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2.2 Escribí e he escrito: o PPS e o PPC nas línguas românicas

2.2.3 Os valores do PPC em línguas românicas

Conforme mencionei em seções anteriores desta tese, no latim pré-clássico, a construção haber + particípio tinha valor puramente resultativo (SQUARTINI; BERTINETTO, 2000). Por consequência, nessa leitura estativa, o particípio desempenhava função predicativa ou adjetiva, fazendo parte do objeto direto de habere – verbo ainda não gramaticalizado naquele período, já que mantinha o significado original de posse. Camus Bergareche (2008, p. 92) acrescenta que essa construção latina restringia-se aos predicados télicos “Illa omnia missa habeo”, “Ibi castellum Caesar habuit constitutum”25 (realización e logro26, respectivamente). Na passagem para as línguas românicas, como vimos, habere + particípio passa a ser de uso menos restrito, estendendo-se a verbos atélicos – o que comprova a perda da função exclusivamente resultativa da construção original. A esse respeito, vale acrescentar a observação de Squartini e Bertinetto (2000, p. 407) sobre o fato de nenhuma língua românica contemporânea apresentar o perfeito composto com valor puramente resultativo.

23 Os exemplos são de Camus Bergareche (2008, p. 84), que acrescenta o fato de o judeu- espanhol, usado em Israel, empregar também o verbo derivado de tener como auxiliar do perfeito composto, mas não de outras formas compostas.

24 No espanhol de Yucatán – estado localizado no sudeste mexicano – os verbos estar e tener são ainda empregados como auxiliares no pretérito perfeito composto do indicativo, como ocorria no século XVI, por exemplo: “Tengo trabajado mucho” e “Está ido a cortar leña” (ANDIÓN HERRERO, 2004, p. 13).

25 “Tengo mandada todas aquellas cosas” (Plauto), “Allí tuvo César levantado el campeonato” (Cícero), cf. Camus Bergareche (2008, p. 92).

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O que Camus Bergareche chama de “realización” e “logro” corresponde, em teorias diversas, aos conceitos de: achievement e accomplishment (VENDLER, 1967; VERKUYL, 1993) e ato e acontecimento (COSTA, 1990).

Como se pode observar, a construção perifrástica latina, que, como qualquer forma inovadora, surge para desempenhar uma função linguística, passou por um processo de evolução não apenas de ordem sintática, como também semântico-pragmática. Tratando da evolução desta última, Harris (1982, p. 49) descreve os seguintes estágios do pretérito perfeito composto:

Estágio I: o perfeito composto restringe-se à expressão de estados

presentes resultantes de ações passadas sem descrever as ações por si mesmas, por mais recentes que sejam (PPC de resultado).

Estágio II: o perfeito composto ocorre somente em situações

bastante específicas, em contextos aspectualmente durativos ou repetitivos (PPC como operador aspectual).

Estágio III: valor prototípico do Present Perfect de ação passada

com relevância presente (PPC de relevância presente e PPC de notícias recentes – hot news).

Estágio IV: PPC com função de pretérito, ficando o PPS restrito

a registros formais.

Com base nesse quadro proposto por Harris (1982), Squartini e Bertinetto (2000) apresentam uma análise sobre o estágio em que se encontram as diferentes línguas românicas no que concerne ao uso dessa forma verbal. Em relação ao estágio I, algumas variedades do italiano meridional, como o siciliano e o calabrês, são apresentadas por Harris como exemplos típicos de um baixo grau de gramaticalização, em que o PPC indica estados atuais, conectados a situações passadas. O exemplo “aju jutu” (he ido) de Rohlfs (1986 apud Squartini; Bertinetto, 2000, p. 407), contudo, parece sinalizar uma leitura experiencial do PPC no calabrês (estágio II ou talvez III, cf. Squartini e Bertinetto). Embora a situação exemplificada por Rohlfs também seja possível em PPS (e normalmente o é), Squartini e Bertinetto querem evidenciar que, no calabrês e no siciliano, o PPC já avançou no processo de gramaticalização, corroborando que nenhuma língua românica exibe o valor puramente resultativo dessa forma verbal. Em direção a esse argumento, Skubic (1973 apud Squartini e Bertinetto, 2000, p. 414-415) aponta que o PPC siciliano não expressa passado recente ou relevância presente, senão situações durativas ou iterativas que contemplam o momento da fala – estágio II. Outra evidência que descarta a

interpretação estritamente resultativa do PPC nessas variedades é apontada por Camus Bergareche (2008, p. 93): em dialetos italianos meridionais, o perfeito composto pode constituir-se com predicados télicos e atélicos “L‖aju fattu” (lo he hecho) e “Non aju dormutu” (no he dormido); lembrando que a construção puramente resultativa é permitida apenas com vebos télicos.

