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PENSAR DESENHANDO

No documento Ebook Educacao Sociedade (páginas 70-73)

O pesquisador e artista canadense Jean Lancri (2006) defende poeticamente a especificidade da pesquisa em arte – no caso, a pesquisa em processos artísticos, que ele chama de pesquisa-criação. Lancri faz várias recomendações ao pesquisador em arte, dentre elas que recorra ao sonho, que equilibre razão e sonho na pesquisa; que recorra à noite, associada pelo autor à dúvida; que acolha a contradição; que permita a despossessão e a entrega; e fi- naliza orientando 3 pontos de “estrelamen- to” para a pesquisa-criação: o devaneio, o

recurso dos ensinamentos da poesia e o re- curso da noite (que ele exemplifica através do episódio da descoberta da frottage pelo artista surrealista Max Ernst).

Pensar por imagens é pensar poetica- mente. Há muitas evidências deste tipo de pensamento na atividade de artistas em diversos contextos, contudo, somente a partir do Renascimento é possível encon- trar vestígios do “pensar por imagens” no processo criativo dos artistas. É na diferen- ciação do trabalho do artista e do artesão, com o surgimento de uma noção de artista a partir dos valores humanistas, que impli- cava numa formação não só de ofício mas pautada nas Artes Liberais, e a elevação do status social do artista, que vão propiciar a valorização dos esboços e cadernos de artista que revelam os processos de cria- ção de alguns artistas renascentistas. O exemplo mais notório é Leonardo da Vinci (1452-1519), que produziu cerca de 13.000 páginas nas quais muitas vezes conjugava imagem e texto (WHITE, 2002). Deste ex- pressivo volume de registros, subsistiram apenas 7.200 páginas (ISAACSON, 2017).

Italo Calvino debruçou-se sobre a escri- ta de Leonardo, quem, por sua condição de filho ilegítimo não pode dispor do ensino formal e estava ciente de suas limitações

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quanto ao latim9 e a gramática. Da Vinci de-

sabafou: “Ó escritor, com quais letras con- seguirias relatar a perfeição deste conjunto expresso aqui pelo desenho?” (CALVINO, 1990, s/p). Calvino enfatiza a predileção de Leonardo pela expressão visual: “E não era apenas a ciência, mas igualmente a fi- losofia que ele estava seguro de poder me- lhor comunicar pela pintura e o desenho” (CALVINO, 1990, s/p). Apesar de expressar essa dificuldade, Calvino ressaltou a neces- sidade imperiosa de Leonardo em escrever, persistente mesmo quando já não pintava: (...) com o passar dos anos tinha parado de pintar, mas pensava escrevendo e de-

senhando, e, como que perseguindo um único discurso com desenhos e palavras,

enchia seus cadernos com sua escrita canhota e especular. (CALVINO, 1990, s/p, grifo nosso)

Os cadernos de Leonardo registram este embate entre palavra e imagem (Figura 2). Mostram como se dava o processo de pes- quisar do artista: observar, olhar – da ma- neira como o desenhar exige -, investigar o objeto (ou o fenômeno) através do es- boço, captar os contornos, os volumes, os detalhes e também a síntese do objeto no

9. White (2002) estima que Leonardo aprendeu sozinho o latim após a peste de 1487 (ou seja, entre seus trinta e qua- renta anos), expressando-se antes em língua vernácula.

desenho; apropriar-se do objeto transmu- tando-o da transparência e imaterialidade até a densidade construída pelas hachuras.

Figura 2. Leonardo da Vinci. Estudos da Villa Melzi e estudo anatômico. 1513. Nanquim sobre papel. Royal

Librarian, Londres

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Leonardo_da_ vinci,_Studies_of_the_Villa_Melzi_and_anatomical_study.jpg.

Isaacson relata que as anotações de Leonardo assumiam formatos diversos, iniciando com “folhas soltas do tamanho

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livretos encapados em couro ou papel veli- no feito um livro de bolso ou até menores, que ele levava consigo para tomar notas” (2017, p. 127). Como vários autores já res- saltaram, os cadernos de Leonardo cata- logam toda sua gama de interesses (arte, anatomia, botânica, arquitetura, óptica, hidráulica, geometria, engenharia militar, urbanismo, geologia, mecânica, acústi- ca, cartografia), ideias derramadas “so- bre a página de maneira quase aleatória” (WHITE, 2002, p. 108), e que aparecem mui- tas vezes de forma sobreposta. Na figura 2 é possível observar numa mesma página esboços anatômicos e estudos arquitetôni- cos. Isaacson declara:

Mas a beleza dessas sobreposições é o fato de que, com elas, podemos nos encan- tar com o espetáculo de uma mente univer- sal transitando de forma exuberante e livre por todas as artes e ciências e percebendo, nesse processo, as conexões no cosmos (2017, p. 130).

No estudo de Fritjof Capra sobre Leonardo, interpretou a frase “Facile cosa è farsi universale” (“É fácil tornar-se uni- versal”), escrita pelo artista/cientista num contexto de observação dos padrões semelhantes de estruturas anatômicas de animais diferentes. E reconheceu em

Leonardo o que muito mais tarde foi cha- mado de “pensamento sistêmico”, pois ele “foi o primeiro de uma linhagem de cientis- tas a salientar os padrões que interligam as estruturas básicas e os processos dos siste- mas vitais” (CAPRA, 2008, p. 57).

White observou igualmente as relações que Leonardo tecia entre diferentes áreas do conhecimento, como quando percebeu como poderia estabelecer ligação entre “os padrões que relacionavam a estrutura do corpo com as proporções dos prédios” e a “estrutura harmônica encontrada na música” (2002, p. 173). White qualificou a perspectiva de Da Vinci como “holística”, através da qual era possível ver “conexões entre ideias e sistemas de pensamento aparentemente díspares” (2002, p. 173).

Michael Gelb (2003) sistematizou algu- mas características marcantes no pensa- mento de Leonardo da Vinci. Sobre uma delas, arte/scienza (arte/ciência), Gelb su- blinhou o desenvolvimento em Leonardo do equilíbrio entre ciência e arte, lógica e imaginação e viu na combinação de escritos e desenhos nos registros dos cadernos de Leonardo a demonstração desse equilíbrio. Para o autor, a realização de mapas mentais é uma forma de promover essa união de ins- piração vinciana entre arte e ciência.

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MAPAS MENTAIS DO PROJETO DE

No documento Ebook Educacao Sociedade (páginas 70-73)