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No decorrer do mestrado, participei de alguns congressos, seminários e fui convidada a falar sobre a pesquisa em algumas disciplinas da graduação e pós- graduação da Faculdade de Educação da Unicamp. Durante uma roda de conversa com alguns colegas pós-graduandos, numa das disciplinas em que discuti este estudo, uma das estudantes, professora de escola pública, se mostrou bastante incomodada com as reflexões em torno da inclusão e das diferenças que eram

144 Ver mais em: Cavalleiro (2001; 2003); Feitosa (2012); Munanga (1998; 2006; 2009); Soligo (2001; 2014); Souza (2002).

apresentadas e debatidas. A educadora questionava sobre o que era descontruído ali, em torno dos meios para lidar com os alunos "incluídos".

O questionamento apresentado pela professora me levou a pensar em algumas das narrativas das participantes da pesquisa que, de alguma forma, traziam incômodos semelhantes. Durante o primeiro grupo focal, instigada a dizer o que o conjunto de imagens apresentado provocava, a Professora 4 indagou: "O que que é inclusão? É essa pergunta que a gente faz todo dia." (Transcrição 1 - Grupo focal 1). Em outro momento da discussão a Professora 1 também explicita suas questões: "[...] quando a proposta é “Vamos fazer a inclusão!”, a gente não tem base! A gente não tem o apoio pra isso. [...] Como que vai ser [...] essa inclusão? Qual é o problema do aluno? [...] O que que a gente pode tá fazendo pra ajudar?" (Transcrição 1 - Grupo focal 1).

No segundo grupo focal, a mesma professora explicita seu incômodo com o meu papel, no momento da reunião que, enquanto pesquisadora, exerço uma mediação "indagativa", buscando não interferir muito (se é que isso é possível) na resposta das professoras: "Mas eu não gosto de discutir só eu falando. (Risos). Eu quero saber se eu estou certa ou estou errada." (Transcrição 2 - Grupo focal 2).

As falas evidenciadas parecem explicitar o estranhamento, o incômodo da escola, aqui representada por seus professores, diante da diferença. Não só isso. Indicam a busca por modelos para lidar com incluídos e diferentes no âmbito escolar, o que remete a teoria de Moscovici apresentada anteriormente quando este diz sobre a recorrente busca pelo familiar diante da não-familiaridade. É por isso que os incômodos aparecem quando se fala em (res)significar o que está posto sobre inclusão e diferenças, questionando os conceitos prontos e os discursos advindos da ordem médica, quando se propõe uma discussão que não objetiva marcar o que é certo e o que é errado com incluídos e diferentes, mas uma reflexão conjunta: afinal, como a escola e seu grupo de professores está pensando a inclusão e as diferenças? A partir da Teoria das RS é possível dizer que a escola está lidando com esses "objetos estranhos" a partir da dinâmica da familiarização, compreendendo-os a partir de encontros e paradigmas preexistentes (MOSCOVICI, 2015). No decorrer do trabalho venho assumindo que a minha própria representação social sobre inclusão e diferenças vem se modificando no processo da pesquisa. Conforme indico no capítulo que introduz este trabalho, olhando para o TCC de 2013, vejo o quanto minha RS sobre inclusão e diferenças estava relacionada com as ditas deficiências e

"necessidades especiais", ou seja, uma representação baseada na norma. Tendo partido de uma ideia alocada nas questões da normalidade/anormalidade e de classificações advindas do âmbito clínico-terapêutico, quando olho para as narrativas das professoras da atual pesquisa de mestrado, lembro de mim mesma, há pouco tempo atrás, fazendo as mesmas questões: afinal, o que querem de nós, professores? Lembro dos meus questionamentos sobre a inclusão em sala de aula: “É possível? Como fazer?”. Penso nos momentos de reflexão sobre inclusão e diferenças dos quais venho participando no âmbito acadêmico. Lembro das dúvidas de colegas de trabalho, que mesmo pertencendo a uma realidade diferente das professoras participantes da pesquisa, levantam questões similares. De algum modo, as narrativas das professoras também me representam, são também algumas das minhas narrativas em diferentes momentos. Apesar de já ter abandonado muitas ideias com o caminhar, é um movimento constante de idas e vindas. Vivendo em uma sociedade na qual a representação maior está ligada às ideias do âmbito clínico-terapêutico (portanto da dicotomia normal x anormal), é difícil romper totalmente com certos conceitos.

Conforme destacado anteriormente, as representações sociais, de acordo com Moscovici e Vignaux (2015), estão sempre inscritas dentro de um referencial preexistente de pensamento, vinculadas a sistemas de crenças que se ancoram em valores, tradições, imagens do mundo e da existência. Esse pensamento preexistente é assegurado por ideias que foram assumidas em determinado momento histórico (AMARAL; ALVES, 2013). A dicotomia entre normal x anormal, criação fortíssima da modernidade a partir da colonização da América145, parece ser o referencial de pensamento que norteia as RS das professoras sobre inclusão, diferenças e infância(s) evidenciadas neste trabalho. Este pensamento preexistente presente nas representações integra o projeto eurocêntrico da modernidade.

