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CAPÍTULO II OS CIDADÃOS E A TOLERÂNCIA À DIFERENÇA

5. CORRELATOS COM O PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO

5.1. Percepção de ameaça

Uma das variáveis que mais sistemática e consistentemente tem sido relacionada com o preconceito e a discriminação de grupos étnicos ou imigrantes, é a percepção de ameaça, operacionalizada, no entanto, de diversas formas. Stephan e colegas (Stephan e Stephan, 2000; Stephan, Ybarra e Bachman, 1999), consideram que a ameaça (seja mais realista ou mais simbólica) e os medos intergrupais constituem os factores principais responsáveis pela discriminação e preconceito. E são efectivamente mui- tas as percepções de ameaça que têm sido relacionadas positivamente com a discriminação, o preconceito ou a oposição à igualdade de direi- tos (como o direito à segurança social, saúde e habitação): (percepção de ameaça) ao bem-estar económico ou social, à identidade nacional, à cultura, ao emprego, à zona onde se mora, à segurança, criminalidade, à segurança social, a liberdades fundamentais ou a valores como o indivi- dualismo, responsabilização e ética protestante do trabalho, obediência e disciplina (Bierbrauer e Klinger, 2002; Cottrell e Neuberg, 2005; Curseu, Stoop e Schalk, 2007; Falomir-Pichastor et al., 2004; Kinder e Sears, 1981; Raijman e Semyonov, 2004; Stephan e Stephan, 2000; Stephan, Ybarra e Bachman, 1999).

Genericamente, os estudos apontam para uma preponderância das per- cepções de ameaça sobre os índices mais objectivos. Sari (2004) afirma que, comparativamente com as flutuações nas condições económicas e sociais, as percepções individuais de ameaça têm um efeito mais forte no preconceito. E se McLaren (2003) refere que o índice de imigração do país (Reino Unido) tem um impacto muito significativo na percepção de ame- aça (não interferindo, no entanto, directamente com a predisposição para expulsar ou admitir imigrantes na sociedade), Semyonov e colegas (2004), recorrendo ao German General Social Survey, concluíram que, embora exista uma relação positiva entre o tamanho percepcionado da popula- ção estrangeira e a percepção de ameaça (que por sua vez se relaciona positivamente com a defesa de práticas discriminatórias contra os estran- geiros), não se verificou a expectativa dos autores de que a dimensão real da população estrangeira esteja relacionada com uma maior percepção de ameaça e atitudes discriminatórias.

rias, e consequente percepção de ameaça, é antiga na literatura. Blumer (1958) conceptualizou o preconceito racial como resultado de um senti- mento (percepção) por parte de um grupo dominante de que a sua posição de vantagem estaria ameaçada pelo grupo dominado; o preconceito seria, assim, uma resposta à percepção de ameaça. Blalock (1957) defende in- clusive que o tamanho do grupo desfavorecido relativamente ao tamanho do grupo dominante, é suficientemente ameaçador (para o grupo domi- nante) para provocar necessariamente um aumento dos comportamentos discriminatórios, teoria que ficou conhecida por hipótese poder-ameaça, e que tem ocupado alguns investigadores (e.g., Corzine, Creech e Corzine, 1983; Quillian e Campbell, 2003). O autor sustentou empiricamente a sua teoria pondo em evidência a forte relação positiva entre a percentagem de negros na população de algumas regiões (no sul dos EUA) e a discrimina- ção da mesma, designadamente em termos de desigualdade económica (Blalock, 1957). No entanto, como nota Quilliam (1995), estes dados não provam inequivocamente a relação entre um aumento no número do gru- po subordinado e o aumento da discriminação ou da ameaça. Os poucos estudos que têm tentado testar directamente a hipótese poder-ameaça, têm revelado resultados inconclusivos (Corzine, Creech e Corzine, 1983; Quillian, 1995, 2006a)28.

Ainda assim, complexificando esta hipótese e concebendo a percepção de ameaça como uma função entre as condições económicas e o tamanho re- lativos do grupo subordinado (relativamente ao dominante), Quillian (1995) afirma que esta ameaça de grupo explica grande parte da variação dos re- sultados do preconceito nos doze países que constituem a amostra do seu estudo (o autor usa dados do Eurobarómetro, nos quais se inclui Portugal), facto que o leva a relativizar a importância atribuída às características in- dividuais na explicação do preconceito. Num outro estudo, o mesmo autor (Quillian, 2006a) reafirma que as mudanças nas características individuais explicam apenas uma pequena porção do declínio do preconceito tradicio- nal (desde os anos 50 que o preconceito medido através de questionários vem diminuindo nos EUA) e que a percentagem de negros e o rendimento

per capita são bons preditores das atitudes raciais. Ou seja, quanto maior a

percentagem da população minoritária e mais desfavoráveis as condições económicas, maior o preconceito.

