a principal fonte de financiamento multilateral na América Latina e Caribe. Videla et al (2010) afirmam que o BM, criado em 1944, não pode ser considerado um banco no sentido corrente; ele é propriedade de 186 países membro e é constituído de duas instituições singulares – o Banco Internacional de Reconstrução e Fomento (BIRF) e a Associação Internacional de Fomento (AIF). O BID, criado em 1959, apóia, financeiramente, a América Latina e o Caribe através de alianças com governos e empresas (caso do contrato com a República Federativa do Brasil, que redundou no empréstimo para o Programa Monumenta, como veremos no quinto capítulo da tese). Conforme Videla el all (2010, p. 05),

El BID informa prestar recursos financieros, otorgar donaciones, apoyar a la investigación y ofrecer asesoría y asistencia técnica para áreas fundamentales como la educación, la reducción de la pobreza y la actividad agropecuaria. Y resalta su papel protagónico en el comercio transfronterizo, la infraestructura y la energía a través de ejes carreteros, interconexiones de sistemas eléctricos, parte de la red de gasoductos, habiendo destinado casi el 50% del financiamiento a la integración física, económica y social. El Banco ha establecido el apoyo a la integración económica como una de sus prioridades, incluyendo desde acuerdos comerciales como en el caso del ALCA, hasta procesos de integración de infraestructura como el Plan Puebla Panamá, que incluye a los países centroamericanos y México.

Logo, não temos dúvida de que as agências multilaterais intervêm nos processo de ordenamento territorial, em distintas escalas geográficas, ao apresentarem suas ideologias (veladas) na forma de estratégias mundiais que acompanham ações e programas de requalificação urbana e de renovação do território, como veremos com o Monumenta no Brasil. Ao analisarmos Sánchez (2003) e Osmont (1995), verificamos que as agências multilaterais podem ser identificadas como centros fortes de elaboração doutrinal ao que concerne o apregoado “desenvolvimento urbano”. Na doutrina das agências, as estratégias são datadas e correspondem às últimas três décadas, com uma reconfiguração na década de 1990 – na transição de gestão urbana que Harvey (2005) trata como transposição de um administrativismo para um empreendedorismo urbano, após a década de 1970, mundialmente.

Se as preocupações clássicas dos anos 70 continuam presentes até hoje, aquelas relativas ao desenvolvimento urbano para a „promoção do emprego‟, „equidade‟ e „luta contra a pobreza‟, um novo campo de preocupações aparece e vai modificar em profundidade as estratégias de desenvolvimento urbano a partir dos anos 80: o campo da gestão urbana, privilegiando a escala local mais que a regional ou a nacional. (SÁNCHEZ, 2003, p. 278-279)

Sánchez (2003) afirma ainda que, desde a década de 1980, o privilégio da escala local e o interesse pelo campo da gestão urbana, determinam o papel central das agências multilaterais como mediadoras do processo de mercantilização das cidades e, portanto, da

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construção de um mercado mundial de cidades. Porém, entendemos, a partir de Harvey (2005), que as tentativas de acumulação absorvem os desenvolvimentos e as tradições culturais locais; fica claro que há o interesse atual tanto na inovação cultural local como na ressurreição e invenção de tradições locais, que se vinculam ao desejo de extrair ou de se apropriar da renda de monopólio, cada vez mais oriunda da difusão global das irreplicabilidades culturais locais. Logo, para David Harvey, não se deve ver a globalização como uma unidade indiferenciada, mas sim como uma padronização geograficamente articulada das atividades e das relações capitalistas globais, que incorporam as ações voltadas ao Patrimônio Mundial e o alcance da renda de monopólio, na mediação universal-particular- singular.

A singularidade dos lugares possui uma riqueza diversa de determinações quando é enlace final de uma cadeia de conhecimentos, cheia de legalidades descobertas, de concretas universalidades; a singularidade emerge como meta do processo de pensamento e atributo da

práxis, afirma Lukács (1965). Temos, dessa maneira, que a forma natural determinada de cada

uma das mercadorias criadas nas cidades (e a própria cidade tornada mercadoria) é, ao mesmo tempo, uma particular forma de equivalência junto a muitas outras mercadorias93. Nesse

processo, o movimento da forma valor, afirma Lukács (1965, p. 109), que é produzido pela real evolução econômica, se levanta na realidade objetiva a partir da singularidade até a universalidade, passando pela particularidade (que, juntas estimulam a renda nos lugares). A