145 De acordo com Quijano (2005, p. 122): "a modernidade e a racionalidade foram imaginadas

como experiências e produtos exclusivamente europeus. Desse ponto de vista, as relações intersubjetivas e culturais entre a Europa, ou, melhor dizendo, a Europa Ocidental, e o restante do mundo, foram codificadas num jogo inteiro de novas categorias: Oriente-Ocidente, primitivo-civilizado, mágico/mítico-científico, irracional-racional, tradicional-moderno. Em suma, Europa e não-Europa. Mesmo assim, a única categoria com a devida honra de ser reconhecida como o Outro da Europa ou “Ocidente”, foi “Oriente”. Não os “índios” da América, tampouco os “negros” da África. Estes eram simplesmente “primitivos”. Sob essa codificação das relações entre europeu/não-europeu, raça é, sem dúvida, a categoria básica. Essa perspectiva binária, dualista, de conhecimento, peculiar ao eurocentrismo, impôs-se como mundialmente hegemônica no mesmo fluxo da expansão do domínio colonial da Europa sobre o mundo.".

Desde os primórdios do colonialismo que dominou povos e culturas ao longo da história, essa dicotomia vem sendo afirmada através das classificações e nomeações criadas a partir de modelos eurocêntricos. Com isso, o normal é representado a partir da figura do europeu e o anormal caracteriza tudo que foge dessa categoria, os "selvagens" colonizados e todo o restante do mundo.

Voltando-me para o objetivo desta pesquisa de observar como as reflexões propostas durante o estudo puderam/podem contribuir para a (res)significação das representações sociais sobre inclusão e diferenças a partir dos referenciais mencionados, me pergunto: como romper com tais premissas? É no pensamento fronteiriço que me inspiro para pensar possíveis rompimentos.

De acordo com Nolasco (2016), o pensamento de fronteira "[...] é a resposta epistêmica do subalterno ao projeto eurocêntrico da modernidade." (s.n.). Trata-se de um pensamento que não ignora as concepções modernas dicotômicas, que postulam a existência de uma ordem universal, de um modelo de racionalidade, de uma ideia de sujeito, de grandes sistemas explicativos e totalizantes, da supremacia do Homem, de uma cultura a partir da qual as demais são inventadas e nomeadas (COSTA M., 2007b), mas que não se deixa dominar por elas. É um pensar/habitar a exterioridade. Um modo descolonial de pensar. Um pensamento das margens e que por isso não tem um pertencimento demarcado (NOLASCO, 2016). Um pensamento que implica um "[...] pensar a partir das línguas e das categorias de pensamento não incluídas nos fundamentos dos pensamentos ocidentais." (MIGNOLO, 2008, p. 305). Que rejeita possibilidades de substituição dos resumos universais existentes por quaisquer outros (MIGNOLO, 2008).

Nas discussões sobre inclusão e diferenças provocadas durante os grupos focais e entrevistas, foi possível perceber que algumas professoras dão pistas de possuir um pensamento fronteiriço. São falas que revelam incômodos, questionamentos para além do âmbito da normalidade/anormalidade e das concepções clínico-terapêuticas e que deixam a dúvida, se olhadas com rapidez: para que lado pendem? Em qual representação estão ancoradas e objetivadas? São narrativas que parecem partir de uma concepção mais antropológica do que clínico- terapêutica, mas que não deixam de ser controversas em vários momentos (uma vez que “voltam” a representar as diferenças pelo viés da representação do normal x anormal). Durante o primeiro grupo focal, a Professora-coordenadora comentou:

[...] O que a gente precisa é ser mais simples, tornar as coisas mais simples e ter esse olhar de que não é só um aluno que não enxerga, não é só uma pessoa que não escuta que precisa ser incluída. A inclusão ela se dá com

todo mundo. A inclusão se dá com cada diferente. Aquele aluno meu que

não aprende no ritmo dos demais [...] Precisa da minha atenção tanto quanto os outros e a minha atenção não precisa ser essa coisa assim, “Nossa, mas e aí? E agora? Como é que vai ser?”. Eu acho que talvez a gente precise assim aprender a controlar essa ansiedade, aprender a lidar

com todas as diferenças que nos vem a todo momento146, a todo dia, a cada segundo até." (Quadro de análise nº 01).

Em outro momento da discussão, a mesma participante diz: "[...] a gente traz dentro da gente determinados padrões. E tudo que sai daquele padrão, gera desconforto, gera preconceito, gera uma atitude negativa. A gente está sempre procurando encaixar as coisas dentro de uma ideia... 147" (Professora-coordenadora, quadro de análise nº 01).

