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2.2 Escribí e he escrito: o PPS e o PPC nas línguas românicas

2.2.2 Traços formais do PPC em línguas românicas

No que tange à estrutura do perfeito composto, Camus Bergareche (2008, p. 71) aponta como diferenças mais notáveis entre as línguas românicas os seguintes aspectos: i) a concorrência entre os auxiliares habere e esse, ii) a concordância no particípio e iii) o uso de tenere por habere. Veremos, nesta seção, de que forma esses traços se manifestam em diferentes línguas latinas.

2.2.2.1 Os auxiliares habere e esse

A respeito da primeira diferença, Camus Bergareche (2008, p. 71) observa que a perífrase original habere + particípio restringia-se a verbos estritamente transitivos, estendendo-se, posteriormente, a outros tipos de verbos. Ainda na Idade Média, porém, essa construção competia com a perífrase esse + particípio com verbos intransitivos. Algumas línguas românicas, como: galego, espanhol, português, catalão, romeno e alguns dialetos italianos meridionais completaram o processo

de generalização da construção com habere desde o final da Idade Média.18 No período medieval, entretanto, a presença do auxiliar esse é “numerosísimo en español y gallego-portugués y llegan incluso hasta bien entrado el siglo XVI” (CAMUS BERGARECHE, 2008, p. 72).

O auxiliar esse, nessas línguas, acompanhava verbos pronominais, inacusativos ou intransitivos (ir, venir, llegar, morir, correr, por exemplo): “Aun era de dia, non era puesto el sol”.19

Modernamente, todos os tipos de verbos acompanham o auxiliar haber (no espanhol) e ter no português: he llegado tarde e tenho chegado tarde, por exemplo. O catalão medieval assemelha-se ao espanhol e ao português, com uma generalização mais lenta do auxiliar habere evidente no fato de, atualmente, no balear – dialeto catalão falado nas Ilhas Baleares – poder se encontrar esse com verbos inacusativos de movimento com direção inerente: “Encara no és tornada?” (todavía no ha vuelto). No catalão atual, porém, generaliza-se o PPC com habere: “He arribat tard” (he llegado tarde), conforme Camus Bergareche (2008, p. 73). Acerca do romeno e dos dialetos do sul da Itália, documenta-se, no primeiro, apenas o PPC com habere, ressaltando que não existe registro extenso daquela língua antes do século XVI (Meyer-Lübke, 1906 apud CAMUS BERGARECHE, 2008, p. 73); estes últimos apresentam um uso exclusivo de habere também com verbos não-transitivos.

Camus Bergareche acrescenta que, diferentemente dessas línguas românicas periféricas mais conservadoras, as línguas românicas centrais mantêm em menor ou maior grau o PPC com esse com verbos não- transitivos. O italiano – língua mais conservadora nesse sentido – mantém o perfeito composto com o auxiliar esse com os verbos inacusativos que indicam estado, movimento ou mudança de estado (venire e morire, por exemplo), os verbos intransitivos ou usados intransitivamente (essere e correre, por exemplo), os verbos reflexivos ou pronominais (lavarsi e svegliarsi, por exemplo) e os verbos modais (potere e dovere, por exemplo) quando acompanhados de verbos como os anteriores. Dessa forma, o PPC com habere reserva-se estritamente a construções transitivas, exceto no caso de verbos reflexivos. O autor lembra, ainda, o fato de um grupo de verbos admitirem ambos os auxiliares, a depender de sua transitividade no contexto:

18 Na verdade, o que o autor quer dizer em relação ao português, especificamente, é o fato de não haver concorrência entre duas formas habere/esse na construção da perífrase, pois adiante Camus Bergareche (2008, p. 84) argumenta sobre o uso do auxiliar descendente de tenere nesse idioma.

19 Poema de Mio Cid (verso 416), representando o castelhano medieval do século XIII (CAMUS BERGARECHE, 2008, p. 72)

(10) “Siamo corsi a Roma” → uso do auxiliar essere, já que o verbo “correre” é empregado intransitivamente.

(11) “Ho corso la prova di 100 metri” → uso do auxiliar avere, já que o verbo “correre” é empregado transitivamente. (CAMUS BERGARECHE, 2008, p. 75)

Assemelham-se a esse modelo, em maior ou menor medida, o sardo e algumas línguas reto-românicas (faladas na Suíça e no nordeste da Itália).

Diferente do modelo italiano, na língua francesa, o uso de être (esse) como auxiliar do perfeito composto tem alcance mais limitado. Segundo Camus Bergareche (2008, p. 75), a língua atual vem estendendo o uso do auxiliar avoir (habere) nessa construção. Com base em gramáticas contemporâneas, o autor afirma que apenas os verbos inacusativos que indicam estado, mudança de estado e movimento (rester, mourir, partir, por exemplo), verbos pronominais e construções reflexivas devem conjugar-se com être (esse). Como no italiano, o uso transitivo ou intransitivo de determinados verbos pode determinar o emprego de uma das formas auxiliares, ainda que muitos gramáticos admitam a tendência de a língua francesa falada favorecer o auxiliar avoir (habere).

Conforme Camus Bergareche (2008, p. 77), a maioria das falas occitanas20, inclusive o occitano estándar, aproxima-se ao uso do francês no que diz respeito ao emprego de esse e habere com o perfeito composto.

