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CAPÍTULO II OS CIDADÃOS E A TOLERÂNCIA À DIFERENÇA

1. TOLERÂNCIA POLÍTICA

Segundo Habermas (2003), a tolerância torna-se necessária essencial- mente quando rejeitamos os pontos de vista dos outros: “não precisamos de ser tolerantes se somos indiferentes perante as opiniões e atitudes dos outros ou até se apreciamos os outros” (2003: 3). Como vimos no capítu- lo anterior, este autor defende que a tolerância religiosa se generalizou para constituir o que chamamos hoje de tolerância política no sentido geral. Congruentemente, a tolerância política é actualmente definida na literatura empírica como a capacidade dos cidadãos tolerarem a partici- pação dos outros em assuntos políticos, nomeadamente quando os pontos de vista defendidos são diferentes ou mesmo contrários aos seus (e.g., Sullivan e Transue, 1999). A inclusão neste trabalho da tolerância política, justifica-se pelo facto de esta ser uma forma de tolerância à diferença, que também inclui a diferença cultural, na medida em que (como vere- mos já de seguida) têm sido incluídos na literatura como grupos alvo, quer grupos étnicos/raciais, quer outros grupos minoritários cuja liberdade de expressão se relaciona directamente com estes, como são os grupos de extrema-direita e racistas.

Foi em 1955 que Stouffer desenvolveu uma forma de medir o nível de to- lerância política dos cidadãos dos EUA. No seu estudo seminal, o autor identificou vários grupos que eram à data11 genericamente impopula-

res (designadamente comunistas, socialistas, ateus e simpatizantes de esquerda)12, questionando as pessoas sobre a sua tolerância a activida-

des concretas dos mesmos (como por exemplo fazer um discurso público ou uma manifestação) (Gibson, 1992; Mueller, 1988; Sullivan e Transue, 1999). As conclusões dos seus três estudos empíricos principais (que in- cluíram duas amostras representativas da população americana de 2.400 sujeitos e uma terceira amostra de 1.500 líderes comunitários), indicaram que uma grande maioria dos americanos não apoiava as liberdades cívicas dos grupos de esquerda sobre os quais eram questionados.

Desde então, seguindo a metodologia criada por Stouffer, várias inves- tigações revelaram um aumento substancial no nível de tolerância dos cidadãos americanos (Mueller, 1988; Stehlik-Barry, 1997).

No entanto, em 1982, Sullivan, Piereson e Marcus, questionaram a vali- dade da medida proposta por Stouffer, argumentando que o aumento na tolerância política seria apenas ilusório, na medida em que se verificaria somente em relação aos grupos escolhidos para medir a intolerância, mas não se estenderia a outros grupos acerca dos quais o público sen- tisse uma maior hostilidade. Assim, os autores propuseram uma nova medida da tolerância política, em que cada participante começa por es- colher o grupo que menos gosta – no caso concreto, a lista era composta por dez grupos, onde para além dos grupos de Stouffer constavam, ainda, anarquistas, nacionalistas negros, e grupos de direita e extrema-direita – passando depois a responder a perguntas sobre tolerância relativamente ao grupo seleccionado, metodologia que ficou conhecida como least-liked. Com base nesta nova metodologia, os autores verificaram que a tolerância política apresentava níveis mais baixos do que os identificados pela técnica de Stouffer, concluindo que o nível de tolerância dos americanos não tinha

11. Lembramos que o estudo de Stouffer coincide com a época do presidente americano McCarthy,

conhecida como McCarthy red scare (Gibson, 1992).

