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Trata-se de uma metodologia nascida do meio rural, mas que o transcende, pois, toda relação pedagógica é uma dialética integradora entre o saber escolar e os saberes da vida. Por isso, mais que uma nova metodologia, trata- se de um novo sistema escolar (NOSELLA, 2014, p. 19-20).

Escolhemos as palavras do filósofo e educador Paolo Nosella para iniciarmos esta seção do capítulo por ter sido ele o responsável por escrever o primeiro trabalho acadêmico sobre o tema aqui no Brasil e por sintetizar a sua compreensão sobre esta pedagogia que considerava mais que uma “metodologia”, um novo “sistema escolar”12. Ademais, Paolo Nosella integrou o Movimento de Educação Promocional do Espírito

12 A literatura da área tem se referido à PA enquanto sistema escolar ou sistema educativo (GIMONET,

2007; QUEIROZ, 2004), apontando os componentes que são fundamentais desse sistema: o/a alternante (pessoa em formação); o projeto educativo; a experiência sócio profissional; a rede de parceiros/as co- formadores/as; o dispositivo pedagógico; o contexto educativo; os formadores e formadoras; e outros atores educativos (QUEIROZ, 2004, p. 95).

Santo (MEPES), o qual introduziu a Pedagogia da Alternância (PA) aqui no país. Mas antes de explorarmos a gênese e capilarização da PA em nosso país, apresentaremos uma breve narrativa sobre a origem primeira dessa pedagogia até a sua inserção no campo brasileiro.

A Pedagogia da Alternância nasce na França, no final da década de 1930, a partir da necessidade de um modelo de escola para o contexto do campo que considerasse os desejos de pais, mães e lideranças religiosas que, preocupados com a desmotivação dos/as jovens com o ensino regular, buscaram, por meio de um sistema escolar diferenciado fornecer uma educação para os/as jovens que os permitissem ter acesso aos conhecimentos escolares, ao mesmo tempo em que permanecessem com suas famílias, lidando com o trabalho agrícola de forma digna.

Na França da década de 30 do século XX, movido pelo desejo de formar os/as jovens para atuar em suas comunidades rurais, o padre francês Granereau13 busca, junto com alguns agricultores14 (Jean Peyrat, M. Callewaert e Edouard Clavier), da comunidade rural de Sérignac-Péboudou, uma solução para o problema do desinteresse dos/das jovens com o ensino regular que era disponibilizado. Segundo os pais e mães, a escola não formava seus filhos e suas filhas para viver no campo, o que gerava o desinteresse em prosseguir os estudos, uma vez que a escola não considerava a agricultura enquanto profissão, nem tão pouco valorizava a lida no ambiente do campo15. Além dessa questão, é importante destacar que o modelo escolar disponibilizado aos jovens potencializava o êxodo rural da região, ou seja, os/as jovens por não disporem de um ensino que considerasse a dinâmica de vida no campo, acabavam mudando-se para a cidade em busca de estudos e/ou outras formas de trabalho. Este fenômeno é motivado, segundo Vergutz e Cavalcante (2014), em virtude

13 Este sacerdote atuou de diferentes maneiras, enquanto ativista político, para solucionar o problema da

insatisfação dos jovens com a escola regular na França. Além de ajudar a fundar a Maison Familiale

Rurale, o sacerdote fundou também um sindicato rural para ajudar a superar o individualismo e o

isolamento entre os camponeses (NOSELLA, 2014).

14 Queiroz (2004) aponta que há divergência entre autores no que se refere aos verdadeiros fundadores

das Casas Familiares Rurais (Maison Familiale Rurale) francesas, como explicita no trecho a seguir: “Quando lemos a obra ‘Le Livre da Lauzun’, de autoria do próprio Granereau encontramos, repetidamente, a referência a si mesmo como ‘o fundador’ [...] Quando lemos Chartier e Nové-Josserand encontramos o termo ‘principais promotores’ se referindo ao padre Granereau, Jean Peyrat e Arsène Couvreur” (QUEIROZ, 2004, p. 66).

15 Neste trabalho estamos considerando os termos “rural” e “campo” como sinônimos, no entanto é

preciso destacar que autores como Fernandes e Molina (2004) interpretam esses termos enquanto paradigmas políticos divergentes e contraditórios. Nesta perspectiva, há uma diferenciação socioeconômica no modo como historicamente tem se referido a esses termos e que se traduz em diferentes modelos de educação. Para saber mais, ler Fernandes e Molina (2004); Ribeiro (2012); Souza (2008).

da grande valorização da cidade em relação ao campo pela sociedade ocidental pós- revolução industrial, sendo potencializada pelas Guerras Mundiais, que no contexto europeu contribuiu para a difusão de atividades urbano-industriais que, atrelada à condição de precariedade de serviços e condição de vida acabam por incentivar ao êxodo rural.

