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1 CONCEITO DE INDIVÍDUO

1.2 ÉTICA

1.2.2 Moral da Intenção

1.2.2.3 Pecado

Nos capítulos IV, V e VI, do Livro I da Ethica, Abelardo discorreu sobre os seguintes temas: sugestões demoníacas, punição aos atos pecaminosos, pecado espiritual e pecado carnal. No capítulo VII, tratou do julgamento do ato pecaminoso, a quem caberia tal ação. O que nos interessa nesse capítulo é o questionamento que Abelardo fez sobre quem é Deus frente ao indivíduo: “Portanto junto a estas duas coisas que previmos, concupiscência da carne e concupiscência da alma, Deus é dito o aprovador do coração e dos rins, isto é, o examinador das intenções ou dos

consentimentos de onde provêm”98 (ABELARDO, 1971, p. 42). Isto significa que:

“Deus (...) não julga segundo o bem comum ou sequer segundo o caráter de efetiva concordância com sua vontade, mas de acordo com a intenção: “sonda rins e coração” (ESTÊVÃO, 1990, p. 207).

Nos capítulos VIII e IX, Abelardo abordou os temas referentes à remuneração dos atos exteriores e à união entre Cristo, Deus e o homem. No capítulo X, tratou acerca da pluralidade de bens e a relação entre uma intenção boa e uma ação boa, que podem ocorrer simultaneamente ou não. Pode-se entender “intenção boa” como “boa-fé”: “entendam que a boa-fé impõe, sob pena de pecado, que se siga a consciência. Melhor seria sofrer uma excomunhão do que ir contra a consciência” (CHENU, 2006, p. 27). Para se fazer entender, Abelardo cita Romanos 14, 22-23, passagem em que o apóstolo Paulo relaciona a “fé esclarecida” com a “boa fé”: “A fé esclarecida que tens, guarda-a para ti diante de Deus. Feliz aquele que não se condena na decisão que toma. Mas quem duvida e assim mesmo toma o alimento é condenado, porque não procede de boa-fé. Pois tudo o que não procede da boa-fé é pecado”.

Continuou o tema acerca da intenção nos capítulos XI e XII, no questionamento acerca do que é, de fato, uma boa intenção entre as muitas existentes. Pode-se praticar uma boa ação e, por consequência, se ter uma boa intenção (intenção direita

98 “Iuxta igitur haec duo, concupiscentiam carnis et concupiscentiam animae quae premisimus, probator

ou verdadeira). Mas também pode ocorrer o contrário: ter uma boa ação, porém com uma má intenção. Ou ainda, excluindo o resultado da boa intenção em uma ação boa ou má, podemos ter uma boa intenção, que realmente seja boa. Aqui podemos dialogar com a crença do indivíduo frente as suas próprias convicções, que o levam realmente a acreditar que a ação é boa. No terceiro capítulo, analisaremos melhor o tema da crença como existimatio frente à consciência do indivíduo e as possibilidades de se ter a opinião, crença ou fé como condutor da vida moral, ainda que não se tenha intelecções das mesmas.

A articulação entre a boa intenção e a boa ação que não se coloca como aparente, segue na discussão dos capítulos XIII ao XVIII, em que Abelardo desenvolveu a análise sobre o tema do pecado em relação à intenção e à consciência. No capítulo XIII e XIV, ele questiona o que seria pecado contra a consciência, ou seja, o pecado que provém da alma, que é consentido racionalmente. Conforme Chaves- Tannús (1996, p. 82): “Todo pecado [para Abelardo] provém da alma apenas, jamais da carne”.

Abelardo enumerou na Ethica três tipos de pecado, a saber: a) o pecado propriamente dito, ou seja, o desprezo de Deus, um consentimento a um ato pecaminoso. Nesse sentido, Chaves-Tannús (1996, p. 68) argumenta que: “a culpa, ou seja, o pecado propriamente dito, só pode existir onde há uma razão em atividade, capaz de decidir se, com pleno conhecimento de causa, pelo desprezo de Deus”. Dessa forma, defendemos que em Abelardo essa “razão em atividade” é a própria consciência moral que não precisa necessariamente da formação de uma intelecção, mas basta a opinião (existimatio) para que o indivíduo se responsabilize pelas suas ações; b) o pecado da ignorância, ou seja, quando se desconhece o pecado que se cometeu. Para Saint-Thierry, em Abelardo não existe pecado da ignorância, contudo, para Abelardo, mesmo que se desconheça que pecou, ou seja, que seja ignorante do pecado, isso não significa que não tenha pecado. Em sua Confessio Fidei Universis (Cfidei), escrita provavelmente após o Concílio de Sens, Abelardo afirma que são “culpáveis” os atos cometidos por ignorância (ABELARDO, 1849, p. 721). Logo, se se comete o pecado por ignorância, pode ser que a intenção não seja má. Como exemplo, Abelardo cita a ignorância da criança que ainda não recebeu o batismo, a ausência de fé, aqueles que não receberam os sacramentos da Igreja, os que vivem

no paganismo por terem nascido em uma cultura diferente e aqueles que simplesmente desconhecem a existência de Cristo:

Efetivamente aqueles que a Cristo ignoram, e diante disso rejeitam a fé cristã porque a creem contrária a Deus, têm nisso um desprezo de Deus, pois que fazem por causa de Deus, e diante disso estão pensando fazer o bem, sobretudo ainda que o Apóstolo diga: “Se nosso coração não nos tiver repreendido, temos confiança junto a Deus?” – como se ele dissesse que quando não presumimos contra a nossa consciência, em vão tememos ser estabelecidos réus de culpa junto a Deus99 (ABELARDO, 1971, p. 56).