12. Em inglês fellow travelers, termo que designa genericamente quem simpatiza com determinada organização sem lhe pertencer e é mais frequentemente aplicado a simpatizantes comunistas. Se fora dos EUA, o termo não tinha uma conotação necessariamente negativa (com vários intelectuais a auto- designarem-se como fellow travellers), já no contexto deste país, era considerada uma das categorias perigosas e subversivas. Por exemplo, J. Edgar Hoover definiu-a como a quarta categoria em termos de perigosidade: a primeira seria constituída pelos comunistas assumidos e pertencentes ao partido; a segunda, os comunistas que escondiam a sua pertença ao partido; a terceira, por aqueles que não pertencendo ao partido, partilhavam dos mesmos ideais; a quarta pelos fellow travellers, que não sendo potenciais comunistas, poderiam, contudo, partilhar algumas das suas ideias. Enquanto que os membros do partido eram também apelidados de vermelhos, os fellow travellers eram por vezes designados de cor-de-rosa ou rosados (pinkos) (Wikipedia, 2007).

aumentado de forma significativa desde o início da sua medição (Gibson, 1986; Mueller, 1988; Stehlik-Barry, 1997; Sullivan e Marcus, 1988).

A polémica que o trabalho de Sullivan e colegas originou, quer ao nível da metodologia, quer ao nível da respectiva revisão dos resultados, está, ainda hoje, por terminar. Gibson tem defendido que ambas as abordagens produzem resultados válidos, uma vez que as suas análises revelam que aqueles que suportam a repressão contra grupos de esquerda, também suportam a repressão contra grupos de direita (1986), atribuindo as dife- renças ao nível dos resultados produzidos pelos dois métodos, em grande parte, a erros de medida (1992). Por seu turno, Mueller (1988) recalculou as medidas de Stouffer de forma a simular parcialmente a questão do grupo menos gostado de Sullivan e colegas, chegando à conclusão de que, apesar do aumento de tolerância registado pela técnica de Stouffer re- flectir particularmente um aumento da tolerância relativamente a grupos de esquerda, o público americano não encontrou (ainda) outros grupos alvo cuja tolerância seria tão baixa quanto a dos grupos de esquerda nos anos de Stouffer (e de McCarthy). Sullivan e Marcus (1988) responderam ao trabalho de Mueller (1988), reafirmando genericamente a validade do seu estudo e das suas conclusões. Mais recentemente, Mondak e Sanders (2003) argumentam no sentido de Sullivan e colegas, dizendo que, no máximo, os níveis de tolerância entre 1976 e 1998 aumentaram apenas marginalmente. McCutcheon (2001), usando técnicas de análise de estru- turas latentes, sugere uma estrutura da tolerância política mais complexa (contrariando, de certa maneira, a argumentação de Gibson), ao descobrir quatro categorias gerais de sujeitos: genericamente tolerantes, intoleran- tes a grupos de direita, intolerantes a grupos de esquerda e genericamente intolerantes.

A literatura tem relacionado a tolerância política com diversas outras va- riáveis, com especial destaque para o compromisso e defesa de valores democráticos, a personalidade dos sujeitos (como é o caso dos autoritá- rios de direita, segundo a terminologia de Althemeyer, que abordaremos mais à frente) e a percepção de ameaça (Hunter, 1984; Sullivan e Transue, 1999)13. Esta última, tem sido reiteradamente confirmada como uma das

mais influentes sobre a (in)tolerância política, relacionando-se, por sua vez, com a existência de tendências crónicas e disposicionais de alguns sujeitos para a percepção de ameaça (com os sujeitos mais autoritários e

13. Também numerosos na investigação sobre tolerância política, são os estudos que a relacionam com a religião e religiosidade (e.g., Beatty e Walter, 1984; Karpov, 1999b; Katnik, 2002) e os estudos comparativos entre os níveis de tolerância política em diferentes países (e.g., Karpov, 1999a; Peffley e Rohrschneider, 2001; Weil, 1982), que não aprofundamos aqui, uma vez que não se revestem de parti- cular interesse para o nosso trabalho.

conservadores em termos políticos, a serem mais vulneráveis à percep- ção de ameaças), e com efeitos de mais curto prazo, devido a informação ambiental, como é o caso quando notícias de carácter ameaçador são vei- culadas pelos media (Sullivan e Transue, 1999). A ameaça sentida relativa a um grupo é, segundo Green e Waxman (1987), generalizável em grande medida a outros grupos, embora o efeito seja menor em sujeitos com um maior grau educacional.

