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2.2 Escribí e he escrito: o PPS e o PPC nas línguas românicas

2.2.4 O PPS e o PPC no português e no espanhol

2.2.4.3 Percurso histórico do PPC no português

Similar às primeiras ocorrências da perífrase espanhola haber + particípio, no português arcaico, encontrava-se a construção ter + particípio na função de predicativo do objeto:

(46) Que vejão os Mouros se temos nós os cavallos comestos. (47) Se a divida he já pagada.

(48) Sustentaremos a honra que temos ganhada. (SAID ALI, 1964, p. 147-154)

Conforme já mencionado, a marca de concordância presente no particípio evidencia uma construção resultativa, não se tratando ainda de um tempo verbal composto. Analisando os verbos ter e haver em textos da segunda metade do século XIV45, Mattos e Silva (1989) verifica cinco ocorrências da construção haver + particípio, e trinta e quatro da construção ter + particípio. Em ambas as situações, o particípio apresentava sempre um traço transitivo, concordando em gênero e número com o complemento direto. Como se vê, no século XIV, ter e haver aparecem como variantes na estrutura frasal que indicava posse, predominando, já naquele período, o verbo ter – resultado também verificado numa amostra do século XV46. É a partir do século XV que se difunde o tempo verbal composto, ou seja, quando desaparece a

45

Quatro livros dos diálogos de São Gregório.

46 Lenda do Rei Rodrigo (1410-1420), Crônica de D. Pedro de Fernão Lopes (terceira década do século XV) e Imitação de Cristo (1468-1477).

concordância do particípio com o complemento direto (MATTOS E SILVA, 1995).

Analisando a estrutura ter/haver + particípio (com ou sem concordância) em textos não-literários do século XIII, Cardoso e Pereira (2003) constatam cinco ocorrências de tempo composto: duas construções sem concordância entre o particípio e o complemento direto (49 e 50) e três construções com particípios intransitivos (51-53):

(49) Se alguu d(e)mandar outro en iuyzo e o damandador lhy

teu(er) forçado algu~a cousa, ben se pod(e) deffender de

lly no~ responder.

(50) e depoys esto fez ome a maneyra de sa corte e como ((a si))

auya posto cabeça e começo, pose ao home a cabeça

encima do corpo e neella posse razo~. (51) E plus li a custado uosa aiuda.

(52) ou se o achar cu~ as molh(er) leua~doa p(er) força p(er)a iazer cu~ elha ou aia iazudo cu~ elha.

(53) se ouu(er) a molh(er) fillos doutro marido e casar cu~ alguu ome~, ((e)) qual quer delles ((ante que)) aya partido cu~ se(us) fillos se fez(er) algu~a gaança co~ a parte dos fillos, quer seya mouil quer reygamento, o padrasto ou a madrasta aya a meyadade das gaanças

Observa-se que, no século XIII, ter e haver eram variantes na construção de tempo composto.47 Com base em uma abordagem semântica, contudo, Cardoso e Pereira (2003) verificam a preferência pelo verbo ter nas construções resultativas:

(54) das armas e dout(ra)s dezimas q(eu) eu tenio apartadas em tesouros per meu reino.

47 Cardoso e Pereira (2003) questionam a oposição entre tempo composto e construção resultativa com base apenas em aspectos morfossintáticos (concordância do particípio, por exemplo), e analisam tal oposição a partir de uma abordagem semântica, com base em contrastes aspectuais e temporais (perfectividade/imperfectividade e simultaneidade/anterioridade).

A ocorrência em (54) chama a atenção das autoras para o fato de que o valor predominante do verbo ter ser o de duratividade. Ainda que a interpretação desse dado possa ser de um sujeito sintático que possui o objeto num estado particular, outros exemplos sugerem que o verbo ter pode denotar aspecto de duração sem obrigatoriamente implicar a interpretação de posse. No dado em (55), por exemplo, a interpretação mais apropriada seria: “X entregou a carta” e, como resultado, “a carta está entregue”, ao invés de “X possui a carta num estado particular” (CARDOSO; PEREIRA, 2003, p. 170).

(55) E se teendo a carta entrega morrer.

As autoras verificaram a preferência do verbo haver nas construções de tempos compostos (ver dados de 50 a 53), encontrando apenas duas ocorrências do verbo ter nessa construção com valor aspectual perfectivo. No que diz respeito ao perfeito composto, Cardoso e Pereira encontraram também ocorrências em que o auxiliar aparece no presente do indicativo, ou seja, essa forma verbal já estava presente em textos do português do século XIII (ver dado apresentado em 51).

O dado em (56) seria expresso no português atual pelo perfeito simples; no espanhol, todavia, seria possível tanto o emprego do perfeito simples quanto do composto. Essa observação sinaliza que, no século XIII, o perfeito composto português poderia ter o valor que tem hoje em outras línguas românicas. Barbosa (2008, p. 151) apresenta dados de Squartini (1998) que sustenta a possibilidade de a perífrase ter + particípio já ter expressado valor de Aoristo no português – o que acontece atualmente no espanhol com a perífrase haber + particípio.

