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4 EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL E O PROGRAMA ESCOLA NOVA NA

5.3 Perspectiva Crítica do Currículo

A perspectiva Crítica de Currículo emerge a partir da década de 1970 através de dois movimentos, são eles: o Movimento de Reconceptualização e o Movimento da Nova Sociologia da Educação. A perspectiva Crítica de Currículo contrapõe-se àquela Tradicional

ao questionar os arranjos sociais que interferem nos processos educativos igualitários “desconfiam do status quo, responsabilizando-o pelas desigualdades e injustiças sociais” (SILVA, 2010, p. 30). Na perspectiva crítica é enfatizado o desenvolvimento de um currículo que revele a função emancipatória da escola na formação escolarizada de cidadãos críticos.

O Movimento de Reconceptualização surge nos anos finais da década de 1960 através de escritos de autores como James Mcdonald e Dwayne Huebner. Este Movimento ganha corpo com a realização da I Conferência sobre Currículo, na universidade de Rochester em Nova York, em 1973, sob a liderança de Willian Pinar. O Movimento de Reconceptualização baseado nas teorias sociais da Fenomenologia, na Hermenêutica e na Teoria Crítica da Escola de Frankfurt questionava a concepção de currículo como uma atividade meramente técnica e administrativa, advogada pelas Teorias Tradicionais (SILVA, 2010).

A crítica realizada pelo Movimento de Reconceptualização partiu de duas perspectivas. Na primeira perspectiva eram utilizados conceitos do Marxismo via as análises de Gramsci e da Escola de Frankfurt, o foco das análises estava na função que as estruturas econômicas e políticas exerciam sobre a reprodução cultural por meio da educação e do currículo. A segunda perspectiva fazia uso da Fenomenologia e da Hermenêutica através de estratégias interpretativas de investigação.

Apesar de o Movimento de Reconceptualização incluir tanto as vertentes fenomenológicas quanto as de viés marxistas desafiava o modelo de Educação Técnica e, por conseguinte, os currículos. No entanto, os marxistas não se identificavam com as vertentes fenomenológicas. Esta não identificação provocou uma separação dentro do próprio Movimento. As críticas dos marxistas versavam sobre a ênfase dada pelos fenomenológicos à subjetividade, sendo acusados de deixar de lado as questões políticas. Diante desta separação trataremos das duas vertentes separadamente, inicialmente abordaremos a Fenomenológica e Hermenêutica e posteriormente trataremos da Marxista.

No tocante à Fenomenologia, esta põe em questão o senso comum e focaliza na valorização das experiências vividas, ressaltando os significados construídos subjetiva e intersubjetivamente; o foco está no sujeito. A perspectiva de currículo defendida pela Fenomenologia é tida como a mais radical, visto que rompe fundamentalmente com a Perspectiva Tradicional. Cabe destacar que a análise fenomenológica de currículo não reconhece a estruturação tradicional do currículo por meio de disciplinas, tendo em vista que o foco do currículo para os fenomenólogos está nas experiências diretas vivenciadas no mundo de primeira ordem. Já o Currículo Tradicional estrutura-se no mundo de segunda ordem, ou seja, via disciplinas tradicionais constituídas de conceitos científicos. Na

Fenomenologia, “o currículo é visto como experiência e como local de interrogação e questionamento da experiência” (SILVA, 2010, p. 40-41).

Nessa direção, entendemos que a Fenomenologia traz uma contribuição importante no questionamento da Teoria Educacional Tradicional e Curricular, visto que as experiências dos aprendentes entram em cena não para se adequar ao modelo de sociedade vigente, e sim para que possam desconstruir e reconstruir conceitos através de novos significados e de uma forma singular. Assim, de acordo com Silva,

é precisamente o caráter situacional, singular, único, concreto da experiência vivida – o aqui e o agora que a análise fenomenológica procura destacar. A análise fenomenológica foge dos universais e abstratos do conhecimento científico, conceitual para se focalizar no concreto e no histórico do mundo vivido (2010, p. 42).

Desse modo, a análise fenomenológica do currículo compreende que as experiências vividas não podem estar dissociadas do mundo vivido e distancia-se do conhecimento universal e abstrato dos modelos teóricos tradicionais de educação e de currículo.

