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3. CAMINHO METODOLÓGICO: COMO INVESTIGAR UMA REDAÇÃO

3.2. PERCURSOS METODOLÓGICOS DA ETNOGRAFIA EM OBJETOS

Destacamos, primeiramente, que o método científico é composto por um caminho para se chegar a determinado fim, ou seja, o conjunto de procedimentos intelectuais e técnicos adotados para atingir o conhecimento (GIL, 2010). Conforme vimos no primeiro tópico, para os antropólogos, fazer etnografia é uma atividade complexa que exige vocação de desenraizamento, preparação conceitual para entender o campo que será pesquisado e tempo prolongado durante a observação participante (URIARTE, 2012).

etnográfico a uma técnica, já que “é antes um modo de acercamento e apreensão do que um conjunto de procedimentos”. Por isso mesmo que a Antropologia não se define por um objeto determinado. Peirano (2014) complementa que a etnografia vai além do “detalhe metodológico”, pois aborda indagações e discussões com caráter teórico.

Nos dizeres de Lago (2007, p. 51), “a observação participante pode ser relacionada ao procedimento antropológico de ‘sair’ de sua cultura e vivenciar a cultura do grupo que estuda [...]. Funciona, portanto, em duas vias: despir-se de sua própria cultura e perceber a cultura do outro”. A autora cita Da Matta (1978) ao explanar que as pesquisas nas populações urbanas devem fazer um caminho inverso daquelas realizadas com os tradicionais, isto é, transformar o “familiar em exótico” em vez do “exótico em familiar”.

Buscamos apresentar essa compreensão para mencionar que, embora os estudos do jornalismo e da tribo jornalística (TRAQUINA, 2005) se apropriem do recurso antropológico, não necessariamente desenvolvem a metodologia em sua natureza “pura”. Lago (2007) acredita que a aplicação da etnografia no Jornalismo se apresenta de maneira quase mecânica, afastando o olhar disciplinado da Antropologia. Sendo assim, “o encontro entre Antropologia e Jornalismo pode ser marcado mais por suas ausências do que pelas presenças. A começar pela ausência reflexiva sobre o método antropológico por excelência, a observação participante, quando este em si é incorporado” (LAGO, 2007, p. 55).

Vieira e Máximo (2018) chegaram a conclusões semelhantes à Lago (2007). As autoras realizaram o levantamento dos artigos publicados nos anais do Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, de 2013 a 2017, com a procura de “etnografia” como palavra-chave ou título. Os dados revelaram a baixa representatividade das pesquisas em Jornalismo que se apropriaram do procedimento (nenhum trabalho em 2013 e menos de 1% nos demais anos), além da pouca diversidade teórico-metodológica.

Os resultados indicam uma instrumentalização que, apesar de evidenciar a adoção da etnografia na análise qualitativa, se apresenta isolada de suas dimensões epistemológica, conceitual e metodológica. Para Vieira e Máximo (2018, p. 15), isso demonstra “uma abordagem empiricista, cujo objetivo principal seria apenas o de aproximar o pesquisador da ‘realidade’ estudada, perdendo-se de vista o caráter interpretativo da etnografia e, principalmente, a natureza pessoal e subjetiva de toda experiência etnográfica”.

Em virtude disso, corroboramos com a noção de Bronosky e Schoenherr (2016) que a etnografia é aplicada como uma técnica de captação e análise de dados na pesquisa sobre o jornalismo, tratando-se de estratégia metodológica e não de suporte metodológico. Os autores defendem que “ainda não compartilhamos técnicas de registro ou de construção de cadernos de

anotação de campo tanto quanto a Antropologia. Mas certamente especificidades de nosso campo de investigação devem gerar táticas mais adequadas ou particulares” (BRONOSKY; SCHOENHERR, 2016, p. 10). Norberto e Woitovicz (2016) também contribuem com o debate acerca da etnografia como proposta complementar na abordagem metodológica de pesquisas que envolvem a produção noticiosa:

Em jornalismo, justamente por se tratar de um lugar em que há dissonâncias sobre sua posição: área, campo ou disciplina, e porque os estudos são recentes, seria congruente que as pesquisas levadas a efeito neste lugar se apoiassem em referências vindas de outras áreas das Ciências Sociais e Humanas, como a Sociologia, a História, a Linguística, a Antropologia, entre outras (NORBERTO; WOITOVICZ, 2016, p. 7).

Enquanto não temos um método específico, articulamos a investigação etnográfica a partir do nosso referencial teórico. Mesmo se tratando de lugares diferentes de produção do conhecimento, a troca auxilia principalmente para aproximar o discurso produzido na academia e na prática profissional ao buscar compreender o contexto, a rotina e o comportamento de determinado grupo (NORBERTO; WOITOVICZ, 2016). Então, a etnografia se torna instrumento de suporte ao pesquisador que pretende analisar empiricamente a complexidade que abarca o fazer jornalístico.

