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6.1 E nós? Na ilusão de um convívio harmônico

6.1.6 Percepção da professora titular da turma

A professora titular da turma cedeu suas aulas para o estudo, porém participou ativamente das práticas e atividades propostas, estando ciente dos objetivos desta pesquisa e da abordagem da Competência Simbólica trabalhada nas aulas. Suas respostas à entrevista concedida em julho de 2017, foram no intuito de colaborar para uma compreensão sobre o desenvolvimento dos alunos cotistas raciais e seu empoderamento a avaliar as aulas.

1) Você percebe que há algum tipo de discriminação em sala de aula? Em caso afirmativo, que tipo?

Sim. A gente teve especificamente um caso, o caso do Milton Santos, inclusive esse caso foi parar na Coordenação Pedagógica [...]. Teve essa brincadeira de cunho

racista. Ah eles são adolescentes então qualquer coisa que sai da curva normal, do

que é planejado eles vão usar pra deboche. Se a pessoa fala demais em sala de aula eles também já vão reclamar [...] Eles costumam falar isso de “aí negão” e um dia eu pedi pro aluno branco não chamar assim e aí o Zumbi dos Palmares disse: “Por que professora? eu sou negão mesmo”, naquela linha do Zumbi de deboche. [a mesma fala já usada pelo estudante Milton quando a colega Dandara alertou sobre o chamamento inconveniente dos colegas brancos no relato registrado na Coordenação

Pedagógica]. Tem pouquíssimos negros e o Zumbi ele nem chega a ser negro, ele é

mulato... ele ele não é ele não tem fisionomia, ele tem a pele um pouco mais escura,

mas não chega a ser negro.

A professora, apesar de demonstrar consciência de que há discriminação em aula, também utiliza o termo “brincadeira” para tratar de episódio racista. Aí temos um exemplo da normatização cultural, a qual revela uma minimização do preconceito racial.

O fato de Zumbi e de Milton (no relato feito pela coordenação pedagógica) não se oporem sobre serem chamados por colegas brancos de “preto” ou “negão” demonstra uma sujeição ou um “não querer saber que estão sujeitos” (BOURDIEU, 1989, p.8) à cultura da superioridade da branquitude. Ou eles também chamariam seus colegas de “brancão” ou de “maisena” ou qualquer nomenclatura que desdenhasse a sua cor branca? “O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras” (BOURDIEU, 1989, p. 15). O que está em jogo é a negociação de poder com uso das palavras “preto” e “negrão”, podendo consolidar discriminação.

A professora utiliza o termo “mulato” em vez de “pardo” o que também é questionável, pois vem carregado de um preconceito simbólico, desconhecido ou ignorado. Embora Rodrigues (2015, online) levante o debate de que as palavras não deveriam ser “eternas reféns da etimologia” já que possuem “desdobramentos semânticos que muitas vezes conduzem seu sentido a territórios distantes – e às vezes até opostos – ao lugar de origem”, o autor não nega o valor racista da palavra. Rodrigues demonstra não levantar a bandeira antirracista, pois traz à tona a hipótese de que não vale a pena “condenar o vocábulo” por causa da escravidão. Ao meu entender, atitudes antirracistas incluem excluir o uso de palavras que tenham sua origem para depreciação dos sujeitos escravizados.

O português foi buscar diretamente no latim mulus, no século XV, a palavra “mulo”, ou seja, “animal híbrido, estéril, produto do cruzamento do cavalo com a jumenta, ou da égua com o jumento”. No século seguinte, por influência do espanhol, o termo “mulato” era usado para designar um mulo jovem, e foi certamente por analogia com o caráter mestiço do animal que a palavra passou – a partir de meados do século XVI, segundo o Houaiss – a ser aplicada também, como adjetivo e substantivo, a pessoas descendentes de brancos e negros. O tom depreciativo da associação original é indiscutível e facilmente explicável pelo racismo escancarado de uma época escravocrata. O que cabe discutir é se vale a pena condenar o vocábulo por causa disso. (RODRIGUES, 2015, online)

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2) Como você percebeu a participação dos alunos negros nas aulas de LI?

Bom, especificamente nós temos o Zumbi que ele não... é que ele desistiu das aulas, é um aluno que era mais velho. Tem o Milton que costumava chegar atrasado, tinha muita dificuldade de entender e de fazer as coisas, mas ele fazia, mas acabou trancando o ano. Os outros alunos cotistas passaram de ano muito bem. A gente tinha o Machado de Assis que tinha muita dificuldade em inglês, a gente tinha o Oliveira Silveira que não tinha dificuldade na disciplina, mas tinha um desinteresse assim de vir, o Caetano Veloso ótimo, mas eu não considero negro nem pardo. O Lázaro Ramos ótimo, mais interessado... Vai de personalidade, uns mais tímidos outros não.

Aqui há o reforço de mais uma opinião sobre Caetano Veloso não ser pardo nem negro, coincidindo com o que já verifiquei anteriormente. O depoimento da professora mostra que dois (Milton e Zumbi) dos seis estudantes já desistiram do curso, comprovando que há uma necessidade de um acompanhamento institucional para a permanência desses alunos.

3) Você considerou relevante as aulas elaboradas e desenvolvidas por meio da Competência Simbólica? De que forma? Como isso ajudou os alunos? Os alunos cotistas negros pareceram mais participativos?

Sim. Principalmente a que mais me marcou foi aquela aula do filme da professora que a gente viu né e as questões de discussão do texto, as questões de discussão do filme que eu vi que ali tinha chamado bastante a atenção deles... Sabe aquilo ali tinha marcado bastante eles tinham gostado os alunos todos, em geral, e ali que eu vi que a partir da discussão eles conseguem se interessar mais até pelo inglês. Eu

achei relevante. Foram participativos os que sempre foram participativos, por

exemplo, normalmente não participavam o Zumbi e o Milton não muito... mas estavam mais interessados na aula.

Quando a professora diz que “os alunos todos, em geral” gostaram, reforça a questão que coloco desde o início deste trabalho de que os estudantes brancos também podem se conscientizar das questões de raça e preconceito ao participarem de aulas que promovam atividades pedagógicas que desenvolvam sua Competência Simbólica. O fato de os estudantes que raramente ou nunca participam (Zumbi e Milton) se mostrarem, pelo menos, “mais interessados” já é um passo para seu desenvolvimento e empoderamento.

A professora considerou as aulas sob a perspectiva do desenvolvimento da Competência Simbólica relevante e essa sua análise é um dos subsídios que serve para confirmar minhas expectativas de que as aulas promoveram consciência crítica e engajamento

por parte dos estudantes. Os demais subsídios serão analisados e discutidos no decorrer deste trabalho.