No entanto, têm sido vários os estudos a revelar associações entre características individuais dos sujeitos e a ameaça, o preconceito e discri- minação. Desde o trabalho de Adorno e colegas de 1950 (a personalidade

28. Por exemplo, Parker, Stults e Rice (2005) apresentam dados que apontam no sentido contrário da tese de discriminação racial em função da percentagem, nomeadamente a descida dos índices de condenação à prisão de negros à medida que aumenta o seu número entre a população.

autoritária) e do posterior conceito de autoritarismo de direita29 (right-wing

authoritarianism), proposto por Altemeyer (coincidente em grande parte com

a personalidade autoritária de Adorno), que indivíduos com características como o etnocentrismo, convencionalismo e defesa de valores tradicionais, agressão e submissão a figuras de autoridade, poder e falta de plasticidade, mostram ter uma predisposição generalizada para o preconceito relativa- mente a vários exogrupos30 (e.g., Ekehammar e Akrami, 2003; Ekehammar

et al., 2004; Feldman e Stenner, 1997; Orpen e Schyff, 1972; Rhyne, 1962),

sendo também mais vulneráveis à percepção de ameaça (Sullivan e Transue, 1999). Também o conservadorismo político (em maior grau), o orgulho nacional e a religiosidade, revelaram ser preditores do preconceito, num es- tudo com os dados do Eurobarómetro, envolvendo cerca de 4000 inquéritos (Pettigrew, 1999). No entanto, num estudo com uma amostra portuguesa de aproximadamente 530 sujeitos, o conservadorismo político, o posiciona- mento político (em termos de esquerda-direita) ou a identidade nacional, não se revelaram preditores significativos, mas sim o etnocentrismo e o conservadorismo moral (Vala, Brito e Lopes, 1999).

Taylor (1998), observa que o preconceito dos brancos contra os negros nos EUA é, em grande parte, resultante do número de negros, mas que a mes- ma dinâmica não se aplica à população latina ou de ascendência asiática. Este fenómeno, é considerado normal por Cottrell e Neuberg (2005), que defendem que a concepção tradicional de preconceito (enquanto atitude geral ou avaliação) pode mascarar reacções (e particularmente emoções) diferenciadas relativamente a grupos diferentes; os autores confirmam que grupos diferentes estão associados a diferentes perfis de emoções (por exemplo, medo, nojo, raiva, pena) e a diferentes tipos de ameaça (por exemplo, económica, a liberdades fundamentais, a valores, à segurança), congruentes entre si, mas diversos consoante os grupos. Efectivamente, Corzine e colegas (Corzine, Creech e Corzine, 1983) concluem que a hipó- tese de que a concentração de minorias está positivamente relacionada com o nível de discriminação (hipótese poder-ameaça), só se verifica em contextos culturais e/ou socioeconómicos específicos. Também Giles

29. Embora o autoritarismo de direita seja dominante na literatura, desde o estudo seminal de Ador- no que autores têm sugerido que o autoritarismo esteja presente quer na direita quer na esquerda (left-wing authoritarianism) (Levasseur, 1998). Baseando-se em investigação anterior, sobre o viés de autoritários de direita na punição (mais severa) de sujeitos de baixo estatuto sócio-económico (com- parativamente com sujeitos de estatuto sócio-económico mais elevado), Levasseur (1998) apresenta provas de que um viés semelhante, mas em sentido contrário (punindo mais severamente sujeitos de estatuto sócio-económico mais elevado), se encontra em sujeitos que o autor define como autoritários de esquerda.

30. Recentemente, outras teorias da personalidade têm sido estudadas relativamente ao preconceito, designadamente os factores da personalidade Big Five, encontrando relações negativas entre o pre- conceito e a aprazibilidade (agreeableness) ou a abertura à experiência (Ekehammar e Akrami, 2003;

e Evans (1985) relativizam esta hipótese, afirmando que somente em respondentes com um baixo nível de eficácia política é que se verifica a associação entre um maior número relativo de negros e a percepção de ameaça, estando esta inversamente relacionada com o estatuto social dos negros; por outras palavras, quanto maior o estatuto social da população minoritária, menos o seu número se relaciona com a ameaça.