A partir do cenário supramencionado, foi-se projetando um modelo de escola empenhado em superar a problemática do êxodo rural dos/das jovens, emergindo ao final da década de 1930 a proposta de Casas Familiares Rurais (Maison Familiale Rurale), que abarcaria a PA, em que “os jovens permaneceriam unidos alguns dias por mês, em tempo integral, para logo em seguida voltarem à sua propriedade agrícola” (NOSELLA, 2014, p. 47). Este foi um caminho de formação que satisfez tanto o sacerdote quanto os desejos dos agricultores e agricultoras da região e deste modo a escola por Alternância16 teve sua origem.

O contexto francês é o berço de origem dessa pedagogia que se consolida enquanto sistema de ensino (NOSELLA, 2014), se espalhando para diferentes regiões dos continentes europeu, africano e americano que viviam e compartilhavam a mesma situação de êxodo rural de jovens que não estavam contemplados e motivados com o ensino urbanocêntrico que lhes era fornecido por não considerar as suas aspirações, os desejos, a dinâmica social e os valores do campo.

No Brasil, a Pedagogia da Alternância chega pela primeira vez ao Estado do Espírito Santo, em 1969, por meio da ação do Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo, o qual fundou as Escolas Famílias Agrícolas (EFA) que também sofreram influência das Maison Familiale Rurale (Casa Familiar Rural) francesas (CORDEIRO; REIS; HAGE, 2011; NOSELLA, 2014; QUEIROZ, 2004; SILVA; 2012; TEIXEIRA; BERNARTT; TRINDADE, 2008; VERGUTZ; CAVALCANTE, 2014), sendo o primeiro país da América Latina a adotar essa pedagogia. A Pedagogia da Alternância surge sob influência da Igreja Católica17, mas ao chegar na América Latina, dado o contexto sociopolítico, ela é influenciada também pela Pedagogia Freireana (CAVALCANTE, 2010), a qual assume o papel de âncora conceitual. É importante destacar que o cenário sociopolítico brasileiro em que a Pedagogia da Alternância

16 É importante destacar que o princípio da Alternância é bastante antigo e há diferentes experiências e

teorias que a organizam e a caracterizam. Para saber mais sobre essas características, ler Araújo (2018); Queiroz (2004).

17 No Brasil a iniciativa parte de um padre ligado à Companhia de Jesus que identificou a necessidade de

adentra em nosso contexto é caracterizado pela ditadura militar, o qual provoca a emergência de iniciativas educacionais populares, gerando um panorama fértil para a capilarização de propostas educativas imbuídas por ideais de lutas por emancipação dos sujeitos, com as organizações comunitárias sob a égide da educação popular (VERGUTZ; CAVALCANTE, 2014).

Desde sua formulação na França, essa pedagogia vem crescendo no Brasil e no mundo, estando presente em diferentes redes educacionais tais como nas redes privadas, públicas e sobretudo filantrópicas (ARAÚJO, 2018). Dados da União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil (UNEFAB) mostram que, até 2010, o Brasil contava com 118 Casas Familiares Rurais (CFR) e 145 EFA (Idem).

Estes dados mostram que a PA tem tido êxitos enquanto proposta formativa para o campo e a sua popularização e relevância têm aumentado. No entanto, é importante considerarmos que por aproximadamente 30 anos o formato das escolas que adotam a PA no Brasil foi aplicado por meio de associações comunitárias sem o reconhecimento oficial dessas instituições pelo Estado. Nesse contexto, com o passar dos anos e devido a uma série de lutas dos movimentos sociais e a eficácia da proposta, o Ministério da Educação não apenas aceitou a Alternância enquanto sistema de ensino como também tem buscado disseminá-la e institucionalizá-la por meio de legislação que a contemple18. Segundo o parecer de Murilo Hingel, que trata sobre o calendário tempo escola e tempo comunidade da Pedagogia da Alternância, os centros de formação que se baseiam na Alternância se expandiram pelas cinco regiões brasileiras, sendo possível identificar oito formas de organização desses centros atualmente, sendo que algumas delas não oferecem educação escolar (BRASIL, 2006). Dentro desse universo de oito tipos de centros, três19 deles não promovem educação formal, mas fornecem formação técnica e política para os sujeitos do campo. O parecer mencionado refere-se, especificamente, à rede dos Centros Familiares de Formação por Alternância (CEFFA) que congrega as Escolas e Casas Familiares Rurais e as Escolas Comunitárias Rurais (ECOR) que são escolas que adotam a PA.