O estágio II é representado, segundo Squartini e Bertinetto (2000, p. 408-410), pelo português, o galego e algumas variedades do espanhol americano, apresentando algumas exigências para o uso do PPC.27 Diversos estudiosos dos tempos verbais do português admitem a diferença do perfeito composto em relação a outras línguas românicas28, a começar pela construção ter + particípio, em vez de haver + particípio. Quanto a aspectos semânticos, a principal diferença do PPC português consiste na referência dessa forma verbal a situações durativas ou iterativas; referência que, em outras línguas românicas, é preciso recorrer a expressões auxiliares como “várias vezes”, “sempre”, “até aqui”, “desde algum tempo” a fim de que se matenha a mesma significação portuguesa, cf. Paiva Boléo (1936).29 Bastante similar ao português, encontra-se o uso do PPC na variedade mexicana, designando situações durativas e iterativas, respectivamente ilustradas a seguir:

(16) Desde entonces sólo he sido una carga para ti. (LOPE BLANCH, 1983 [1961], p. 135)

(17) …va a visitarlo al hospital donde ha ingresado más de una docena de veces en los últimos tiempos. (SPITZOVÁ; BAYEROVÁ, 1987, p. 45)

Em relação a outras variedades do espanhol, Squartini e Bertinetto (2000, p. 411-412), baseado em estudos sobre o perfeito composto na Colômbia, em Porto Rico, nas Ilhas Canárias e em Buenos Aires, apontam que, nessas regiões, o uso do PPC denota situações

27 É interessante observar que, a respeito da evolução de ordem estrutural, línguas românicas periféricas – como o português – encontram-se em estágio mais avançado na evolução, conforme discussão da seção 2.2.2. A respeito da evolução de ordem semântica, essas são línguas mais conservadoras, comparadas a línguas românicas centrais – o francês, por exemplo. 28 Barbosa (2003; 2008), Castilho (2003), Fiorin (1996), Paiva Boléo (1936), Silva (1998), Travaglia (1994b), por exemplo.

29 Trato dessa questão de forma mais detalhada na seção 2.2.4, apresentando uma comparação entre o português e o espanhol acerca do uso dos dois pretéritos.

iterativas e durativas, igualmente ao que acontece nas variedades mexicana e portuguesa. Na variedade canária também são registrados casos do PPC experiencial “Yo he ido a la escuela = he recibido enseñanza escolar”. Ressaltando que esse valor não é possível no português, resultando agramaticais sentenças como “João tem viajado à Europa” na leitura experiencial (ao menos uma vez, João experienciou uma viagem à Europa).30 Embora o galego e o português se aproximem funcionalmente quanto ao uso do PPC, naquela variedade o emprego dessa forma verbal é ainda mais reduzido, documentando-se apenas com verbos télicos e interpretação resultativa (como no latim), ou com predicados iterativos, mas não durativos (SQUARTINI; BERTINETTO, 2000, p. 410).

Finalizando as exemplificações das variedades românicas que se encontram no estágio II proposto por Harris (1982), Squartini e Bertinetto (2000, p. 413-414) citam a variedade siciliana, cujo uso do PPC não denota passado recente, tampouco relevância presente, senão situações durativas e iterativas. O dado em (18) representa este último valor do PPC, em oposição ao dado em (19), no qual o passado recente é expresso por PPS:

(18) Aju manciatu tanti voti u piscispata, e m‘ ha fattu sempri beni.

I-have eaten many times the sword-fish, and me: DAT it-has done always good I have eaten swordfish many times, and it has always done me well.

(19) M‘ u manciài oj e mi fici mali.

Me:DAT it:OBJ I-ate today and me: DAT it-did bad I ate swordfish today and it made me sick.

No que concerne ao estágio III na evolução do perfeito composto – um dos mais significativos, já que, a partir desse ponto, o PPC passa a cobrir situações puramente perfectivas –, Squartini e Bertinetto (2000) alegam que, na Espanha, o PPC parece estar avançado nesse processo de transformação, marcando a relevância presente em:31

 Contextos inclusivos, que contemplam o momento da fala: He vivido aquí toda mi vida.

 Notícias recentes (hot news): Ha llegado el Rey.

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Essa sentença torna-se gramatical, porém, na leitura iterativa em que João tem viajado repetidas vezes à Europa.

 Contextos experienciais: ¿Has estado en Australia?

 Contextos que indicam anterioridade a uma referência: No, todavía no ha llegado.

 Resultados persistentes de uma situação passada: No, ha muerto.

 Contextos com advérbios de tempo que expressam passado recente: Hoy me he despertado a las cuatro de la madrugada. É importante ressaltar que, em alguns desses contextos, co- ocorrem as formas PPS e PPC na variedade peninsular. A título de exemplificação, em contextos como “todavía no” e de passado recente expresso por advérbios do tipo “hoy” é possível o emprego de uma ou outra forma (SQUARTINI; BERTINETTO, 2000; OLIVEIRA, 2007).