No segundo grupo focal, as professoras foram provocadas com um vídeo que propõe a reflexão de como a criança vê a diferença. Em meio a conversa iniciada por conta do meu questionamento sobre quais diferenças estariam sob a responsabilidade da escola, surge uma fala sobre um determinado menino que prefere brincadeiras de meninas. Em meio a isso, as professoras começam a discutir sobre as questões de gênero na escola:

Professora 5: Tem um livro que chama assim ó "Brincar de quê". Dessa

coleção aqui (perto de onde a professora está sentada tem uma estante de

livros. Ela pega um e mostra ao falar da coleção).

Professora-coordenadora: Não é uma questão só de brincadeira. Professora 5: Mas então, ele gosta de brincar de brinquedo de menina. (Conversas paralelas não compreensíveis).

Professora 6: Não é?! Ele fala!

Professora-coordenadora: Não, não é gostar de brincar de coisa de menina. Professora 6: Eu separo na minha aula menino, menina, às vezes,

dependendo da brincadeira. Ele vai pro lado das meninas.

Professora 5: Mas então... Professora 6: Ele se vê como tal. Professora 5: Mas então, é essa coisa... Professora 6: Ele se vê!

146 Grifos meus.

Professora 5: Por que que a gente separa?148 (Quadro de análise nº 02).

O trecho em destaque me faz lembrar do diálogo conflituoso proposto por Ramos (2011), sobre o qual falei no capítulo anterior. As professoras não têm as mesmas perspectivas sobre a criança mencionada e é interessante observar como as falas vão se encontrando em vários momentos do grupo focal, cada qual com sua particularidade e por fim surge um questionamento potente sobre as práticas escolares/"pedagógicas" (e concepções por detrás dessas).

Durante a entrevista, questiono a Professora 5 sobre quais crianças caberiam na proposta da inclusão. Ao responder à pergunta, ela fala sobre a filha, deficiente auditiva149, e a experiência escolar desta:

Porque, é um ser humano que tem um potencial [...] Ela tem que desenvolver o potencial que tem. E não vai ser eu achando que ela é coitadinha, que ela não vai desenvolver [...] É isso que a gente precisa tirar [...] Essa coisa de paternalismo. [...] A gente tem que dar... Tem que dar o poder pra pessoa, ela tem... (Professora 5, quadro de análise nº 05).

A narrativa da professora parece indicar um olhar que busca perceber o outro na perspectiva do que ele é e não pela ótica do que lhe falta, da normalidade/anormalidade. Faz lembrar dos "caminhos alternativos de adaptação", propostos por Vigotski (2011), do qual falei no Capítulo 2. Como mencionei anteriormente, é possível dizer que as narrativas apresentadas revelam ideias que estão na fronteira entre o pensamento impingido pela modernidade e o que está além desta; que questionam, que não se prendem ou que buscam se desprender do que está demarcado pela modernidade (NOLASCO, 2016). São pensamentos que revelam (im)possibilidades emancipatórias para o campo da inclusão, das diferenças e da(s) infância(s), mas que acabam escapando, pois no contexto escolar não há tempos e nem espaços para que essas compreensões fronteiriças surjam e se encontrem com outras. Ainda bem que elas surgem mesmo sem permissão!

Em 2013, quando realizei o trabalho de conclusão de curso, essa perspectiva do pensamento de fronteira ainda não fazia parte das minhas reflexões. Hoje vejo, através de um olhar que parte dos encontros vividos no decorrer dos anos que se sucederam, que é possível identificar pensamentos fronteiriços também nos

148 Grifo meu.

discursos dos gestores que participaram do estudo. Destaco aqui o que observei nessa zona fronteiriça de pensamento durante os estudos de mestrado, pois esse constructo me ajudou a perceber que essas educadoras têm muito a dizer sobre inclusão, diferenças e infância(s), pois elas estão no “olho do furacão”: na escola que

[...] não foi feita para permitir a todos - indistintamente - o acesso ao conhecimento. Pelo contrário, criada como mecanismo de controle social, sempre coube a ela a tarefa de reforçar estigmas, partindo de um ponto de vista que despreza qualquer manifestação que não conste do "roteiro" elaborado a partir de uma realidade ideologicamente produzida: a do aluno branco, urbano, cristão e de classe média. (GUSMÃO, 1999, p. 64).

Uma das falas da Professora 5 durante a entrevista, exemplifica o que Gusmão afirma: "[...] o que eu vejo, hoje, é... Principalmente na escola, é os grupos iguais juntos; os diferentes são excluídos." (Quadro de análise nº 05). Mesmo que as representações sociais sobre inclusão e diferenças surgidas nas narrativas estejam hegemonicamente ancoradas no viés da constituição biológica dos sujeitos, concebendo a diferença pela perspectiva da anormalidade e da falta, os pensamentos fronteiriços surgem.

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