• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 PERFORMATIVIDADE E IDENTIDADE

3.3 Performatividade

Vivemos a época dos efeitos especiais e da performance pura, da exasperação e da amplificação vazias.

Gilles Lipovetsky

A ideia de performance vem do teatro, é um termo ligado ao espetáculo e vem sendo usado para discutir o desempenho escolar. Apesar de atravessar diversos campos da atividade humana e ter noções diversas, a performatividade estará sempre, neste trabalho, relacionada ao desempenho da escola e, por extensão, ao desempenho dos educadores, mas sem perder a conexão com a ideia de espetáculo, do representar e do apresentar-se. Trata-se de uma ideia de performatividade que não se coaduna e não é um sinônimo exato de desempenho, ou seja, uma boa performance não significa necessariamente um resultado satisfatório para os diversos sujeitos envolvidos na atividade educativa – antes tem a ver com o bom uso das máscaras, do show explícito aos olhares dos espectadores que possuem determinadas expectativas (FIG. 1, p. 102). Assim, performatividade tem algo de ilusório, de mágico, de distração, de ―faz de conta‖ teatral. Por outro lado, é um mecanismo de controle bastante apropriado para uma situação que não se quer aprofundar em avaliações reflexivas. A vida real passa por ser séria, se cada um faz bem seu papel no grande espetáculo da existência em todas as suas dimensões. Como disse Rihard Schechner (2010, p. 25), em relação ao paradoxo do teatro: ―O que acontece em cena está realmente acontecendo ainda que não esteja de fato acontecendo. O que acontece é a encenação do acontecimento, não o acontecimento em si mesmo.‖ A escola pode ter se tornado isso: uma espécie de teatro onde as coisas acontecem como encenação real. O dito ―os professores fingem que ensinam e os alunos fingem que aprendem‖ deve ser considerado. Mas, ao contrário do teatro, onde pode realizar-se a catarse5, aqui se instala o purgatório, sem tempo certo para acabar. Uma tensão em que os atores se descaracterizam no espaço destinado ao aprendizado mútuo, são intimados a atuarem de maneira

5

Sob a ótica da psicologia, catarse é o experimentar da liberdade em relação a alguma situação opressora, tanto as psicológicas quanto as quotidianas, através de uma resolução que se apresente de forma eficaz o suficiente para que isso ocorra.

destoante com seus princípios, por uma pressão que não vem da comunidade escolar, mas por uma flama de organismos exteriores e acima deles.

Erving Goffman (1975) traz esclarecimentos importantes a esse respeito, quando mostra que as interações sociais são verbais e gestuais. Estamos numa situação de constante representação, ―[...] de forma mais ou menos intencional conforme a situação e a consciência que temos de nossos objetivos na vida cotidiana‖ (ICLE, 2010, p. 13). De acordo com Ball (2010, p. 39), ―[...] nós nos criamos na medida da informação que construímos e transmitimos sobre nós mesmos.‖ Então nós nos articulamos dentro de espaços em que outros atores participam de jogos representacionais e estamos competindo com a performance dos demais atores. A performatividade está presente nas nossas relações sociais. A questão fundamental agora é que nos encontramos em uma situação em que o mais importante é o outro saber o que você fez, do que aquilo que você realmente fez.

. É muito mais significativo para a pessoa dizer que conheceu o museu do Louvre do que realmente ter conhecido o museu do Louvre. A autoimagem projetada conta mais do que a experiência e as habilidades adquiridas. No entanto, esta não seria a questão já há muito compreendida pela grande maioria. A questão é quando a performatividade passa, ela mesma, a se constituir na razão de ser. A performance de cada um e de todos passa a ser a realização e não apenas uma representação, é um modo de vida. A retórica se sobrepõe à realidade. Aqui é possível entender o entrelaçamento entre performatividade e identidade. Identidade líquida como diria Zygmunt Bauman (2006), ou deteriorada, como escreveu Erving Goffman (1988). Em relação à escola, talvez, ―a relação mais basilar seja aquela que estudaria a sala de aula como um espetáculo no qual o professor seria o performer, e os alunos a platéia‖ (ICLE, 2010, p. 15). Mas, para além da metáfora teatral na sala de aula, a performatividade pode ser usada para analisar a relação entre pessoas, identidades, políticas públicas, gestão escolar, entre outras.

Para BALL (2010), a performatividade aplicada à educação envolve três aspectos: é uma tecnologia, uma cultura e um modo de regulação.

É uma tecnologia no sentido de que é processo de formas de controle em que se produzem rituais e rotinas. Os rituais servem para naturalizar os discursos de

