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Voltando à últim a citação, decerto as objeções que Freud não queria invocar são as relativas a seus pressupostos teóricos evolucionistas, de que a esfera do in- consciente contém processos de pensam ento m ais ‘infantis’ e ‘arcaicos’. Em sua obra, há um a tensão constante entre essas assunções, por um lado, e, por outro, sua constatação da uniform idade dos processos de pensam ento.

Considere-se, por exem plo, o problem a do duplo registro, ou dupla inscri- ção, que a noção topográfica da divisão inconsciente/ pré-consciente acarreta. Esse problem a envolve a questão de com o algo inconsciente pode se tornar pré- consciente, e assim , consciente, já que, afinal de contas, só se pode saber de algo quando este se junta à consciência. Isso im plica tam bém na consideração da questão da censura que se interpõe entre os dois sistem as. Nos trabalhos

m etapsicológicos( 1915/ 1974 a,b) , essa questão vai ser form ulada da seguinte

form a: um ato psíquico x é rejeitado pela censura e perm anece no inconsciente. Diz-se, então que foi recalcado. Se o ato psíquico x passar pela censura, terá livre acesso, através do pré-consciente, à consciência, resultando no ato psíqui- co x’. Questão: x e x’ são dois registros diferentes ou são o m esm o registro que sofreu um a m udança de estado, no m esm o m aterial e na m esm a localidade?

Essa questão não pode ser respondida considerando-se o fato de que o es- sencial do recalcam ento é a supressão do desenvolvim ento da descarga da cota de afeto vinculada à representação ( 1915/ 1972b, p.204) . Ora, um representan- te pulsional consiste de um a representação (Vortellung) , um a idéia ou grupo de idéias, carregada por um a cota definida de energia psíquica ( libido ou interes- se) . Essa cota encontra expressão em processos que são sentidos com o afetos (Affektbetrag) . Assim , deve-se separar, em se tratando do recalcam ento, daquilo que acontece a idéia daquilo que acontece com o afeto. A idéia passa por um a

2 0 O term o fuzzy pode ser traduzido por ‘pouco nítido, desfocado’. Conjuntos fuzzy indicam

vicissitude geral, que é desaparecer do consciente ( caso o fosse) , ou ser im pe- dida de se tornar consciente. Isso faz com que a parcela ideativa do represen- tante pulsional sofra os processos de deslocam ento e condensação e se m anifes- te na form a de um a formação substitutiva. Mas o m ecanism o do recalcam ento não coincide com a form ação de substitutos, pois não existem afetos inconscientes da m esm a form a que existem idéias inconscientes. Assim , o que ocorre é um a ruptura entre o afeto e a idéia à qual ele pertence e cada um deles passa por vicissitudes isoladas.

“A idéia reprim ida perm anece capaz de agir no Ics., e deve, portanto, ter conserva- do sua catexia. O que foi retirado deve ter sido outra coisa” ( p.207) . Nesse ponto, Freu d retom a a distin ção en tre representação de coisa e representação de palavra. Ch ega, assim , à diferença entre representação consciente e inconsciente. As duas não são registros diferen tes do m esm o con teú do em lu gares psíqu icos diferen tes, n em estados funcionais diferentes da catexia no m esm o lugar. Ocorre que a representa- ção pré-consciente abrange a representação de coisa m ais a representação da palavra que lhe corresponde. Já a representação inconsciente abrange apenas a representa- ção de coisa. “O sistem a Ics contém as catexias da coisa dos objetos, as prim eiras e verdadeiras catexias objetais; o sistem a Pcs. ocorre quando essa apresentação da coisa é hipercatexizada através da ligação com as representações da palavra que lhe correspondem ” ( 1915-1974a, p.230) .

Resultado: o que o recalcam ento faz é negar à representação de coisa sua tradução em palavras, resultando disso que um a representação que não seja posta em palavras — um ato psíquico que não seja hipercatexizado — perm a- nece no inconsciente. Ora, os processos de pensam ento, isto é os “atos de catexia que se acham relativam ente distantes da percepção” ( p.230) são destituídos de qualidades e inconscientes, e só se tornam conscientes através de sua ligação com as representações de palavras. Quando ligadas às palavras, as catexias po- dem ser dotadas de qualidade, m esm o quando representam ligações entre as representações de objeto, “sendo assim incapazes de extrair qualquer qualidade das percepções” ( p.231) . Estas relações, que se tornam com preensíveis através de palavras, constituem um a das principais partes dos nossos processos de pen- sam ento. As palavras se tornam capazes de exprim ir essas relações qualitativa- m ente pois elas tam bém se originam de percepções sensoriais, da m esm a form a que as representações de coisa.