No estudo sobre a prática jornalística e o funcionamento das redações, Cottle (2007) elenca os pontos fortes demonstrados por meio da etnografia, que são: torna o invisível visível – registra a rotina de produção para uma consideração mais ampla, que vai além do material publicado e depoimentos de entrevistas; combate o “problema de inferência” – ajuda a revelar o complexo de forças, restrições e convenções que moldam os critérios de seleções das informações que vão ou não ser noticiadas; fortalece através da triangulação – a combinação entre observação, entrevistas e fontes documentais fornecem uma base mais consistente para interpretar descobertas, discrepâncias e diferenças; qualifica ou retifica teorias – fornece indicativos que podem ser úteis para uma gama de abordagens teóricas; recorda a produção

cultural – a pesquisa de campo nos lembra que os processos de produção cultural são

complexos, menos organizados do que os teóricos às vezes reconhecem; evidência a natureza

dinâmica – identifica como os produtores lidam com as mudanças (política, comercial,

tecnológica ou cultural) e quais consequências dessas decisões.

A respeito das questões culturais e deontológicas serem determinantes no cotidiano dos jornalistas, Mateus (2015) ressalta que a descrição e a observação participante podem extrair justamente essas ações, rotinas, atitudes e crenças que condicionam a particularidade da atividade profissional. Para o autor, os estudos etnográficos salientam que o campo jornalístico

é influenciado por fatores internos e externosque afastam a ideia de que as notícias são produtos escolhidos exclusivamente pelos jornalistas.

Diante disso, lembramos que a articulação entre Antropologia e Jornalismo surgiu no início do século XX, na Escola de Chicago, com os estudos que tratavam da importância da mídia nos modos de sociabilidade urbana (MENDES, 2013). Mas somente nos anos 1950 que nasceram as primeiras iniciativas que investigam a produção da notícia com procedimento empírico. Entre esses estudos, destaca-se o de Manning White, primeiro autor que traduziu a teoria do gatekeeping para o conteúdo jornalístico. Por meio da observação participante, White verificou que o editor de jornal de uma pequena cidade norte-americana – chamado de Mr. Gates – tem motivos altamente subjetivos para publicar ou rejeitar uma notícia (SHOEMAKER; VOS, 2011).

No entanto, Shoemaker e Vos (2011, p. 31) esclarecem que “White entendia o gatekeeping como um processo desempenhado por pessoas, não organizações. Para ele, as decisões eram influenciadas pelos valores e características do indivíduo e por restrições impostas pelas organizações, tais como o prazo final”. Essas dificuldades que a teoria do gatekeeping contemplavam (individualista, subjetiva e reducionista) motivaram a socióloga Tuchman (1983) a investigar o fazer jornalístico considerando as necessidades ocupacionais e organizacionais (MATEUS, 2015).

O livro Making News: a study in the construction of reality, de Tuchman (1983), se tornou uma das principais referências etnográficas sobre a prática jornalística. O trabalho da socióloga durou 10 anos (1966 a 1976) e abordou um canal de TV, três jornais impressos dos EUA e a redação da prefeitura de Nova York. Com base no procedimento teórico-metodológico, Tuchman (1983, p. 204, tradução nossa)55 indica o jornalismo como construção social da realidade, “pois os relatórios informativos ajudam a moldar a definição pública de eventos, atribuindo-lhes seletivamente detalhes específicos ou ‘particulares’. Eles tornam esses detalhes acessíveis aos novos consumidores”.

Em outro momento, mas ainda como resultado da pesquisa etnográfica, Tuchman (2016) aponta a noção de objetividade como um mero “ritual estratégico” utilizada para os jornalistas se protegerem de reclamações de críticos, superiores, possíveis processos judiciais e outras sanções, além dos aspectos operativos que giram em torno do tempo para finalizar as matérias. No entanto, “embora esses procedimentos possam fornecer provas demonstráveis de uma

55 Tradução livre do original: “[...] puesto que los reportajes informativos ayudan a dar forma a la definición

pública de los acontecimientos atribuyéndoles, de manera selectiva, detalles específicos o ‘particulares’. Hacen accesibles a los consumidores de noticias estos detalles” (TUCHMAN, 1983, p. 204).

tentativa de atingir a objetividade, não se pode dizer que a consigam alcançar [...]. Em suma, existe uma clara discrepância entre os objetivos procurados e os alcançados” (TUCHMAN, 2016, p. 89).

No Brasil, ressaltamos os percursos metodológicos conduzidos por Travancas (1993) e Vizeu (2005b) que, por meio de instrumentos etnográficos, têm aproximado a reflexão do funcionamento do jornalismo em redações tradicionais. Travancas (1993) busca compreender como se constrói a identidade do jornalista e em que ela está ancorada. A pesquisa foi realizada na década de 1990, no Rio de Janeiro, com entrevistas destinadas a cerca de 50 jornalistas, empregados em diferentes tipos de empresas de comunicação. Além da observação na redação, ela acompanhou três profissionais durante um dia.O estudo de Vizeu (2005b, p. 6) parte do seguinte questionamento: “Como as rotinas de produção influenciam os editores de texto (jornalistas) no momento de decidir se uma notícia deve ou não entrar em um telejornal e, consequentemente, definir o que as pessoas vão assistir?”. Para isso, o autor investigou a redação do RJTV– 1ª Edição, telejornal local da Rede Globo no Rio de Janeiro, verificando que as rotinas de produção dos editores de texto contribuem para definir o que é notícia.

