• Nenhum resultado encontrado

Na época de criação da lei sueca, quando a Europa e o mundo passavam por transformações, o filósofo inglês Jeremy Bentham (1748-1832) trouxe à tona a discussão sobre o controle social ao idealizar o conceito do panóptico, exemplificado na estrutura de um presídio que monitora seus presos sem que eles saibam. Han (2017) considera o panóptico como um fenômeno da sociedade disciplinar:

[...] é uma instalação que visa o melhoramento. São submetidos ao controle do panóptico presídios, fábricas, hospícios, hospitais e escolas. São instituições típicas da sociedade disciplinar. As celas ordenadas uniformemente em torno da torre de controle estão rigorosamente isoladas umas das outras, de modo que os detentos não podem ser comunicar entre si. As paredes que separam as celas são as responsáveis para que tampouco os detentos possam ver uns aos outros. (HAN, 2011, p. 106 - 107).

Bentham também ficou conhecido por discutir a publicidade de atos e dados como forma de evitar abuso do poder público por parte das autoridades (GOMES;

AMORIM; ALMADA, 2015). Em seu livro Um ensaio sobre táticas políticas, de 1791, Bentham desconstrói quatro objeções à publicidade de informações. A primeira delas é considerar o público um juiz incompetente. Para o filósofo, é difícil não existir uma pessoa num grupo de 100 capaz de formar um julgamento esclarecido sobre questões discutidas em uma assembleia política. Além disso, reconhece que o “público julga e sempre julgará”. Diante da possibilidade de aumento de más publicações pela existência de “maus juízes em proporção maior do que os bons”, o autor pondera a necessidade de distinguir o público em três classes.

A primeira é composta dos partidos mais numerosos, que ocupam a si mesmos muito pouco com os assuntos de concernência pública – que não tiveram tempo de ler nem de se dedicar ao raciocínio. A segunda é composta por aqueles que formam um tipo de julgamento, mas que é tomado emprestado – um julgamento fundado nas asserções dos outros, as partes nem tomando as dores necessárias, nem sendo capazes de formar uma opinião por si mesmas. A terceira é composta daqueles que julgam por si mesmos, de acordo com a informação, seja ela mais ou menos exata, que eles são aptos a conseguir. (BENTHAM, 2011, p. 284).

Para o filósofo, apenas a terceira classe seria afetada, já que os membros farão julgamentos a partir das informações recebidas: “eles julgarão mal, baseados em informações imperfeitas; eles julgarão melhor, quando estiverem de posse de melhores evidências” (BENTHAM, 2011, p. 284). A segunda classe, que toma emprestado os julgamentos, será influenciada indiretamente pelo grupo subsequente:

Esta classe (terceira classe), porém, sendo melhor informada e julgando melhor, oferecerá opiniões mais corretas àqueles que as recebam prontamente feitas. Ao retificá-las, você terá retificado os outros; ao purificar a fonte, você purificará os córregos. (BENTHAM, 2011, p. 284-285)

O filósofo entende que uma classe julga mal pois ela é “ignorante acerca dos fatos – porque ela não possui os pormenores necessários para formar um bom julgamento”. O filósofo também afasta o entendimento de que publicizar atos políticos pode obstruir a liberdade das suas decisões13. Para o autor, deliberações secretas

contêm uma segurança mais ilusória do que real. “O verdadeiro motivo de tal conduta

13 Este é a quarta objeção apresentada no livro. Para não prolongar a discussão foram apresentadas

apenas duas das quatro objeções. As outras duas são que a publicidade pode expor ao ódio o membro da assembleia por condutas que merecem outro tratamento e a terceira é o entendimento que o desejo da popularidade pode sugerir proposições perigosas aos membros - eles deixariam de ser racionais para ser seduzidos a pedidos do povo. Nos dois casos, o filósofo desconstrói as afirmações ao observar que o povo é incapaz de distinguir entre seus amigos e inimigos, e observa que a publicidade pode derrubar afirmações falsas.

deve, em vez disso, estar sujeito ele mesmo à sua influência, sem muito expor a si mesmo à censura pública; porque, ao excluir o público, ele apenas livra a si mesmo da inspeção pública”. (BENTHAM, 2011, p. 286).

