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4.4 SUPERPOSIÇÃO (OVERLAP) COMORBIDADE ENTRE AS SÍNDROMES

4.4.3 Prevalência no gênero mulher

Considero que a significativa predominância dessas síndromes no sexo feminino, com

relatos cada vez mais freqüentes da relação a fatores psicossociais e culturais, justifica que se comente sobre esses dados.

Os antropólogos têm feito referências sobre a saúde mental no gênero mulher no que diz respeito a experiências potencialmente fragilizadoras à saúde mental, na trajetória de

vida das mulheres. No capítulo de um livro escrito em português com o título de

Antropologia da Saúde, (1998), Hita, M. escreve um capítulo sobre: Identidade feminina e

nervoso: crises e trajetórias. (p. 179-213)

A autora enfatiza que sua abordagem não é apenas epidemiológica para identificar fatores de estresse no meio social, mas que busca compreender a interação complexa de

experiências que se desenvolvem ao longo de uma trajetória de vida. Salienta o “processo” através do qual os indivíduos dão sentido e respondem às pressões externas do

meio social. Chama a atenção à preferência ao termo “experiência fragilizadora”, porque esse “reflete o intuito de compreender não apenas condições sociais ‘externas’, objetivas, mas

também os modos específicos pelos quais os indivíduos se situam frente a situações, conferindo-lhes sentido”. Acrescenta que: “A idéia de ‘processo de fragilização’ põe em evidência o transcurso temporal, ou seja, a trajetória de vida a partir da qual os indivíduos desenvolvem modos próprios de lidar com e interpretar as situações”. (HITA, 1998, p.179)

Hita mostra a diferença entre se tentar explicar os fatos objetivos externos à consciência e se compreender a forma como esses fatos ganham significado e são

incorporados à vida. E que uma análise sócio-antroplógica de eventos, quando construída a

partir de quem os vivencia, pressupõe uma compreensão das características pessoais e

subjetivas dos indivíduos, e também o contexto da situação social em que se encontram esse self. Explica que self é uma entidade reflexa cuja formação entranha uma dialética entre a

auto-identificação e a identificação que é feita pelos outros.

No que concerne ao conflito, a autora o define como a coexistência de condutas contraditórias, incompatíveis entre si. E refere-se a Bleger (1963) quando afirma que o que caracteriza a vida de pessoas tidas como “normais” não é a ausência de conflitos, senão a

possibilidade de os resolver, o saber lidar com eles. Hita introduz a idéia de crise quando

existe um movimento de entrega e rendição frente ao problema (conflito), fragilização, quebra de equilíbrio e sentimentos de padecimento. Diz respeito a uma etapa depressiva que exige medidas externas ao indivíduo para sua contenção.

Hita ressalta que, para a mulher, parece haver situações problemáticas que são peculiares a seu gênero, e que, para alguns, haveriam formas específicas de “adoecimento”

das mulheres.

A mesma autora escreve que abordagens epidemiológicas sobre doença mental apontam que as mulheres sofrem mais que os homens dos chamados distúrbios afetivos e neuroses, embora, em torno dessa afirmação, exista um complexo e interminável debate. São relatados possíveis fatores de susceptibilidades de ordem biológica (tensão pré-menstrual, uso

de anticoncepcionais, distúrbios do pós-parto, menopausa, etc) e também cita Weissman & Klerman, 1997; Miles, 1988 (p.181-182) quanto à referência a fatores sociais (posição de subordinação do papel da mulher, status desvantajoso, falta de poder, menor auto-estima, etc) –levando a que as mulheres vivenciem os eventos de forma distinta dos homens e sejam mais suscetíveis ao stress.

Quanto às desordens psicoafetivas, destaca a depressão. Hita afirma que esse foi “um

dos problemas mentais mais diagnosticados no século XX e que, até recentemente, era pensado como o principal problema feminino”. (RUSSEL, 1995 apud HITA, 1998, p.182).

“Parece ter capturado o lugar ocupado pela histeria no imaginário do século XIX”. (HITA,

1998, p.182).