Na discussão sobre o estágio III do pretérito perfeito composto, Squartini e Bertinetto (2000, p. 416) chamam a atenção para a direção aorística (aoristic drift) que essa forma verbal vem assumindo no espanhol europeu. No espanhol de Alicante, por exemplo, a diferença no uso do PPS e do PPC entre gerações mais jovens e mais velhas evidencia uma mudança em curso, já que os resultados da geração mais jovem apontam um maior percentual do PPC tanto em contexto hodierno como pré-hodierno. O catalão e o occitano parecem caminhar na mesma direção do espanhol europeu, apresentando, além do PPC tipicamente Anterior, uma extensão aorística dessa forma verbal. Camus Bergareche (2008, p. 96) lembra, contudo, que o catalão parece ajustar- se de forma mais sistemática à regra “das 24 horas”32, empregando o PPC em contextos estritamente hodiernos.

Finalmente, no estágio IV, encontram-se diversas línguas românicas em que o PPS “se convierte en una forma verbal caduca, hasta llegar a desaparecer del todo en algún caso por la competencia de las formas compuestas” (CAMUS BERGARECHE, 2008, p. 96). Nesse estágio, encontram-se: o italiano estándar, o francês, o romeno estándar, algumas variedades italianas setentrionais e as línguas reto- românicas, nas quais o PPC pode ser usado em qualquer contexto puramente perfectivo, sendo, em alguns casos, a única forma existente

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Na literatura sobre esse objeto de estudo, é comum estabelecer o uso do PPC como ante- presente num limite temporal de 24 horas (contexto hodierno). O contexto pré-hodierno constitui a ultrapassagem desse limite.

(SQUARTINI; BERTINETTO, 2000, p. 418). Segundo os autores, nas línguas de estágio IV – considerando a evolução do perfeito composto –, não está em jogo a noção de distância temporal no uso dessa forma verbal, diferente das de estágio III. Vale lembrar, todavia, o alerta que Squartini e Bertinetto apresentam para a necessidade de pesquisas mais detalhadas sobre as línguas que pertencem ao grupo IV, dadas conclusões a que chegam alguns estudos citados pelos autores, a saber: i) em muitos casos de vernáculos do norte da Itália, ocorre o total desaparecimento do perfeito simples, enquanto que em variedades locais estándares ainda é presente essa forma verbal; ii) no francês estándar, o PPS desapareceu da conversação coloquial, mas é relativamente frequente em jornais; iii) traduções de passagens narrativas são apresentadas em romeno apenas com o PPC, e, em francês e italiano, com o PPC e o PPS; e iv) surpreendentemente distinto de sua variedade estándar – bem como de qualquer outra variedade românica – aparecem dialetos da variedade romena, tais como os falado em Oltenia, nos quais, a distância temporal tem influência no uso do PPS e do PPC, no entanto, é a forma simples que denota eventos mais próximos do momento de fala, enquanto a forma composta remete a eventos mais distantes.33

Concluindo esta seção, vale apresentar o quadro que Camus Bergareche propõe para ilustrar os valores característicos do PPC em diferentes línguas românicas:

Perfecto inclusivo Perfecto experiencial Perfecto + passado hodierno Perfecto + aoristo Galego X Português X Espanhol da América X Espanhol Peninsular X Catalão X Occitano X Francês X Reto-românico X Sardo X Italiano X Calabrês X Siciliano X Romeno X

Quadro 2 – Valores aspectuais do PPC em algumas variedades românicas (Adaptada de CAMUS BERGARECHE, 2008, p. 98)

O quadro 2 leva-nos a concluir que apenas o francês, o reto- românico, o sardo, o italiano e o romeno completaram a gramaticalização do pretérito perfeito composto, chegando ao último estágio da evolução, no qual se prevê a função aorística dessa forma verbal. O galego, o português, o espanhol da América e o siciliano encontram-se em estágio coincidente – uso do PPC inclusivo –, sendo línguas mais conservadoras nesse sentido.34 O espanhol peninsular, por outro lado, difere-se do americano, uma vez que se encontra no terceiro estágio da evolução do PPC (passado hodierno). No decorrer desta tese, argumento que, na verdade, o PPC peninsular já caminha numa direção aorística.

O quadro proposto por Camus Bergareche desperta-nos o interesse em verificar a trajetória da mudança do PPC nas diferentes línguas românicas, o que vêm fazendo alguns pesquisadores. Na seção a seguir, faço um recorte desses estudos e concentro-me nos estágios da evolução do perfeito composto no português e no espanhol.