Para além da hipótese poder-ameaça, são muitos os autores e teorias que consideram que a pertença a um grupo hegemónico é um factor-chave para explicar o preconceito e discriminação: a teoria da posição de grupo (Bobo e Hutchings, 1996), o conflito de grupo realista (Bobo, 1983), a teo- ria da dominação social (Sidanius e Pratto, 1999) e a teoria da identidade social (Tajfel e Turner, 1986). Em comum, estas teorias argumentam que existe uma motivação psicológica para proteger as posições privilegiadas dos grupos aos quais se pertence e consequentemente dificultar o cami- nho dos grupos menos poderosos que aspiram à igualdade (Sears, Laar e Carillo, 1997). De acordo com a teoria da “orientação para a domina- ção social” (Sidanius e Pratto, 1999), a grande parte das hierarquias com base em grupos (e.g, homem vs. mulher) são arbitrárias e dependentes de factores situacionais e contextos históricos. “A maioria das formas de conflitos e opressão entre grupos (e.g., racismo, etnocentrismo, sexismo, nacionalismo, classismo, regionalismo) são manifestações diferentes da mesma predisposição humana básica para a hierarquia social com base em grupos” (Sidanius e Pratto, 1999: 330). É, de facto, interessante notar que a privação relativa intergrupal31 mostrou ser um preditor do racismo

no contexto europeu (Pettigrew, 1999), e também especificamente no por- tuguês (Vala, Brito e Lopes, 1999). Neste contexto, é ainda curioso atender ao estudo de Newton (2000) sobre o apoio da população latina nos EUA a uma iniciativa legislativa anti-imigração, em que se observou que o grupo latino, embora constituído por imigrantes, mostrou posições diferenciadas, em que os que falavam inglês e eram à data cidadãos, apoiaram signifi- cativamente a medida. Muito da literatura sobre a relação entre diferentes grupos (culturais, étnicos, raciais ou outros), baseia-se na realidade e dis- tintividade dos grupos sociais, argumentando que estes têm propriedades que não se podem resumir às relações entre membros individuais dos grupos (Brewer e Brown, 1998; Cameira, 2005; Tajfel, 1982).

Efectivamente, a investigação tem demonstrado que qualquer situação em que haja uma distinção entre grupos, entre um nós e um eles, é suficiente

31. Medida pelo item “a situação económica de pessoas como você, relativamente à maioria dos (gru- po alvo) residentes em (país) é: muito melhor, melhor, ao mesmo nível, pior, muito pior”.

para activar respostas diferenciadas relativamente aos grupos32: os mem-

bros de um grupo ao qual um sujeito não pertence, tendem a ser vistos como mais semelhantes entre si (efeito referido na literatura por homo- geneidade do exogrupo) comparativamente com os membros do grupo ao qual se pertence. O desejo para atingir uma identidade de grupo distinta e positiva, pode manifestar-se de várias formas, nomeadamente através do favoritismo do próprio grupo (endogrupo) e da depreciação de outros grupos (exogrupos) (Cameira et al., 2002; Smurda, Michele e Gokalp, 2006; Tajfel, 1981, 1982): “o tratamento discriminatório do endogrupo sobre os mem- bros do exogrupo tem sido demonstrado em medidas avaliativas, afectivas e comportamentais” (Brewer e Brown, 1998: 559). Os membros que maior identificação, revelam com o próprio grupo e que mais se auto-definem como sendo membros prototípicos de um grupo, são também aqueles com mais tendência para discriminar membros de outros grupos (Jetten, Spears e Manstead, 1997). Assim se compreende a afirmação de que os estereóti- pos e “os sentimentos negativos que se desenvolvem relativamente a outros grupos podem estar baseados, em parte, em processos psicológicos nor- mais e fundamentais” (Gartner e Dovidio, 2000: 5). Muitas formas de viés e discriminação podem não vir necessariamente de sentimentos negativos relativos aos “outros” grupos, mas de um favoritismo do próprio grupo, isto é, “porque emoções positivas, como a admiração, simpatia e confiança estão reservadas para o endogrupo” (Brewer, 1999: 438). Adicionalmente, é importante destacar que os processos de identidade social operam in- clusive a um nível implícito, isto é, fora do controlo cognitivo dos sujeitos (Cameira, 2005; Cameira et al., 2002), levando a que “as escolhas interpes- soais e julgamentos podem ser influenciados por associações implícitas sem que disso os indivíduos tenham consciência” (2002: 604).