Uma pesquisa na Inglaterra assinala que os principais processos de “fragilização” das mulheres se destacam por ordem de maior intensidade: “casamentos insatisfatórios, ações passadas (traumas), mudanças hormonais, relações familiares insatisfatórias, eventos adversos ou dificuldades severas como cuidar de parentes doentes e velhos e doenças físicas crônicas; apareceram também problemas de infância e no trabalho assalariado”. (MILES apud HITA:1998, p.183)

Hita menc iona que estudos psicanalíticos também apontam de forma consensual para a forte manifestação de uma série de crises nas mulheres (especialmente as de classe média) de forma bastante sistemática e geral, principalmente quando atingem a meia-idade . Esses

modos de ser mulher assumem significações e particularidades distintas em contextos sociais, históricos e culturais específicos. Para concluir, a autora refere-se a outro tipo de

situação fragilizadora frente a qual o sentimento característico é de impotência e revolta, quando se trata de cuidar de doentes crônicos ou morte de pessoas próximas, e que pode se acentuar quando associada a fatalidades inesperadas.

Em artigo recente via Internet em J.Gend Specif Med (2002, 5 (2), p.42-47), com o título de Diferenças de Gênero em Fibromialgia e outras Síndromes Relacionadas

(Gender Differences in Fibromyalgia and Other Related Syndromes), Yunus, Professor de

Reumatologia na Universidade de Illinois, escreve que Fibromialgia tem uma incidência de

mulheres têm, significativamente, mais fadiga , seja comum ou matinal, e sentem-se doloridas por todo o corpo (“hurt all over). Acrescenta que as diferenças de gênero também foram relatadas em outras síndromes como cefaléia de tensão, enxaqueca, síndrome da fadiga

crônica, síndrome do intestino irritável e desordens temporomandibulares.

Yunus comenta que somente nos anos recentes se tem dado mais atenção às diferenças entre homens e mulheres, e que eles são diferentes não só em anatomia e fisiologia, mas também em farmacologia, nos mecanismos de doença (incluindo genéticos), na expressão de doenças e prognóstico. Para ele, tornou-se mais claro que um entendimento das diferenças

de gênero é importante, não somente para uma melhor compreensão dos mecanismos de

doenças, mas também para a avaliação prática e manejo dos pacientes na prática clínica, incluindo o prognóstico. Embora exista diferença entre sexo (um fenômeno biológico) e gênero (o complexo que reúne biologia, psicologia, experiência na infância e outros fatores socioculturais), esse autor utiliza esses dois termos como sinônimos.

Esse autor também descreve que, desde 1980, a síndrome de fibromialgia, está

associada a várias síndromes similares e superpostas, como cefaléias de tensão e enxaquecas, síndrome do intestino irritável, síndrome da bexiga irritável, síndrome da fadiga crônica, dor em articulações temporomandibulares, dismenorréia primária, estresse por desordens postraumáticas e múltiplas sensibilidades químicas. Essas

síndromes têm em comum a ausência de patologias clássicas anatômicas nos tecidos; falta de achados objetivos anormais no exame físico e nos testes laboratoriais e radiológicos rotineiros; ausência de doença psiquiátrica em excesso além daquela explicada nas dores e doenças crônicas (na maioria dos estudos). Expõe que as anormalidades neurohormonais comuns a essas síndromes sugerem uma sensibilidade de origem central e que essas

doenças têm sido agrupadas como síndromes relacionadas ao estresse, desordens de espectro afetivo, síndrome de espectro disfuncional, síndromes funcionais somáticas. E que ele propôs, recentemente, síndromes com sensitividade central.

Além do gênero feminino ser um fator de risco para angústia (fator psicológico), que, por sua vez, está associado com dor, fadiga e sono deficiente, ele escreve que dor e

religiosa, suporte étnico, educação na infância, status socioeconômico e estereotipagem pela sociedade..

Esses fundamentos, muito pouco explorados pela Medicina tradicional, merecem ser estudados, porque podem explicar parte das dificuldades atuais em se entender a fisiopatologia das síndromes que foram apresentadas, quando não se levam em conta a multicausalidade e a construção social das doenças. Vale refletir como modificar o comportamento dos profissionais médicos formados por um modelo fragmentado e compartimentado com hegemonia biomédica, para que possam vir a desenvolverem um Estilo

de Pensamento que coadune com essas propostas apresentadas.

Em seguida, finalizo estudando o significado do termo somatização, por acreditar que o mesmo pode se constituir num elo entre as diferentes síndromes que foram relatadas e poder vir a representar um dos temas importantes para ilustrar a categoria epistemológica de Objeto

Fronteira.