Para tal concepção acerca do pecado da ignorância, Abelardo tem como fundamento a passagem de Romanos 10, 14: “Mas como poderiam invocar aquele em quem não creram? E como poderiam crer naquele que não ouviram? E como poderiam ouvir sem pregador?”. Essa passagem pode ser complementada com Romanos 2, 14-15, em que São Paulo cita a situação dos pagãos que seguem a lei da cidade e não a de Cristo, por não a conhecerem. Resta-lhes se apoiarem em suas consciências e nos pensamentos que defendem:

Quando então os pagãos, não tendo lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela lei, eles, não tendo lei, para si mesmos são a lei; eles mostram a obra da lei gravada em seus corações, dando disto testemunho sua consciência e seus pensamentos que alternadamente se acusam ou defendem.

O último tipo de pecado seria: c) o pecado original, ou seja, o pecado que herdamos de Adão e Eva. Rémusat (1855, p. 488-489), afirma que para Abelardo esse tipo de pecado não é de fato um pecado, pois é um “pecado” que se configura: “sem

consentimento, sem vontade, ou seja, um pecado sem pecado”100. Abelardo não

considera o pecado original como um pecado propriamente dito e sua concepção também foi criticada por Saint-Thierry, na Carta 326, onde cita uma passagem em que Abelardo afirma que o pecado original não é um pecado: “Porque de Adão não

99 “Qui enim Christum ignorant et ob hoc fidem Christianam respuunt, quia eam Deo contrariam credunt,

quem in hoc contemptum Dei habent quod propter Deum faciunt, et ob hoc bene se facere arbitrantur, presertim cum Apostolus dicat, “Si cor nostrum non reprehenderit nos fiduciam habemus apud Deum?” Tanquam si diceret, ubi contra conscientiam nostram non presumimus, frustra nos apud Deum de culpa reos statui formidamus”.

contraímos a culpa, mas a pena do pecado original”101 (BERNARDO, 1859, p. 532).

Também encontramos essa mesma ideia de Saint-Thierry entre as teses condenadas pelo Concílio de Sens, enviadas ao Papa Inocêncio II, anexadas a Carta 190: “Que

não contraímos a culpa a partir de Adão, mas apenas a pena”102 (MEWS, 2001, p.

109).

Segundo Abelardo (1971, p. 56 e 58), não podemos tomar por pecado aquilo que desconhecemos ser um pecado: “As obras também próprias do pecado, ou o que quer que não corretamente sabemos ou queremos, algumas vezes dizemos

pecados”.103 Por exemplo, quando pensamos em uma criança que nasceu em pecado,

originado de Adão e Eva. A criança não nasceu pecadora, apesar de que quando for adulta poder se tornar uma. Mas o fato é que a criança não tem pecado, não tem malícia e nem intenção de pecar, contudo, herda, enquanto indivíduo humano, a pena imposta a Adão e Eva, e não o pecado que eles cometeram. Com isso, mérito e pecado só podem existir quando há, em realidade, o consentimento ao pecado: “Para Abelardo, peca apenas aquele que sabe o que faz, que é capaz de discernir e, ainda assim, dá seu consentimento ao mal” (CHAVES-TANNÚS, 1996, p. 69). Contudo, uma afirmação de Abelardo se mostra contraditória. Na Cfidei, ele afirma que contraímos de Adão “tanto a culpa quanto a pena, porque seu pecado foi a origem e a causa de

todos os nossos pecados”104 (ABELARDO, 2006, p. 178). Não sabemos porque

Abelardo se contradiz nessa afirmação e também expomos algumas concepções de Abelardo sobre pecado a título de contextualização, não sendo, portanto, nosso tema de estudo. O que sabemos é que sua Apologia foi redigida em forma de defesa (MEWS, 2001, p. 86-87), contra as penas que lhe foram impostas no Concílio de Sens. Nesse caso, ainda concordamos com Rémusat (1855), que o pecado original para Abelardo seria um pecado sem pecado.

101 “Quod ad Adam non trahimus originalis peccati culpam, sed poenam”. 102 “Quod non contraximus culpam ex Adam, sed poenam tantum”.

103 “Opera quoque ipsa peccati, uel quicquid non recte fascimus aut uolumus, non numquam peccata

dicimus”.

104 Tradução da Cfidei feita por Cléber Eduardo dos Santos Dias (2006), com a correspondência original no latim (Edição Victor Cousin, 1849). Quando necessário, fizemos inserções e correções, de acordo com o original latino.

“tam culpam quam poenam (...) quia illius peccatum nostrorum quoque peccatorum omnium origo extitit

Fora os tipos de pecado já mencionados, podemos acrescentar que na concepção de Abelardo há outro tipo de pecado, a saber, acerca daqueles que pecam em pensamento. Chaves-Tannús (1996, p. 101) diz que para Abelardo “o fato de termos pensamentos ruins não significa que estaríamos dispostos a emprestar nosso consentimento a eles”. E pode-se evitar o pecado através da educação. Pode-se estimular uma educação moral que contemple a prática do bem e desestimule a prática do mal.

No capítulo XV, Abelardo segue sua análise acerca do pecado e questiona se todo o pecado é proibido:

Nem de fato [é pecado] o que, como acima recordamos, nos foi proibido por Deus, a não ser o consentimento do mal, pelo qual a Deus desprezamos, ainda quando acerca da obra uma preconcepção pareça ocorrer, assim como mais acima expusemos, quando também demostramos de nenhum outro modo poderem seus preceitos ser guardados por nós105 (ABELARDO, 1971, p. 68).

Abelardo afirma, portanto, que a única coisa proibida é o consentimento ao mal, pois quando intencionamos e consentimos pecar, desprezamos a Deus.