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Resolução das Questões de Porfírio

1 CONCEITO DE INDIVÍDUO

1.1 LÓGICA

1.1.5 Resolução das Questões de Porfírio

A Isagoge, de Porfírio, como vimos, era uma introdução às categorias de Aristóteles. A obra formula, através de três questões, o estudo das cinco vozes (quinque voces) que foi interpretada por seus contemporâneos como problema (DE LIBERA, 1996, p. 15). A obra buscava compreender no âmbito ontológico as categorias de Aristóteles, e, em especial, as questões referentes aos gêneros e às espécies. Abelardo, por sua vez, buscava compreender os universais no âmbito lógico-semântico, e todas as repostas que formulou para as questões de Porfírio foram exatamente tratadas nesse âmbito, inclusive a formulação de sua própria questão, que servia para complementar as de Porfírio. Segundo Leite Junior (2001, p. 77), “Abelardo salienta que a questão de Porfírio é mal formulada, na medida em que é excludente e não permite uma resposta em outros termos”. Ou seja, as questões de

43 “per 'homo' animalis et rationalis mortalis, non etiam posteriorum accidentium conceptionem habeo,

confusam tamen, non discretam” (ABELARDO, 1919, p. 27).

44 “Unde merito intellectus universalium solus et nudus et purus dicitur. solus quidem a sensu, quia rem

ut sensualem non percipit. nudus vero quantum ad abstractionem formarum vel omnium vel aliquarum. purus ex toto quantum ad discretionem, quia nulla res, sive materia sit sive forma, in eo certificatur, secundum quod superius huiusmodi conceptionem confusam diximus”. (ABELARDO, 1919, p. 27).

Porfírio visavam apenas um aspecto dos universais, direcionados à ontologia, não levando em conta seu aspecto lógico-semântico. Com a formulação da quarta questão, Abelardo estabeleceu sua compreensão acerca dos universais, que não estava voltada ao realismo, mas a um nominalismo com modificações quanto à natureza das palavras universais, como veremos adiante no ponto que discorremos sobre o “nominalismo” de Abelardo.

A primeira questão de Porfírio indagava se os universais existiam de fato, se eram ou não uma opinião vazia, se engendravam ou não uma intelecção sã e verdadeira. Essa questão leva em conta a existência em três estâncias: em Platão, os universais existem de forma separada das coisas sensíveis, como substância; em Aristóteles, os universais existem no intelecto, como conceito inteligido das coisas sensíveis pela abstração; e no pensamento platônico cristianizado, os universais existem na mente Deus (DE LIBERA, 1996, p. 36-37). Levando em conta essas três estâncias, a resposta de Abelardo foi elaborada no âmbito das palavras. Quando as mesmas são proferidas, se remetem de alguma forma às coisas que realmente existem e subsistem no intelecto como conceito:

A isso é preciso responder que, na verdade, significam pela denominação

coisas verdadeiramente existentes, isto é, as mesmas que os nomes singulares e que, de modo algum, estão colocados numa opinião vazia; contudo, de certa maneira, consistem, como ficou estabelecido, numa intelecção isolada, nua e pura45 (ABELARDO, 2005, p. 87-88).

A segunda questão de Porfírio investigava sobre a corporeidade ou não dos universais (em Boécio, separados ou não separados das coisas sensíveis). Para Abelardo, os universais eram, ao mesmo tempo, corporais e incorporais. Corporais quando se remetiam às coisas que existiam de fato e incorporais quanto ao modo diferente de como se estabeleciam no intelecto, significando o que poderia ser inteligido da coisa, subsistindo de forma diferente de como existia em si mesma:

45 “Ad quod respondendum est, quia re vera significant per nominationem res vere existentes, easdem

scilicet quas singularia nomina, et nullo modo in opinione cassa sunt posita; quodam tamen modo intellectu solo et nudo et puro, sicuti determinatum est, consistunt” (ABELARDO, 1919, p. 28).

De um certo modo, os corporais, isto é, separados na sua essência, e os incorporais quanto à designação do nome universal, porque não os denominam separada e determinantemente, mas confusamente (...) Daí também os próprios nomes universais serem chamados corpóreos quanto à natureza das coisas e incorpóreos quanto ao modo de significação46 (ABELARDO, 2005, p. 89).

A terceira questão de Porfírio examinava se os universais se encontravam ou não nas coisas sensíveis. Abelardo praticamente já respondeu a essa questão na segunda, ao tratar da corporeidade ou não dos universais. Aqui ele aprofunda a resposta, afirmando que os universais não existem realmente nas coisas sensíveis, mas subsistem no intelecto quando o que é sensível é inteligido e pela abstração da matéria e da forma passam, então, a ter um significado intelectual.

Diz-se que os universais subsistem nas [coisas] sensíveis, isto é, que significam a substância intrínseca existente na coisa sensível em virtude das formas exteriores e que, significando essa substância que subsiste em ato na coisa sensível, manifestam-na, contudo, como naturalmente separada da coisa sensível47 (ABELARDO, 2005, p. 89-90).

