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1.3 SOCIOCONSTRUTIVISMO: CATEGORIA ESTILO DE PENSAMENTO

1.3.2 Perspectiva epistemológica de Fleck: socioconstrutivismo

A Epistemologia socioconstrutivista na Medicina pode ser muito rica em suas articulações com o processo de conotação social do saber, em especial quando demonstra a amplitude e a diversidade que permeiam a construção dos conceitos relativos às doenças. Esta epistemologia valoriza a produção do conhecimento como fruto da construção sociocultural. O conhecimento que resulta da interação dos indivíduos pode ser expresso, na conotação de Fleck, pelas unidades que denominou de Estilo de Pensamento (EP), que representa a expressão do estado do conhecimento. O EP deve ser entendido como um processo

dinâmico de construção e reconstrução, formando um continuum em que as experiências do presente estão ligadas às do passado, que, por sua vez, estarão ligadas às do futuro.

Destaco o termo continuum para expressar a idéia de complexidade e amplitude que deve permear a infinita combinação que compõe a rede de conexões que se intersectam para produzir e comunicar o conhecimento. Esse pensamento fica evidente quando Fleck escreve:

“O conhecer representa a atividade mais condicionada socialmente da pessoa e o

conhecimento é a criação social por excelência. Na mesma estrutura da linguagem tem uma filosofia característica da comunidade, inclusive uma simples palavra pode conter uma filosofia complexa. A quem pertencem estas filosofias e estas teorias?” (FLECK, 1986, p.89)

E continua dizendo que, à medida que os pensamentos circulam de um indivíduo para outro, sofrem alguma transformação, pois cada indivíduo estabelece diferentes relações com eles. Neste sentido, para Fleck (1986) o receptor não entende nunca o pensamento da

mesma maneira que o emissor pretendia que o entendesse. E conclui que depois de uma série de tais transformações, modifica-se o original, de forma que o pensamento que segue circulando não é de nenhum indivíduo concreto, senão de um coletivo. Fleck lembra

que o conhecimento, depois de percorrer entre muitos, pode retornar ao seu primeiro autor, que o vê de forma distinta e pode não reconhecê-lo como próprio ou até acreditar que fez um descobrimento original.

Fleck considera que não existe geração espontânea de conceitos, mas que estes são determinados pela influência de seus antepassados. Conforme o autor, o passado se torna mais perigoso quando nossas relações com ele se mantêm inconscientes e desconhecidas. Para ele

toda teoria do conhecimento que não faça investigações históricas e comparativas cai num jogo de palavras, numa epistemologia imaginária. E acrescenta: É uma ilusão acreditar que a história do conhecimento tem tão pouco a ver com o conteúdo da ciência,... que os conteúdos científicos, talvez em quase suas totalidades, estão condicionados e são explicáveis histórico, psicológico e sociológico-conceitualmente. Especifica que os conceitos atuais de uma entidade nosológica são resultado de um determinado desenvolvimento histórico e não de uma única possibilidade lógica”. (FLECK, 1986, p.68).

Esse autor comenta que, mesmo um investigador moderno, armado de todos os instrumentos técnicos e intelectuais, não poderia jamais chegar a separar todos os diversos quadros de uma enfermidade, dos casos que se apresentam, distingui-los das complicações e agrupá-los em uma unidade. Somente com a ajuda de comunidades de investigações organizadas, enriquecidas pelo saber popular, durante gerações, pode-se alcançar essa meta, mesmo porque, o desenvolvimento do fenômeno das enfermidades pode requerer anos. Conclui então não ser possível cortar os laços com a história.

Fleck ressalta que, na teoria do conhecimento, deve-se investigar como se descobrir uma relação, além de ocupar-se de sua legitimação científica, de suas provas objetivas e construções lógicas. Para ele, o objetivo único ou principal da teoria do conhecimento não consiste apenas na comprovação dos conceitos e de suas conexões. Enfatiza que um princípio de pensamento que permita perceber mais detalhes concretos e mais relações necessárias merece prioridade, como demonstra a história das ciências naturais. Segundo ele, os conceitos devem ser investigados como um resultado do desenvolvimento e da confluência de algumas linhas coletivas de pensamento; mas que não seria apenas generalizar e buscar as relações concretas, e sim estabelecer “as leis destas relações e das forças sócio-cognoscitivas que influenciam sobre elas”. (FLECK, 1986, p. 69-70, grifo meu).