Importa destacar que se constituem como objetivos do CEFFA:

18 Além de legislação própria que define as características, os princípios, a metodologia da Pedagogia da

Alternância, em 2016 foi proposto pelo Senador Helder Salomão (PT) um projeto de lei que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/96) para tornar clara a possibilidade de adoção da Pedagogia da Alternância nas escolas do Campo, sendo aprovada em 08 de novembro de 2017.

19 Programa de Formação de Jovens Empresários Rurais, Escolas Técnicas Estaduais e o Centro de

Formação integral dos jovens do meio rural, adequada à sua realidade, incluindo a melhoria da qualidade de vida das famílias pela aplicação de conhecimentos técnico-científicos e o estímulo no jovem do sentido de comunidade, vivência grupal e desenvolvimento do espírito associativo e solidário, até a introdução de práticas relacionada às ações de saúde, nutrição e de cultura das comunidades. (BRASIL, CNE/CEB Parecer nº 1, 2006, p. 41).

Como se pode perceber, a integração entre as três agências educativas - família, escola e comunidade - possibilitada pela Pedagogia da Alternância, permite que os sujeitos tenham acesso à escola, apropriem-se dos conhecimentos científicos, tecnológicos, históricos e filosóficos sem que tenham que abandonar a lida no trabalho agrícola (CORDEIRO, REIS; HAGE, 2011), sempre buscando estimular os valores da comunidade em que estão inseridos.

A pedagogia em questão considera que não apenas o ambiente escolar constitui como espaço de ensino e de aprendizagem, mas também o ambiente familiar e comunitário. Assim sendo, na PA, os processos de ensinar e de aprender são organizados em dois tempos diferenciados, mas que interdependem e se comunicam, são eles: o Tempo-Comunidade (que ocorre na propriedade familiar ou nas comunidades envolvidas) e Tempo-Escola (que se desenvolve na unidade escolar).

Os diferentes tempos que formam a Pedagogia da Alternância reúnem atividades escolares e nas comunidades de origem dos sujeitos, de modo a estabelecer relação entre os conteúdos estudados e as experiências vividas nas pequenas propriedades dos estudantes (SOUZA, 2008). Mais especificamente, no Tempo-Escola (TE) são realizadas atividades organizadas pelos diferentes componentes curriculares que compõem cada módulo temático20, já no Tempo-Comunidade (TC), por sua vez, constitui o momento em que os/as estudantes estão na comunidade desenvolvendo atividades junto com a família, sob orientação dos monitores/as de modo a articular, dialeticamente, os conhecimentos construídos em suas experiências nas comunidades e na escola.

Nosella (2014, p. 30) discutindo o papel formativo desses diferentes espaços e tempos que organizam a Pedagogia da Alternância, enuncia, pois, os princípios básicos que fundamentam essa pedagogia: a) a responsabilidade compartilhada entre os pais e a comunidade local acerca da educação de seus filhos; b) os conhecimentos construídos pelos/as estudantes em suas comunidades, através do trabalho no campo, são articulados

20 Módulo temático refere-se ao conjunto de atividades desenvolvidas em cada alternância, sendo estas

com aqueles construídos na escola; c) alternância das etapas de formação entre o espaço escolar e a vivencia das relações sociais e de produção na comunidade rural.

Para que esses princípios sejam alcançados, a Pedagogia da Alternância dispõe de instrumentos didático-pedagógicos peculiares que são, fundamentalmente, os seguintes: a) Plano de Estudo (que contém questões elaboradas tanto por alunos/alunas quanto pelos monitores e monitoras21); b) Caderno da Realidade (busca acompanhar os/as alunos/as em toda sua vida escolar, estimulando a reflexão sobre a realidade concreta, a partir das questões presentes no Plano de Estudo); c) Viagem e Visita de Estudo (viagens ou visitas feitas pelos/pelas alternantes durante o período escolar); d) Serões ou Colocação em Comum (espaço de socialização e reflexão, no ambiente escolar, acerca das experiências vividas na comunidade); e) Visita às famílias (ida dos monitores e/ou monitoras às propriedades dos/das discentes para realização de ações tais como: assistência técnica, observação e acompanhamento da realidade sócio- familiar e demais questões sócio-pedagógicas que envolvam o/a estudante); f) Avaliação (subdividida em avaliação formativa - a qual ocorre durante ou ao final de cada atividade, tendo por objetivo perceber os limites e os aspectos positivos das atividades desenvolvidas pelos/as alternantes - e avaliação-controle ou somativa - em que almeja ao final de uma sequência de atividades verificar o nível dos conhecimentos construídos, sendo traduzidas, muitas vezes, por meio de uma pontuação (AIRES, 2017; GIMONET, 2007; NOSELLA, 2014).