Bentham entende que o regime da publicidade atua como um sistema de desconfiança. Ao escolhermos alguém para ocupar um cargo político, damos uma grande autoridade para uma determinada pessoa que pode ter grandes tentações de se aproveitar dela. A publicidade dos atos ajuda a fiscalizar o que tem feito esse mandatário e evitar abusos.

De acordo com o estudioso, expor informações era uma forma de criar constrangimentos aos políticos e evitar que interesses privados se sobrepusessem aos interesses públicos. Em relação a isto, Gomes, Amorim e Almada (2015) destacam:

Uma autoridade pública por definição se ocupa dos negócios públicos, portanto, “dos outros”, cuja satisfação é claramente menos vantajosa do que a saciedade dos próprios interesses. Ademais, tem à sua disposição os meios de satisfazer-se, às expensas do público; precisa, portanto, de contenção. (GOMES; AMORIM; ALMADA, 2015, p. 2).

Ainda, Bentham entende haver três categorias de inimigos da publicidade: malfeitores, tiranos, e o homem tímido ou indolente. O autor caracteriza cada uma delas: “os malfeitores, que buscam escapar da advertência do juiz; o tirano, que tenciona suprimir a opinião pública, enquanto teme escutar sua voz; o homem tímido ou indolente, que reclama da incapacidade geral de modo a esconder a sua própria”. (BENTHAM, 2011, p. 278).

Bentham também indaga o motivo pelo qual os governantes são contrários à publicidade de informações, já que elas também podem lhes trazer benefícios, protegendo-os da injustiça do povo e ajudando no reconhecimento público de seus trabalhos.

Passados três séculos dos escritos de Bentham, as restrições da população ao acesso a informações públicas voltaram a ser debatidas no século XXI. Diferentemente da época do filósofo, quando a lei de acesso à informação sueca ainda se estabelecia e era a única existente em todo o globo, agora mais de 100 países adotaram os preceitos da transparência.

Três anos após a lei brasileira entrar em vigor, a pesquisadora Zucatto (2015) propôs um modelo de gerenciamento de informações públicas a partir da LAI. Para

isso, partiu de três fundamentos da legislação: o controle externo, o controle interno e o controle social. Vou me ater ao último ponto.

Considerado por Zucatto (2015) o mais importante mecanismo de controle do Estado Democrático do Direito, o controle social permite a participação efetiva do cidadão na democracia. Por meio dele, é possível corrigir ou evitar atos e omissões da administração pública, além de provocar a atuação dos órgãos de controle. Entretanto, a pesquisadora pontua que o controle social é dependente da vontade e do grau de instrução da população - o que dialoga com o modelo de classes proposto por Bentham.

Em virtude da necessidade de instigar a vontade do cidadão, para que ele busque exercer o seu papel na efetivação do Controle Social, é que se faz necessário que a política de transparência aconteça de forma eficiente e eficaz. É preciso que o cidadão se sinta seduzido a buscar informações nos portais de transparência e valide seu papel ao efetivar o Controle Social. (ZUCATTO, 2015, p. 69)

Para a pesquisadora, é necessário envolver a sociedade civil para concretizar o controle social que evidencie a existência da democracia e permita ao cidadão contribuir na construção de uma política pública de qualidade. Um dos mecanismos para atender essa demanda vem da ideia dos Observatórios Sociais, que são “espaços democráticos e apartidários que buscam exercer a livre cidadania, reunindo o maior número de entidades representativas da sociedade civil para buscarem juntos a evolução e melhoria da gestão pública” (ZUCATTO, 2015, p. 70).

Entre outras funções, o Observatório Social monitora compras públicas em nível municipal, fiscalizando desde a publicação de editais, o processo e entrega do produto (ZUCATTO, 2015).