A tolerância política, tem ainda sido estudada pela relação com a partici- pação cívica e política (e.g., Dineen, 2001; Sullivan e Transue, 1999; Weber, 2003), encontrando-se normalmente correlações positivas entre as duas variáveis, isto é, quanto maior a participação cívica e/ou política, maior a tolerância política. Weber (2003), num trabalho que se debruça especifica- mente sobre a participação política, complexifica este cenário, concluindo que algumas actividades (como fazer campanha ou participar em reuniões políticas), têm uma influência positiva na tolerância política, enquanto que outras não (como o caso de contribuir monetariamente para uma campa- nha ou partido, ou entrar em contacto com representantes políticos), o que parece remeter para o papel da qualidade das experiências de participa- ção (Ferreira, 2006; Menezes et al., 2004; Sprinthall, 1991).

Genericamente, as mulheres são menos tolerantes em termos políticos relativamente a grupos impopulares (Golebiowska, 1999), embora numa pesquisa com uma amostra de adolescentes (Sotelo, 1999) se afirme o contrário (quer relativamente a direitos políticos, quer relativamente a direitos sociais); no entanto, só em dois dos doze direitos considerados, a significância estatística tenha sido atingida, facto que leva a autora a sugerir que os rapazes e raparigas estão progressivamente a ficar mais semelhantes. Estes estudos têm um particular interesse para o nosso tra- balho, uma vez que o estudo quantitativo realizado por nós (apresentado mais à frente) também revelou diferenças de sexo.

Numa pesquisa comparativa em termos europeus, Portugal revelou eleva- dos índices de tolerância política relativamente a extremistas ideológicos (extrema-esquerda, extrema-direita e racistas), que os autores explicam pelo baixo nível de conflitualidade social e política, ausência de visibilidade pública de sectores extremistas e de partidos xenófobos, ou a memória ainda recente dos valores de Abril (Viegas, 2004).

Um facto consistente na literatura sobre a tolerância política, refere uma clivagem entre a defesa abstracta dos princípios da tolerância política e a sua aplicação a casos concretos (Dineen, 2001; Sullivan e Transue, 1999).

Por último, importa aqui referir o artigo de Kuklinsky e colegas (1991), onde se nota que a tolerância política tende a diminuir quando os respondentes são instruídos a pensar nas consequências das acções dos grupos alvo. Este fenómeno, deve-se, na opinião dos autores, ao facto de as pessoas, ao serem instruídas para pensarem nas consequências, considerarem uma amálgama de valores democráticos, alguns dos quais se encontram em conflito, e dos quais a tolerância política é apenas um. Este trabalho é, na nossa opinião, particularmente interessante, nomeadamente por- que relativiza o valor da liberdade de expressão, ao considerá-lo um entre vários valores democráticos em conflito. Efectivamente, parece-nos que a literatura sobre tolerância política incorre num erro quando considera como equivalentes a oposição dos sujeitos às liberdades civis de negros (ou ateus, indivíduos de esquerda ou direita) e de grupos racistas. Isto porque, tal como vimos no capítulo anterior, estes últimos não jogam o “jogo” da democracia na sua totalidade (enquanto jogo da maior inclusão possível), usando um dos seus princípios (a liberdade de expressão) contra outros princípios basilares da democracia, mormente a não discriminação em função da raça, etnia ou nacionalidade. De facto, concordamos com Rainer Frost quando este argumenta que “se alguém rejeita pessoas de pele negra, não lhe deveríamos pedir para mostrar «tolerância relativa- mente àqueles que têm uma aparência diferente» (…). Um racista não deve ser tolerante, ele tem de ultrapassar o seu racismo” (cit. in Habermas, 2003: 3). Ainda que, na difícil hierarquização entre os diferentes valores democráticos, alguns defendam que a liberdade de expressão deve ser o valor supremo, mesmo quando atenta contra liberdades cívicas de outros grupos, como no caso dos racistas, não nos parece razoável equiparar a intolerância relativamente a um negro, um membro de minoria étnica ou imigrante, à intolerância relativamente ao racismo, como se da mesma coisa se tratasse. Neste último caso, a intolerância poderá dever-se a uma preocupação genuína com importantes valores democráticos, contraria- mente aos restantes, distinção que não tem sido feita na literatura sobre a tolerância política e que gostaríamos de aprofundar em estudos futuros.