De acordo com Fleck, existe uma diferença muito importante entre um

experimento isolado e uma experiência concebida quando menciona:

...“enquanto um experimento pode ser interpretado como um simples sistema de pergunta-resposta, a experiência tem que se conceber como um complexo processo de entretenimento intelectual, baseado em uma ação recíproca entre o cognoscível, o já conhecido e o por conhecer- se. A aquisição de faculdades físicas e psíquicas, a acumulação de uma certa quantidade de observações e experimentos e a habilidade de moldar e transformar os conceitos formam, sem dúvida, um todo incontrolável lógico-formalmente, no qual a ação recíproca de seus componentes impede completamente qualquer consideração lógica sistemática do processo cognitivo”. (FLECK, 1986, p.56-57).

Desse modo, Fleck conclui que é hora de assumir uma visão menos egocêntrica, mais geral e falar de epistemologia comparativa, já que epistemologia sem investigações comparativas e históricas não é mais que um vazio jogo de palavras ou uma epistemologia sem imaginação. Escreve que pelo menos três quartos da ciência são condicionados pela história, psicologia e sociologia das idéias. Ele também se posiciona sobre o indivíduo como tendo um papel subordinado à comunidade científica frente a suas descobertas, criticando aqueles que acreditavam cegamente no progresso científico cumulativo. Fleck utilizou um tema médico, a entidade nosológica conhecida com o nome de sífilis, para documentar e descrever os longos e tortuosos caminhos epistemológicos percorridos até se chegar aos conceitos de sua época. Classificou as diferentes concepções daquele período como: místico- ética, empírico-terapêutica, patológica e etiológica. Lembrou que, apesar de se sucederem historicamente mudanças daqueles conceitos condizentes com as mudanças gerais do conhecimento, além de mudanças nas formas de apresentação daquela doença, o nome da entidade, no caso sífilis, continuava o mesmo.

Com esses exemplos Fleck mostra a fundamentação psicosociológica e histórica dessas idéias como tão forte que impediu avanços científicos durante quatrocentos anos. Explica que essa tendência à persistência não estava ancorada em observações empíricas e sim em outros fatores amparados pela tradição e pela psicologia. Demonstrou também a

influência de outras idéias, provenientes de diferentes épocas, que se interacionaram com o saber sifidológico para explicar as mudanças conceituais. Na convivência entre os conceitos da entidade nosológica ético-mística , do mal venéreo e do empírico-terapêutico, existiam, para Fleck, elementos teóricos e práticos, alguns contraditórios, entremeados e que esses elementos embora empíricos, se amalgamavam não pela lógica, mas sim pela psicologia. Para ele, nesse caso, o empirismo perdia terreno frente ao emocional.

Segundo ele, quando se forma um sistema de opiniões estruturalmente completas e definidas, cheio de detalhes e relações, existe a tendência de resistirem a tudo que possa contradizê-lo. Aquilo que não concorda com o sistema: não costuma ser pensado, nem percebido; quando observado tende a ser guardado em silêncio; fazem-se grandes esforços

para explicar as exceções com termos que não contradigam o sistema (FLECK, 1986,

p.74). Conforme ele, nessa fase se estabelece a harmonia das ilusões, na qual o que vai se tornando conhecido vai se adaptando à visão dominante.

A partir de estudos bacteriológicos e apoiando-se na psicologia gestáltica, Fleck pode provar que não existe um observar livre de pressupostos. Para ele existem dois tipos do observar: “o observar como confuso ver inicial e depois o observar como ver formativo direto e desenvolvido’. (FLECK, 1986, p.138, grifo meu). E que esse ver formativo desenvolvido não é um observar ingênuo, senão algo que só é possível através de uma

introdução teórico-prática e de uma certa experiência em um determinado campo. E

aprofunda essa idéia acrescentando que “a disposição para o perceber orientado se adquire às custas da perda do poder de perceber o heterogêneo”. (SCHÄFER e SCHNELLE apud FLECK, 1986, p.23, grifo meu).