Abelardo encerra as respostas às questões de Porfírio e passa a trabalhar a sua própria questão, a fim de complementar o que já fora contemplado até então. Ele indagava se, por ventura, a coisa não existisse mais, como as rosas do jardim, se haveria ainda a possibilidade de elas subsistirem no intelecto, sem uma correspondência real. Se haveria, portanto, palavras ou nomes universais que, aos serem proferidos, correspondessem à coisa que já pereceu. A saída de Abelardo se voltará à significação. Segundo Abelardo (2005, p. 92):

Deve-se notar, porém, que, embora a definição do universal ou do gênero ou

da espécie inclua apenas palavras, esses nomes são frequentemente

46 “corporalia quodammodo, id est discreta in essentia sua et incorporalia quantum ad universalis

nominis notationem, quod scilicet ea non discrete ac determinate nominant, sed confuse (...) Unde et nomina ipsa universalia et corporea dicuntur quantum ad naturam rerum et incorporea quantum ad modum significationis” (ABELARDO, 1919, p. 28-29).

47 “Et dicuntur universalia subsistere in sensibilibus, id est significare intrinsecam substantiam

existentem in re sensibili ex exterioribus formis et cum eam substantiam significent, quae actualiter subsistit in re sensibili, eandem tamen naturaliter separatam a re sensibili demonstrant” (ABELARDO,

transpostos para suas coisas, como quando se diz que a espécie consta do gênero e da diferença, isto é, a coisa da espécie da coisa do gênero.48

Por meio da denominação já não será possível remeter-se à coisa que não existe mais, porém o seu significado no intelecto será permanente:

nós, de modo algum, admitimos que haja nomes universais quando, tendo sido destruídas as suas coisas, eles já não são predicáveis de vários, porquanto nem são comuns a quaisquer coisas, como o nome da rosa, quando já não perduram mais rosas, o qual, entretanto, ainda é então significativo em virtude da intelecção, embora careça de denominação, pois, de outra sorte, não haveria a proposição: não há mais rosas49 (ABELARDO, 2005, p. 91).

Abelardo trata das coisas individuais da mesma forma que trata um indivíduo. Para a nossa análise voltada à compreensão do indivíduo, convém observar como ele é caracterizado na LI a partir do problema dos universais. Os principais aspectos que nos interessam giram em torno da singularização ou individuação, portanto, dos universais que, por definição aristotélica, são aptos a serem predicados de muitos, mas para Abelardo, devem ser tomados um a um.

A análise da individuação foi feita desde o início da LI, primeiramente na refutação dos universais concebidos como coisas ou formando coleções, do qual não compartilham a mesma essência. Abelardo ressalta o que é individual nos gêneros e

nas espécies. Retoma a noção de “próprio”, já trabalhada por Porfírio no Isagoge.

Como exemplo, afirma que a característica de uma espécie, como ser racional, não pode ser compartilhada com a característica de outra espécie, como não ser racional.

A intelecção dos universais se remete, assim, ao seu estado da coisa, sua natureza, sua forma comum e semelhante, mas não própria de alguma: “o universal não é outra coisa que o individual considerado em sua “convenientia”, em virtude de

48 “Notandum vero, quod licet solas voces definitio universalis vel generis vel speciei includat, saepe

tamen haec nomina ad res eorum transferuntur, veluti cum dicitur species constare ex genere et differentia, hoc est res speciei ex re generis” (ABELARDO, 1919, p. 30).

49 “universalia nomina nullo modo volumus esse, cum rebus eorum peremptis iam de pluribus

praedicabilia non sint, quippe nec ullis rebus communia, ut rosae nomen <non> iam permanentibus rosis, quod tamen tunc quoque ex intellectu significatiuum est, licet nominatione careat, alioquin propositio non esset: nulla rosa est” (ABELARDO, 1919, p. 30).

uma “similitudo naturae”50 (FUMAGALLI, 1964, p. 32). Já a intelecção dos singulares,

remete-se diretamente ao individual ou indivíduo, e não a uma forma comum e confusa.

Contudo, ambas as intelecções são representadas, como vimos, por uma imagem. Aqui aprofundamos a ideia de imagem e dizemos que essas representações são conceitos: “Ainda que não possamos mais designar uma coisa, podemos formar um conceito daquilo que não existe mais” (LEITE JUNIOR, 2001, p. 80). Por concepção, podemos compreender: “conceptio (...) pode também ser traduzida por concepção (ato) e concepção (o que é concebido, “conceito”)” (NASCIMENTO, 2005, nota 6, p. 32). Assim sendo, as palavras, quando proferidas, formam no intelecto uma representação que pode ser uma imagem ou ir além e formar um conceito. Dessa forma, a coisa continua de alguma maneira a ter um significado, subsistindo no nosso intelecto como um conceito, mesmo que venha em si mesma a perecer. Porém, esse conceito não pode ser reduzido a uma percepção ou pensamento: “o conceito não é unicamente a coisa considerada como pensamento; é o pensamento que lhe dá um

conhecimento determinado”51 (RÉMUSAT, 1845, p. 499). Isso significa que o conceito

é o resultado de uma atividade do pensamento, ou, como Abelardo menciona, do intelecto, e é significado por ele.