(56) Estamdo em Bragaa Vaasco Lourenço... depois que perdo Neyua como teendes ouuido (Fernão Lopes, Crónica del Rei Dom Joham I, C. séc. XV)

Analisando diferentes gêneros textuais do português brasileiro (PB) do século XVI ao XX, e comparando o português europeu (PE) e o português brasileiro do século XX, Barbosa (2008) apresenta-nos conclusões significativas acerca do emprego das formas simples e composta do pretérito perfeito nessas variedades. Primeiramente, a autora constata a baixa rentabilidade do perfeito composto tanto no português europeu (PE) quanto no português brasileiro (PB) do século XX (10% e 5% de frequência, respectivamente). Quanto aos valores

aspectuais, as duas variedades também se aproximam, conforme ilustra a tabela abaixo:

Tabela 4 – Valores aspectuais do perfeito composto nas variedades do português (BARBOSA, 2008, p. 200) VARIEDADES DO PORTUGUÊS VALORES PE PB Iteração 57% 60% Duração 43% 40% Perfectivo - - Total 100% 100%

Pode-se verificar que, em ambas as variedades do português do século XX, o perfeito composto tende a expressar iteratividade, seguido de duratividade; e, diferente do que ocorre no espanhol, essa forma verbal não apresenta valor perfectivo. Lembrando que estou assumindo a Iteração e a Duração como subvariedades do Aspecto Anterior, e nomeando o Aspecto Perfectivo como Aoristo – definições cujo uso será justificado na seção 5.2.2 adiante.

A variável telicidade verbal também foi controlada nessa investigação, evidenciando que o perfeito composto no PE e no PB tende a aparecer com verbos atélicos, com 62% e 60% de frequência, respectivamente.48

Na análise diacrônica do pretérito perfeito no português brasileiro, Barbosa (2008, p. 217) constatou baixa frequência da forma composta no século XX em relação ao século XVI (declínio de 25% a 11% de ocorrência). Um fenômeno que merece destaque é a mudança em relação ao valor aspectual do perfeito composto no português brasileiro ao longo dos anos, ilustrado na tabela a seguir:

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No estudo sincrônico do pretérito perfeito nessas variedades, Barbosa controlou ainda as variáveis: grau de formalidade, tipos de verbos e presença ou ausência de adjunto adverbial, cujos resultados não serão discutidos nesta tese.

Tabela 5 – Valores aspectuais do perfeito composto no português brasileiro (BARBOSA, 2008, p. 220)

VALORES

SÉCULOS PERFECTIVO ITERATIVO DURATIVO TOTAL

XVI 51% 42% 7% 100%

XVII 33% 65% 2% 100%

XVIII 23% 68% 9% 100%

XIX 5% 67% 28% 100%

XX - 60% 40% 100%

Conforme evidencia a amostra de Barbosa (2008), o perfeito composto do PB, que atualmente expressa Aspecto Anterior (durativo e iterativo), já expressou do século XVI ao século XIX perfectividade, havendo um declínio desse uso ao longo dos séculos: de 51% de frequência no século XVI para 5% no século XIX. Em contrapartida, os valores iterativo e durativo apresentam um aumento de uso do século XVI ao século XX. Ainda que os resultados não apontem um aumento gradativo, o valor iterativo passa de uma frequência de 42% para 60% de uso, e o durativo, de 7% a 40%, mostrando que, desde o século XVII, o valor predominante do PPC parece ser o Iterativo. Seguem algumas ocorrências do uso perfectivo da forma composta apresentadas por Barbosa (2008, p. 221):

(57) Eu tenho mandado o Tome de Souza daquy desta capitania hum pilloto que he sobrinho de Pero de Campo. (58) Eu as que poderei a V. Exa minhas são de que tenho

chegado a esta Capital no dia 31 de outubro.

Segundo a autora, no português atual, a forma composta nessas ocorrências seriam substituídas pela forma simples:

(57‟) Eu mandei o Tome de Souza daquy desta capitania hum pilloto que he sobrinho de Pero de Campo.

(58‟) Eu as que poderei a V. Exa minhas são de que cheguei a esta Capital no dia 31 de outubro.

O que chama a atenção nessas ocorrências do português brasileiro, especialmente de pesquisadores do sistema verbal castelhano, é essa inversão de valores do PPC ao longo dos anos. Conforme já

discutido em seções anteriores, a expressão de Aspecto Aoristo (ou perfectividade, cf. definição que se assuma) representa a última etapa da gramaticalização do perfeito composto, conforme propõem Harris (1982) e Alarcos Llorach (1984). Os estudos mencionados nesta tese levam a crer que a língua espanhola vem seguindo essa direção, diferente do que parece ter ocorrido com o português brasileiro. Segundo os resultados de Barbosa (2008), podemos inferir que o valor aorístico fez parte da história do perfeito composto no PB, mais precisamente no período compreendido entre os séculos XVI e XIX.49 Pouco a pouco, entretanto, as noções de iteração e duração passam a ser mais frequentes, ou seja, o PPC passa de Aoristo para Anterior (de Perfectivo para Perfecto). Na seção a seguir, discorro sobre essa diferença na trajetória do PPC português e espanhol.

2.2.4.4 Breve comparativo do percurso histórico do PPC no