controle, como os pronunciamentos grandiloquentes e eventos espetaculares. As rotinas são os registros, painéis, apontamentos, atas e todas as formas de relatórios, portanto, são dispositivos que permitem a ―encenação‖ da performance. É uma cultura na medida em que ―re-forma‖ sentidos e identidades ao tratar as pessoas pelo registro da performatividade, como ―construção cultural‖, como um modus vivendi que se naturaliza e permite ―[...] a instilação do orgulho, a identificação e ‗um amor ao produto ou uma crença na qualidade dos serviços‘ prestados‖ (Willnott, apud Ball, 2010, p.40). É um modo de regulação porque o poder opera, não mais pelo panóptico, mas pela instabilidade e incerteza quanto a estarmos produzindo o suficiente, de forma correta e satisfatória. Um deslocamento das ―sociedades disciplinares‖ para ―as sociedades de controle‖ (Deleuze, apud Ball, 2010, p. 39). A performatividade é uma das mais importantes estratégias na implementação das mudanças em curso desde a década de 1990, sendo também elemento intrínseco do sistema democrático da gestão escolar, quando o provimento do diretor se dá por eleição. Os governos, particularmente nas esferas da administração estadual e municipal, evidenciam nas novas formas de regulamentação um interesse especial na performatividade (ou desempenho) do sistema de ensino público, traçando de forma reiterada as linhas gerais para o seu gerenciamento (BALL, 2004). Assim, o diretor escolar torna-se um dos atores mais importantes nessas novas configurações institucionais e sua identidade, um dos pontos-chave para a performatividade.

O conceito de performatividade como usado por Ball (2004) se insere na discussão mais ampla que ele denomina como ―acordo político do Pós-Estado da Providência‖, em que o Estado como provedor passa para o Estado como regulador ou Estado avaliador.

Segundo Almerindo Afonso (2000), foi na Inglaterra e nos Estados Unidos, a partir da década de 1980, que os governos neoconservadores e neoliberais mostraram interesse pela avaliação que veio a adotar

[...] um ethos competitivo, neodarwinista, passando a admitir a lógica do mercado, através da importação para o domínio público de modelos de gestão privada, com ênfase nos resultados ou produtos dos sistemas educativos [...] esta ideologia da privatização, ao enaltecer o capitalismo de livre-mercado, conduziu

a alterações e mudanças fundamentais no papel do Estado, tanto ao nível local, como ao nível nacional. Neste sentido, por exemplo, diminuir as despesas públicas exigiu não só a adoção de uma cultura gestionária (ou gerencialista) no setor público, como induzia a criação de mecanismos de controlo e responsabilização mais sofisticados (p. 49).

A performatividade seria aquele ethos do mercado trazido para a administração pública, em que as qualidades que maximizam as condições do mercado seriam implantadas nos serviços públicos coordenados pelo Estado, ou seja,

[...] no que tange às instituições do setor público, rumo a um quadro de novas possibilidades éticas, de novos papéis e relações de trabalho – uma nova economia moral. A instauração de uma nova cultura de performatividade competitiva que envolve uma combinação de descentralização, alvos e incentivos para produzir novos perfis institucionais. (BALL, 2004: 107).

Esses processos são inspirados em teorias econômicas e em práticas industriais que vinculam a organização e o desempenho das escolas a seus ambientes institucionais ―por meio de um sistema de recompensas e sansões baseado na competição e na performatividade‖ (BALL, 2004: 107). Essas mudanças, segundo Ball, ocorrem com contradições, mudanças grandes e pequenas, numerosas e díspares. ―As contradições permanecem em cada um dos campos de atividade e existe uma fragilidade nos novos papéis, nas identidades e nas relações que estão sendo criadas‖. (BALL, 2004: 107).

Para Ball, as políticas educacionais já não podem ser vistas só do ponto de vista do Estado-Nação, elas são cada vez mais um assunto de comércio internacional no qual a educação é vista como uma oportunidade de negócio. O autor nos mostra que essa é uma tendência cada vez mais forte – o Estado não deixa de ser menos ativo e menos intruso, mas age de modo diferente6. Essa linha de raciocínio nos ajuda a entender as mudanças ocorridas na década de 1990 nas políticas nacionais

6 Ball usa o te o glo alização , pa a dize ue estas te dê ias glo ais ão pode se e o t adas e todos

os luga es da es a fo a e o os es os efeitos, as te dê ias tê it os dife e tes e luga es dife e tes . Reportando-se a Giddens, considera que essas tendências invadem os contextos locais, mas não os destroem.

de educação com sua ênfase na descentralização, nos índices de desempenho e nas avaliações.

Seguindo as considerações de Stephen Ball (2004), para quem a performatividade permite que o monitoramento do Estado seja feito à distância, um ―governando sem governar‖, novas identidades e significados vão sendo criados para o alinhamento no modo de fazer do setor público com a lógica do mercado. No âmbito da educação, o ensino é considerado cada vez mais por meio do discurso da responsabilização (accountability), que vem trazer às novas práticas um sentido de inevitabilidade, ―mais particularmente quando os incentivos estão vinculados às medidas de desempenho‖. O sistema de ensino passa a parecer-se mais com um grande processo de produção (uma fábrica) que deve cumprir metas, inspecionando-se a qualidade, como é feito pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – IDEB7. As novas identidades e significados moldados pela

performatividade na gestão pública trazem uma nova configuração também na ética profissional,

De fato, a reflexão ética torna-se obsoleta num processo de cumprimento de metas, melhoria do desempenho e maximização do orçamento. Valor (financeiro) substitui valores (morais), salvo quando comprovado que esses valores agregam valor. Mais (sic) geralmente, a performatividade funciona para empurrar as instituições do setor público à maior convergência com o setor privado. (BALL, 2004: 1117)

Como se encontra a identidade do diretor de escolas na cultura da performatividade? Como sua identidade se configura, atingida por tais tendências de qualidade e excelência, de marketing e de concorrência?