2.2.2.2 A concordância do particípio

À medida que avança o processo de gramaticalização da construção latina habeo epistulam scriptam, e habere passa a desempenhar função de auxiliar nas línguas romances, a concordância em número e gênero entre particípio e complemento direto vai se perdendo. Segundo Camus Bergareche (2008, p. 79), a concordância desapareceu na maioria das línguas românicas, como o romeno, o espanhol, o galego e o português.

Novamente, as línguas românicas centrais (reto-românico, italiano, sardo, catalão, francês, occitano e dialetos italianos centro-

meridionais) apresentam traços mais conservadores em relação à concordância latina entre particípio e complemento direto.

Camus Bergareche (2008, p. 78-81) observa que as variedades reto-românicas são as que mais se aproximam do espanhol e do romeno: a concordância nunca ocorre com o auxiliar habere.21 No italiano, o particípio com habere só concorda com um clítico de terceira pessoa anteposto ao verbo “Avete visto Maria? No, non l‘abbiamo vista”, incluindo o partitivo ne “Ne ho mangiati tre piatti”. A essa regra, seguem os dialetos sardos e alguns dialetos do catalão atual – lembrando que este último já não apresenta o perfeito com esse. No valenciano, variedade do catalão, a concordância é mais frequente com os clíticos feminino singular e plural do que com o masculino plural. Em dialetos baleares, por outro lado, a concordância estende-se a contextos mais amplos, ocorrendo com outros clíticos “T‘he vista” (segunda pessoa Te he visto), com relativas “I sa que m‘has agafada, on és?‖ (Y la que me has cogido, ¿dónde está?) e com interrogativos com marca flexional, especialmente quando femininos singulares “Quines has agafades?” (¿Cuáles has cogido?). Nesta variedade, a concordância pode inclusive ocorrer entre particípio e sujeito se o verbo conjugado for inacusativo “N‘Antònia no ha vinguda” (Antonia no ha venido).

No francês, lembra Camus Bergareche (2008, p. 81), os contextos em que se deve ocorrer a concordância são menos restritos. O particípio deve concordar com o complemento direto sempre que este estiver anteposto ao verbo “Avez vous lu les livres que je vous ai prêtés?”. Embora esse seja o padrão normativo, o autor acrescenta que a língua francesa falada tende a não manifestar a concordância em diferentes contextos – o que aproxima esse idioma ao espanhol e ao romeno, mais do que ao italiano, ao sardo e ao catalão.

Similar ao francês normativo, o occitano apresenta a concordância quando o complemento direto antecede o verbo, mas também é possível encontrá-la com complementos pospostos “An pas tornadas trobar sas

amigas” (No han vuelto a encontrar a sus amigas). Na maioria dos

dialetos italianos centro-meridionais, parece ocorrer a mesma situação de concordância estendida, conforme Camus Bergareche (2008, p. 81, 82).

2.2.2.3 Tenere + particípio

A gramaticalização dos verbos habere e tenere não é observável apenas em sua função de verbo auxiliar, mas também na função de verbo pleno. Desde o fim da Idade Média, na indicação de posse, as línguas românicas da Península Ibérica e a maioria dos dialetos centro- meridionais da Itália substituíram a forma latina habere pelos derivados de tenere, cujo significado original era sostener (CAMUS BERGARECHE, 2008, p. 83).22Sob essa circunstância, os derivados de habere ficam disponíveis para o uso como verbo auxiliar. No entanto, também nessa função, habere passa a ser substituído outra vez por formas derivadas de tenere em algumas línguas românicas no decorrer do tempo. É o caso, por exemplo, das línguas galega e portuguesa.

O auxiliar ter, no português e no galego, desempenha a mesma função do auxiliar haber do espanhol, seguindo os mesmos traços formais: é a única forma que acompanha o particípio na construção do PPC, ou seja, combina-se com todos os tipos de verbos (transitivo e intransitivo), e apresenta a concordância com o sujeito e não com o com o complemento direto (CAMUS BERGARECHE, 2008, p. 83, 84):

(12) “Ultimamente tenho escrito muitas folhas” (português) (13) “Non se ten ainda inventado música mellor” (galego) Segundo Camus Bergareche, a substituição de habere por tenere inicia-se, nesses idiomas, no final da Idade Média, consolidando-se na época clássica. Sobre a existência moderna da forma derivada de habere no português, o autor menciona que “solo en portugués escrito, y de un modo estilísticamente muy marcado, con deliberada intención arcaizante o muy formal, se puede encontrar el perfecto con habere” (CAMUS BERGARECHE, 2008, p. 84).

Vale acrescentar que, na língua espanhola, também é possível encontrar a combinação tener + particípio. Ressalta-se, entretanto, o fato de se tratar de uma perífrase com a mesma função resultativa da construção latina habere + particípio.

(14) “Tengo entendido que no volverás”

22 Algumas abordagens diacrônicas discorrem sobre esse tema: Mattos e Silva (1981; 1999; 2002), Ribeiro (1996), entre outras.

(15) “Tengo hechos ya los deberes”23

Observa-se, neste último exemplo, o resquício latino da concordância entre o particípio e o complemento direto “hechos los deberes”. Num quadro final, Camus Bergareche (2008, p. 90) sintetiza as propriedades formais presentes no PPC nas línguas românicas: galego, português, espanhol, catalão, occitano, francês, reto-românico, sardo, italiano, italiano do sul e romeno, a partir do qual, interessa destacar que apenas as duas primeiras apresentam o traço tener + particípio.24