Ressaltamos que a análise fenomenológica sobre currículo tem combinado duas outras estratégias de investigação em suas análises, a hermenêutica e a autobiografia. Referente à hermenêutica, esta enfatiza a possibilidade de múltiplas interpretações dos textos. Concernente à autobiografia, o foco está nos aspectos formativos do currículo, busca apoio na psicanálise no intuito de investigar as formas pelas quais a subjetividade e as identidades dos sujeitos constituem-se. Em síntese, a Perspectiva Fenomenológica prima pela compreensão e interpretação da subjetividade nas experiências vividas.

A partir deste momento versaremos sobre a vertente marxista que constituiu o Movimento de Reconceptualização. Segundo Silva (2010), a crítica marxista sobre currículo inicia-se com Michael Apple ao questionar o currículo e o conhecimento escolar.

As teorizações empreendidas por Apple partiram de elementos fundantes da crítica marxista à sociedade, tais como a dinâmica capitalista da dominação de classes dos que detêm o controle da propriedade e dos recursos materiais sobre os que só possuem a força de trabalho. Esta dinâmica capitalista afeta diretamente todas as outras esferas da sociedade como é o caso da educação e da cultura; haveria, assim, uma relação entre como a economia está organizada e a maneira como o currículo está organizado. No entanto, para Apple esta relação não é uma ligação de determinação simples e direta na medida em que esse vínculo é mediado pela ação humana.

Segundo Apple, a seleção e validação de conhecimento não é algo neutro, pois envolvem relações de poder que representam os interesses das classes dominantes. Portanto, “a questão não é saber qual conhecimento é verdadeiro, mas qual conhecimento é considerado verdadeiro” (SILVA, 2010, p. 46). Deste modo, ao enfatizar estas questões, Apple contribui significativamente para politizar a teorização sobre currículo.

Destacamos que a Perspectiva Crítica de Currículo não considerava os aspectos relacionados às desigualdades de gênero, de raça, de território e de sexualidade. O foco estava em denunciar como o currículo reproduzia as desigualdades entre as classes; a análise restringia-se à economia como ponto chave da reprodução das relações desiguais na sociedade capitalista.

Outro teórico da Perspectiva Crítica é Henry Giroux que tem suas bases epistemológicas fincadas na Escola de Frankfurt. Este teórico se contrapõe à Perspectiva Teórica Tradicional, principalmente, por seu caráter tecnicista; também questiona as teorias críticas pautadas em modelos interpretativos de teorização social, como é o caso da fenomenologia. Giroux traz como contribuição o conceito de resistência ao apontar que diante da dominação e do controle social e mais especificamente na educação e no currículo há espaços para contestações e resistências. Desse modo, Giroux advoga o potencial de resistência dos sujeitos, estudantes e professores para a construção de um currículo e de uma pedagogia libertos da dominação exercida pelas classes dominantes.

Giroux assinala três conceitos centrais para que essa emancipação ocorra, são eles: a esfera pública, o intelectual transformador e a voz. Em relação ao primeiro, a escola e o currículo devem funcionar de forma democrática na qual os estudantes possam exercer atitudes democráticas de discussão, de participação e de questionamentos dos pressupostos do senso comum da vida social. Referente ao segundo, os professores não são vistos como meros funcionários, mas como pessoas participantes ativas nas atividades críticas na busca por emancipação e libertação. A respeito do terceiro conceito - voz -, ele se refere à criação de espaços em que os estudantes possam expressar seus anseios e pensamentos e que estes sejam considerados (SILVA, 2010).

Ressaltamos que Giroux é influenciado por Paulo Freire no tocante à educação libertadora e na concepção de ação cultural deste autor. Giroux desenvolveu as bases de um currículo e de uma pedagogia que indicavam possibilidades que estavam ausentes nas teorias críticas. Neste viés, o currículo assume a noção de “política cultural”, sendo o lugar de produção e de criação de significados que estão permeados por relações sociais de poder em constante tensão.

As teorizações de Freire não tratam especificamente de uma teoria curricular, mas abordam a necessidade de questionar o que ensinar e o que significa conhecer, revelando a sua preocupação epistemológica. Freire faz críticas ao Currículo Tradicional por não estar conectado às questões existenciais dos sujeitos no ato de conhecer. Dessa maneira, Freire propõe uma Educação Libertadora como alternativa ao modelo de educação que nomeou de Bancária. Os estudos de Freire contribuem para pensar a construção de um Currículo Contra- hegemônico, na medida em que enfatizaram a função emancipadora da escola para a formação dos sujeitos.