Como se percebe, esses instrumentos didático-pedagógicos são ferramentas importantíssimas para o processo dialógico entre o Tempo-Escola e do Tempo- Comunidade. Em suma, esses diferentes tempos articulam prática e teoria em uma práxis e realiza-se em tempos e espaços que se alternam entre escola e comunidade ao qual o/a educando/a está vinculado (CORDEIRO; REIS; HAGE, 2011), sendo possibilitada por meio desses instrumentos pedagógicos. Como salientam Fernandes e Molina (2004), trabalhar e tirar da terra a sua existência requer “conhecimentos que são construídos nas experiências cotidianas e na escola” (p. 60), assim sendo, a PA tem se apresentado com potencial para o diálogo desses diferentes conhecimentos que são importantes na perspectiva de uma formação emancipatória dos sujeitos.

21 Utiliza-se o termo “monitor”/“monitora” ao invés de “professor”/“professora” por conta de sua tarefa ir

além da docência e implicar no acompanhamento do/da aluno/aluna além das atividades escolares, como também em suas atividades sociais e profissionais (GIMONET, 2007; NOSELLA, 2014).

A perspectiva de formação emancipatória que estamos considerando baseia-se nos pressupostos freireanos de educação libertadora, que tem grande influência sobre o delineamento da PA no contexto brasileiro. Na visão freireana, tanto educando/a quanto o/a educador/a são sujeitos do processo educativo, ultrapassando o intelectualismo alienante e superando o autoritarismo docente “bancário” (FREIRE, 1987). Deste modo, tanto o/a docente quanto o/a discente tem a contribuir para o ato de educar.

Neste aspecto, a formação emancipatória exige processos educacionais de problematização e reflexões críticas sobre a realidade das pessoas, em que as relações de opressão possam ser tematizadas durante as ações educacionais, sempre pautadas por meio do diálogo22 - que se configura enquanto categoria indispensável no agir educacional – o qual é compreendido como processo de troca, de compartilhamento de conhecimentos, experiências, valores entre educador/a e educando/a. Ação que deve sempre respeitar as diferenças entre os sujeitos e buscar transformar a realidade (FREIRE, 1983; 1987).

Nesta visão de educação, as ações e os conteúdos estão articulados para possibilitar a humanização e a libertação dos sujeitos, engajados na transformação social, construindo um horizonte de possibilidades para a formação emancipatória humana (MENEZES; SANTIAGO, 2014). Soma-se a isso o fato de que na perspectiva freireana a humanização é uma vocação tanto histórica quanto ontológica do ser, a qual nos lança a agir no mundo objetivo das relações sociais vividas (ROBERTS, 2000 apud SANTOS, 2008b).

Como afirma Cavalcante (2011), a pedagogia dialógica de Freire agrega valor ao delineamento inicial da PA nos contextos socioeducacionais do rural23 brasileiro, assim a PA se assume como sistema educacional na perspectiva de uma teoria-prática para a formação emancipatória, que possibilita vivências de aprender e conhecer, assumindo a horizontalidade dos saberes do campo, ademais apresenta-se como caminho para atingir a finalidade de reflexão e ação (tão explicitamente defendida nas obras freireanas) no contexto e com os sujeitos do campo (VERGUTZ; CAVALCANTE, 2014).

22 Como anunciou Freire (1983, p. 28) “o diálogo é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados

pelo mundo, o ‘pronunciam’, isto é, o transformam, e, transformando-o, o humanizam para a humanização de todos”.

23 Embora estejamos trabalhando a partir do referencial teórico e político da Educação do Campo,

estamos cientes que no universo comunitário estudado a palavra dita e a nomenclatura apropriada continuam sendo “rural”. Daí que estamos trazendo para esses escritos a expressão “rural” a partir da relação com a comunidade em que foi desenvolvido o estudo. Sobre a diferença entre “rural” e “campo” ver FERNADES; MOLINA, 2004; FERNANDES, 2006.

Explicitada a origem francesa da Pedagogia da Alternância e sua inserção no Brasil, percebe-se a influência que o pensamento de Paulo Freire teve para os desdobramentos da PA no contexto latino-americano. A influência freireana também tem sido forte no campo da Educação Científica entre alguns pesquisadores que defendem uma educação em ciências que busque o diálogo, a problematização, a análise da realidade, de modo a romper com as relações opressivas presentes em nossa sociedade. É desta perspectiva que nos orientamos para pensarmos uma Educação Científica para as escolas que adotam a PA na busca da formação emancipatória para os sujeitos do campo, a qual será tratada na próxima seção.

2.3 EDUCAÇÃO CIENTÍFICA HUMANÍSTICA: UM RESGATE DOS