O ato de fiscalizar as atividades das instituições públicas bem como repassar o conhecimento adquirido, faz com que os observatórios sejam consumidores e disseminadores da informação pública. Isso lhes dá domínio para criticar os vazios e espaços problemáticos encontrados ao longo da busca por informações. (ZUCATTO, 2015, p. 214).

Para obter as informações, os observatórios afirmaram usar portais da transparência – de maneira ativa (quando os dados estão disponíveis em um site) e passiva (quando o órgão precisa ser “provocado” para passar uma informação). Os oitos observatórios consultados por Zucatto (2015) buscam informações de contratos, licitações e gasto com folha de pagamento.

Já naquela época, um integrante de um dos observatórios reclamou das dificuldades para obter informações. “O principal problema é que ainda não há uma boa disseminação da cultura do acesso. O servidor público ainda acha que é detentor da informação, ou seja, acha que informação não é pública” (ZUCATTO, 2015, p. 155).

Ao analisar o acesso a informações públicas nos países do Cone Sul, Eirão (2018) destacou que a informação e comunicação são itens valiosos para a democracia. Entretanto, juntas, podem não apenas conduzir à estabilidade, mas também enfraquecer o regime. “Omitir informações ou impedir sua comunicação são ações desestabilizadoras, que podem levar ao rompimento com os valores presentes nas democracias” (EIRÃO, 2018, p. 16).

Para Batista (2010), há três dimensões da informação que permitem verificar se o ambiente é propício para o acesso e a transparência da informação pública. São elas: dimensão física – quando há dificuldade em acessar fisicamente o documento – ; dimensão intelectual – relacionada à compreensão do indivíduo sobre o documento acessado –; e dimensão comunicacional – indicada à pouca eficiência do fluxo da informação pública ou ao excesso de informação. Além dessas três dimensões, Eirão (2018) sugere acrescentar a transparência e a publicidade que, segundo ele, estão presentes no direito ao acesso à informação.

De maneira ampla, transparência, accountability, divulgação de informação e participação do cidadão formam o grupo ideológico e, ao mesmo tempo, os mecanismos essenciais para a consecução do direito à informação e mais precisamente do acesso à informação pública (EIRÃO, 2018, p. 17).

A discussão vai em direção ao conceito de transparência. O termo designa algo que pode ser visto através de outro, como plástico, vidro, água, certos véus e outras vestimentas. Não impedem que se veja o que está além deles, com maior ou menor precisão e nitidez.

Transparência é, naturalmente, uma metáfora antes de ser um conceito. Deve-se notar, antes de tudo, que é uma palavra recente, não reconhecida no latim clássico. É proveniente do adjetivo latino transparens -entis (composto pelo prefixo lat. trans-“trans-“ e pelo verbo pareo “aparecer”), que surge apenas no latim medieval. No latim clássico, usava-se, para se referir à mesma coisa, outros adjetivos como perlucens, translucidus, perlucidus ou splendidus, que querem dizer “nítido” ou “límpido”, aplicados, por exemplo, à água e ao ar. (GOMES; AMORIM; ALMADA, 2015, p. 2).

Para a organização Transparência Internacional14, o conceito diz respeito à

garantia de esclarecimentos sobre regras, planos, processos e ações de governos, organizações e outras entidades, inclusive privadas. “Não se limita apenas a responder o porquê das coisas, mas sim 'como’, 'o quê’ e 'quanto custam’.” (TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL, 2019). Além disso,

o princípio da transparência assegura que funcionários públicos, servidores, administradores, conselheiros e empresários atuem de modo visível e compreensível, bem como reportem suas atividades. Desta forma, é proporcionado às pessoas e organizações condições para que possam fiscalizá-los. Esta é a maneira mais segura de se proteger contra a corrupção e ajuda a aumentar a confiança nas pessoas e instituições das quais nossos futuros dependem. (TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL, 2019).

Angélico (2012) observa que a transparência tem relação direta com fluxo de informação, entretanto, não pode ser desconsiderada a qualidade e uso dessa informação. “Um regime realmente transparente deve preocupar-se não só com a disponibilização de informações, mas em disponibilizá-las de maneira tal que elas sejam úteis para a formulação de inferências mais precisas” (ANGÉLICO, 2012, p. 26- 27).