Isso m ostra que a diferença entre os dois processos de pensam ento não é qualitativa, com o se houvesse um pensar 1 — que segue um a lógica m ais prim i- tiva — e um pensar 2 — que segue um a lógica racional. Pensar, para Freud, é estabelecer conexões entre representações, sejam essas conexões advindas da ex-

periência perceptiva ou das ações que o indivíduo executa em seu m eio. Isso acontece tanto no funcionam ento do processo prim ário quanto no do secundário. Assim , a diferença entre processo prim ário e secundário não reside na rela- ção destes com as palavras, m as no padrão de ativação, ou em term os freudianos, no ‘m odo da energia’, que responde, essencialm ente, à experiência do sujeito com relação à sua satisfação. O que, de fato Freud está procurando m odelar com essa diferença é a atuação concom itante dos dois conjuntos de pensam ento paralelos, que ele descobriu, a partir da análise das form ações do inconsciente, estarem na base do conflito psíquico, ou da “divisão do eu”. Divisão que Freud vê com o estrutural na categorização do que é interno e do que é externo, do que é “eu” e do que é “não-eu”, e que m arcará toda a atividade cognitiva dos hum anos.

Em resum o: a razão freudiana é experiencial.21 As pesquisas contem porâneas nas ciências cognitivas têm m ostrado que os m ecanism os cognitivos isolados por Freud não são exceção na racionalidade hum ana, nem são superados por um a pretensa evolução para o pensam ento form al, m as são a regra. Tipicam en- te, o hom em pensa ‘com seu corpo e com sua experiência’.

Recebido em 19/ 11/ 2003. Aprovado em 22/ 3/ 2004.

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Fabio Thá

Rua Professor Álvaro Jorge 875 80320-040 Curitiba PR Tel ( 41) 244-6201 fvdt@ bsi.com .br

Ex-psiquiatra de hospitais, é professor de psicopatologia e de psicanálise na Universidade de Paris 7. Analista- m em bro do AFPRF, do qual foi presidente. Clinica em Paris. Tradução: Helena Soledade Floresta de Miranda

DIREITO E VIOLÊNCIA

* Ala in Va n ie r

*Conferência proferida no Espace Psychanalytique ( Paris) em janeiro de

2003. O autor cedeu o original sem a indicação das páginas das passa- gens entre aspas. Só contam os com a referência bibliográfica. Ainda as- sim , optam os por m anter as aspas.

1 Conform e Freud ( 1933) . Esta troca de cartas entre Albert Einstein e

Sigm und Freud se deve à iniciativa da Com issão Internacional do Com itê Perm anente de Letras e Artes da Sociedade das Nações e foi publicada em 1933 com o título “ Por que a guerra?” . O título “ Direito e violência” , proposto inicialm ente, foi recusado por Freud.

RESUMO:Partindo da correspondência entre Freud e Einstein so- bre a guerra e seus porquês, o autor faz um percurso que rem onta à lei da selva e m ostra com o a origem e a m anutenção do direito estão intrinsecam ente ligadas à violência. Para tanto, utilizam -se basicam ente textos de Freud, Lacan e Walter Benjam in, na tentativa de distinguir variados tipos de violência – desde raízes gregas até as últim as grandes guerras.

Palavras - c have : Psicanálise, lei, violência.

ABSTRACT: Law and violence. Based on the correspondence be- tw een Freud and Einstein on the w ar and its w hys, in his w ork the au th or dates back to th e law of th e ju n gle an d sh ow s h ow th e origin and m aintenance of the law are closely connected to vio- len ce. To prove th at h e u ses basically texts of Freu d, Lacan an d Walter Benjam in that try to distinguish the different kinds of vio- lence from its Greek roots to the last great w ars.

Ke y w o rds : Psychoanalysis, law, violence.