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Períodos críticos para a aprendizagem? 60

Capítulo 3: O desenvolvimento ontogenético do uso de ferramentas 45

3.3. Períodos críticos para a aprendizagem? 60

Um jovem macaco-prego, sendo bastante tolerado pelos indivíduos mais velhos, tem amplas oportunidades de observar de perto o uso de ferramentas na quebra de cocos, o que garante as condições ideais para a aprendizagem socialmente enviesada e para a manutenção da quebra de cocos como uma tradição social (v. adiante).

As influências sociais parecem ser importantes, mas não são condição suficiente para a aprendizagem do uso de ferramentas, como atesta o caso de Manuel, o único indivíduo com mais de 2 anos que não quebrava cocos (até falecer, com 3.4 anos de idade), apesar de, já na 29a semana de vida, ter sido visto manipulando pedras. Sendo um observador extremamente tolerado, Manuel tornou-se um “scrounger” constante de outros indivíduos (Ottoni, Resende & Mannu 2002).

Mas o que acontece se o indivíduo não crescer numa população onde esta prática esteja presente? É possível aprender a quebrar cocos com ferramentas na maturidade?

Períodos “críticos” ou “sensíveis” para a aprendizagem são bastante familiares aos etólogos - o “imprinting” das aves precoces constituindo o exemplo clássico. A aprendizagem do canto nas aves envolve em muitos casos estas “janelas temporais”. Algumas espécies podem ser “aprendizes abertos”, como os canários (Serinus canarius), capazes de aprender novas canções ao longo de toda a vida. Outras passam por um período limitado de tempo após o qual suas canções se “cristalizam”. Em alguns casos, as fases sensorial (de exposição ao tutor) e sensorial-motora (de prática individual) se superpõem, como nos mandarins (Taeniopygia guttata, “zebra finches”); em outros, elas estão separadas no tempo: um jovem pardal-de-coroa-branca (Zonotrichia

leucophrys) deixa de sensível à exposição ao canto do tutor antes de começar

a vocalizar (Brainard & Doupe 2002; Slater 2003).

Outro “período sensível” bastante familiar está no desenvolvimento da fala humana: depois do início da adolescência, é difícil aprender a produzir os sons de uma nova língua com a competência de um falante nativo (Doupe & Kuhl 1999).

Mas se às vezes os chamados “períodos críticos” correspondem a “janelas” temporais bem definidas, associadas a mudanças neurais irreversíveis, em outras se referem apenas a um declínio gradual na prontidão para aprender – que pode se dever a uma série de causas, fisiológicas, cognitivas ou sociais.

No caso dos chimpanzés, Matsuzawa e colaboradores observaram na população de Bossou três casos de fêmeas que não quebravam cocos: duas supostas imigrantes vindas de populações sem esta tradição e uma jovem fêmea nativa. Yunro, embora fosse filha de Yo, uma proficiente quebradora de cocos, havia passado por um período de incapacitação, durante o qual não podia manipular objetos (por causa de uma armadilha de arame que prendeu seu tornozelo esquerdo por volta dos 4 anos de idade e foi retirada apenas meses depois). Matsuzawa (1994) considerou este caso uma possível evidência de um período crítico para a aprendizagem do uso de ferramentas.

E quanto aos macacos-prego? No grupo em estudo no PET, após um longo período sem “recém-chegados”, dois machos subadultos se juntaram ao grupo. “X” escapou de uma das ilhas do parque (aonde os animais recentemente confiscados são geralmente soltos) em setembro de 2003. As origens de “Z” são um pouco mais obscuras: ou ele veio também de uma das ilhas, ou foi sub-repticiamente solto na Área de Preservação por um visitante, em fevereiro de 2004.

Nenhum dos dois quebrava cocos, como faria, numa população de “quebradores”, qualquer macho com mais de 2 anos de idade.

Ambos podiam observar episódios de quebra, ainda que mais de longe (5+m) do que um infante ou juvenil bem-tolerado, e tinham oportunidade de realizar algum “scrounging” mediato, bem como de explorar e manipular os “martelos” deixados nos sítios, mas Z parecia bem mais interessado nesta

última atividade que X e, já em 2004, exibia padrões de “Quebra Inepta” comparáveis aos dos infantes mais velhos ou juvenis mais jovens, batendo pedras contra o substrato sem posicionar cocos sob os “martelos”, depois comendo restos que já se encontravam espalhados pelo local (num padrão comportamental quase “supersticioso”, indicando uma razoável falta de compreensão causal do processo).

Infelizmente, vem a seguir uma “janela” de um ano em nossos dados, de janeiro de 2005 a fevereiro de 2006.

Após este intervalo, constatamos que X havia se tornado um “scrounger” sistemático de sítios de quebra, mas não exibia muitos episódios de manipulação de objetos, muito menos tentativas de quebra de cocos - sequer “Ineptas”. No seu caso, ao menos, o “stimulus enhancement” não foi suficiente para promover a aprendizagem do uso de ferramentas.

Z, por outro lado, se tornou um “quebrador” proficiente, comparável à maioria dos juvenis mais velhos (Figura 22).

Figura 22. X (foto Tiago Falótico) e Z (foto Camila G. Coelho).

O caso de Z mostra que, a rigor, não há um “período crítico” para a aprendizagem da quebra de cocos com ferramentas, embora as diferenças individuais provavelmente sejam grandes na prontidão para o aprendizado tardio. Os maiores impedimentos parecem estar na esfera social, uma vez que, como assinalamos anteriormente, machos adultos ou subadultos são bem

menos tolerados por outros machos adultos, por um lado, e tendem, por outro, a deslocar dos sítios de quebra os juvenis proficientes, o que cria algumas barreiras à aprendizagem observacional.

Para Z, ao menos, alguma observação, ainda que à distância, associada a uma intensa manipulação das ferramentas, similar a de indivíduos mais jovens crescendo num grupo de “quebradores”, foram suficientes para promover a aprendizagem tardia. E entre 2006 e 2007, Z estabeleceu um relacionamento próximo com a fêmea Janete, quase periférica e altamente proficiente na quebra de cocos, o que seguramente criou oportunidades para observar mais de perto do uso de ferramentas (embora ele já fosse um “quebrador” proficiente no início de 2006).

Como não sabemos nada sobre as experiências pregressas destes dois imigrantes, não podemos, entretanto, descartar a existência de um “período crítico” observacional precedendo a aprendizagem “sensorial-motora” (análogo à fase sensível de “aprendizagem sensorial” no canto dos pardais), nem de um efeito das oportunidades precoces de manipulação de objetos em geral (com uma aprendizagem sensorial-motora prévia em outros contextos de manipulação de objetos facilitando processos posteriores de aprendizagem sensorial-motora em contextos diferentes), mas a trajetória de aprendizagem de Z, que percorreu já adulto uma seqüência de desenvolvimento da técnica de quebrar cocos similar à de um juvenil típico, mostra que a aprendizagem tardia é possível e que não há um “período crítico” no sentido estrito do termo (Ottoni et al 2009).