Para identificar se um sistema é realmente transparente, Angélico (2012) pontua a necessidade de mecanismos de respostas. Em outras palavras, indicar onde determinada informação pode ser encontrada ou entregar o dado ao solicitante. Para o autor, a transparência é um meio pelo qual que se pode conhecermelhor o que se passa no interior das instituições. “A transparência será tão mais útil quanto maior for a sua contribuição a um sistema de prestação de contas efetivo, que resulte em inferências corretas”, segundo Angélico (2012).

Han (2017) entende que a transparência domina hoje o discurso público. Em seu livro, A Sociedade da Transparência, cita o termo dentro de um contexto positivo. De acordo com o estudioso, as coisas se tornam mais transparentes quando deixam de lado qualquer traço de negatividade, quando “[...] se tornam rasas e planas, quando se encaixam sem qualquer resistência ao curso raso do capital, da comunicação e da informação” (HAN, 2017, p. 10).

14 A Transparência Internacional é um organização não-governamental apartidária dedicada ao

combate à corrupção. A entidade atua há mais de duas décadas e hoje está presente em mais de 100 países. A organização é conhecida pelo Índice de Percepção da Corrupção (IPC), mas trabalha em outras frentes para mostrar à sociedade os efeitos da corrupção.

O autor considera que as ações se tornam transparentes quando se transformam em operacionais, ou seja, quando se subordinam a um processo passível de cálculo, governo e controle. Por exemplo, o dinheiro que “iguala tudo com tudo” (HAN, 2017, p. 10).

O filósofo sul-coreano enfatiza sua crítica ao refletir sobre o chamado excesso de transparência, principalmente nas relações interpessoais, o que ficou agravado nos últimos anos com o uso das redes sociais. Para ele, apenas uma máquina é transparente em sua essência. “A espontaneidade - capacidade de fazer acontecer - e a liberdade, que perfazem como tal a vida, não admitem transparência” (HAN, 2017, p. 13). Para o autor, nem o ser humano é transparente consigo mesmo.

O veredicto da sociedade positiva é este: “Me agrada”. É significativo que o Facebook se negue coerentemente a introduzir um emotion de dislike button. A sociedade positiva evita todo e qualquer tipo de negatividade, pois esta paralisa a comunicação. Seu valor é medido apenas pela quantidade e velocidade da troca de informações, sendo que a massa de comunicação também eleva seu valor econômico e veredictos negativos a prejudicam. Com

like surge uma comunicação conectiva muito mais rápida do que com o dislike. (HAN, 2017, p. 24).

Conforme Han (2017), o panóptico de Bentham não deixou de existir, mas ganhou novas formas nos dias de hoje. Ao invés de um modelo centralizado, agora o controle é aperspectivístico. No modelo original, os presos ficariam em celas separadas e sem comunicação. Já no panóptico digital, como é chamado por Han, há hipercomunicação e colaboração ativa entre os participantes, que acabam se expondo.

A sociedade de controle chega a sua consumação ali onde o sujeito dessa sociedade se desnuda por coação externa, mas a partir de uma necessidade gerada por si mesmo; onde, portanto, o medo de renunciar à sua esfera privada e íntima dá lugar à necessidade de se expor à vista sem qualquer pudor. (HAN, 2017, p. 108-109)

Han desconstrói a ideia de que a transparência cria confiança. Para ele, a transparência destrói a confiança. Segundo o filósofo, a situação está relacionada ao fato de que o fundamento moral da sociedade tem se tornado cada vez mais frágil, com perda da importância de valores morais como honestidade e sinceridade. Com isso, a transparência assume como novo imperativo social.

A exigência por transparência torna-se realmente aguda quando já não há mais confiança, e na sociedade pautada na confiança não surge qualquer exigência premente por transparência. Por isso, a sociedade da transparência

é uma sociedade da desconfiança e da suspeita, que, em virtude do desaparecimento da confiança, agarra-se ao controle. (HAN, 2017, p. 111- 112).