Outra contribuição para a Perspectiva Crítica de Currículo foram os estudos desenvolvidos na Inglaterra através da Nova Sociologia da Educação que teve como marco inicial a publicação do livro intitulado “Conhecimento e Controle” (Knowledge and control) organizado pelo sociólogo Michael Young, em 1971 (SILVA, 2000).

A Nova Sociologia da Educação surge em contraposição à antiga sociologia, que possuía uma tradição de pesquisa empírica a respeito dos resultados desiguais produzidos pelo sistema educacional. A sua principal preocupação era com o fracasso escolar dos estudantes da classe operária. As críticas direcionadas à antiga sociologia enfatizavam o caráter empírico estatístico.

De acordo com os estudos de Young, a tarefa urgente a ser desenvolvida pela Nova Sociologia da Educação seria a de delinear uma sociologia do currículo. Para Young, a função de uma sociologia do currículo é colocar em cheque as categorias curriculares, pedagógicas e avaliativas tidas pela antiga sociologia como dadas e naturais (SILVA, 2000).

Em síntese, a Nova Sociologia da Educação procurava investigar as articulações entre os princípios de seleção e organização do conhecimento escolar, bem como aqueles de distribuição dos recursos econômicos. Logo, a questão fundante eram as interlocuções entre currículo e poder, entre a organização do conhecimento e a distribuição do poder (SILVA, 2000).

Além das teorizações desenvolvidas por Young, Basil Bernstein também fazia parte do Movimento da Nova Sociologia. Para Bernstein, o conhecimento educacional formal é efetivado por meio de três sistemas, a saber: o currículo (define qual é o conhecimento válido); a pedagogia (determina qual a transmissão válida para o conhecimento) e a avaliação (assinala qual a realização válida desse conhecimento por parte de quem é ensinado). Bernstein estava preocupado com as relações estruturais entre os distintos tipos de conhecimento e de como o currículo estava organizado, diferentemente de outros teóricos críticos, a exemplo de Young que se preocupou com o conteúdo (SILVA, 2000).

A Teoria Crítica de Currículo contribui significativamente para desvelar as relações de poder situadas nos campos da economia e da política que conformam os currículos, não tratam das demandas específicas dos grupos sociais subalternizados que trazem as questões de diferença, cultura, identidade, gênero e étnico-racial.

Nesse sentido, as lutas de mulheres nestas teorizações críticas do currículo não tiveram grande ênfase, uma vez que o foco ainda permanecia sobre as desigualdades geradas pelo fator econômico, não se detendo especificamente na articulação das desigualdades produzidas por meio das hierarquizações referentes à raça, à etnia, ao gênero, ao território e à sexualidade.

Em relação à Perspectiva Crítica, identificamos as seguintes concepções: sociedade urbana-industrial-capitalista; conhecimento interessado/ativo/dialético; educação emancipadora-transformadora; sujeito ativo/transformador. A concepção de sociedade encontrada na perspectiva teórica crítica de currículo é urbana/industrial/capitalista, contudo ela não é dada como um processo natural de desenvolvimento da sociedade, visto que é reprodutora das desigualdades sociais, tais como de classe, de gênero e de raça (SILVA, 2010). A perspectiva crítica denuncia as relações de poder desiguais presentes na sociedade urbana/industrial/capitalista. Sendo assim, a concepção de conhecimento vai de encontro à perspectiva tradicional de currículo; para a perspectiva crítica, o conhecimento é interessado, ativo e dialético, pois reproduz interesses das classes dominantes. A educação é compreendida como meio de superação das desigualdades, portanto é uma via para a emancipação dos sujeitos. Os sujeitos são concebidos como ativos, capazes de dirigir a transformação social.

Por meio da identificação das referidas concepções, evidenciamos que a perspectiva crítica é denunciadora das desigualdades sociais e desafiam o status quo, evidenciando que as relações de poder não são dadas e sim construídas. Compreendemos que tal denúncia desvela as relações de poder fundadas por meio do Patriarcado, apesar de não ter foco nas análises da perspectiva crítica. Mas através da desnaturalização das relações de poder foi possível o fortalecimento de movimentos contrários à sociedade patriarcal/urbana/industrial/capitalista. Ao questionar as relações desiguais de poder também questionava o Patriarcado, uma vez que o entendemos como elemento constitutivo da referida sociedade, sendo assim aponta indícios da despatriarcalização.