Porém, também lembramos que a pesquisa etnográfica pode evidenciar quatro fraquezas em sua execução, segundo Cottle (2007). Na primeira análise, o autor pondera que a ingenuidade teórica leva aos estudos com o foco metodológico apenas nas práticas visíveis das organizações jornalísticas, desconsiderando que as influências externas – comércio, mercado ou campo dos discursos culturais – impactam nas complexidades da produção e das práticas profissionais. Na avaliação seguinte, considerada a mais prejudicial, ele aponta a dificuldade de enxergar de que forma as pressões gerenciais são exercidas sobre os jornalistas.

Embora seja certamente o caso que os etnógrafos raramente conseguem ter acesso à tomada de decisão corporativa sênior “a portas fechadas” e a influência gerencial pode, em qualquer caso, tornar-se institucionalizada na cultura organizacional ou “maneira de fazer as coisas”, essas formas de pressão e restrições não precisam necessariamente escapar da rede do observador participante. Vários estudos saíram da redação e deliberadamente procuraram avaliar o impacto informativo e o controle exercido mais alto na linha de comando corporativa (COTTLE, 2007, p. 7, tradução nossa)56.

O terceiro ponto no qual Cottle (2007) discorre refere-se às questões epistemológicas

56 Tradução livre do original: “While it is certainly the case that ethnographers rarely manage to gain access to

senior corporate decision-making ‘behind closed doors’ and managerial influence may in any case become institutionalised in the organisational culture or ‘way of doing things’ these forms of pressure and constraint need not necessarily escape the participant observer’s net. A number of studies have stepped outside of the newsroom and deliberately sought to gauge the informing impact and control exercised from higher up the corporate line of command” (COTTLE, 2007, p. 7).

sobre o caminho percorrido para “saber” algo e aos problemas ontológicos a respeito da natureza da “realidade”. Dependendo da posição do teórico (positivista, realista crítica ou interpretativista)57, “a postura adotada na prática etnográfica altera, assim como a visão da produção jornalística como um processo de produção de notícias que constrói socialmente as notícias ou é capaz de proporcionar uma representação fiel de uma realidade independente e cognoscível” (COTTLE, 2007, p. 8, tradução nossa)58.

Por fim, o autor explora acerca das mudanças no processo de produção e difusão de notícias geradas pelas tecnologias digitais, que acarretam novos desafios e desvios no campo da pesquisa. De acordo com ele, as chamadas etnografias “multissite” (simultâneas e sucessivas) são difíceis de conduzir e, consequentemente, relativamente incomuns. No último tópico, Cottle (2007) nos faz recordar das dificuldades metodológicas apresentadas por alguns autores brasileiros, como Träsel (2014), Barsotti (2017), Foletto (2017), Vieira (2018) e Antunes (2017a), visto que as tensões que emergem no jornalismo praticado no meio online não estão descritas nas rotinas produtivas tradicionais.

As problemáticas apresentadas por Cottle (2007) refletem as transformações sociais, econômicas e tecnológicas que transformaram, a partir dos anos 1990, o pensamento do jornalismo enquanto atividade e campo de estudo. O acompanhamento do público com auxílio do web analytics, a rapidez das informações, o engajamento nas redes sociais da internet e o uso dos dispositivos móveis são algumas mudanças que provocaram adaptações nos trabalhos com inspiração etnográfica.

Portanto, conforme observamos, “para os antropólogos a etnografia é considerada mais do que uma metodologia de pesquisa ou uma técnica de coleta de dados, mas sim um eixo fundador de disciplina” (REBS, 2011, p. 78). Por outro lado, a etnografia parece se adaptar aos estudos oriundos do campo jornalístico, mostrando que a disciplina não possui padrões rígidos ou predeterminados, que podem ser alterados conforme as necessidades do pesquisador.

57 Cottle (2007) classifica o pesquisador como interpretativista quando este adota a voz em primeira pessoa em

seus relatos escritos, é introspectivo e intersubjetivamente envolvido com os sujeitos do estudo; positivista se prefere ao teórico que escreve na terceira voz pessoal, é discreto e proclama uma postura de desapego científico; e realista pela posição intermediária que, invariavelmente, reflete esses compromissos epistemológicos subjacentes.

58 Tradução livre do original: “The stance adopted in ethnographic practice alters, as does the view of news

production as a processes of news manufacture which socially constructs news or is capable of providing a faithful representation of an independent and knowable reality” (COTTLE, 2007, p. 8).