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UNIVERSALISMO ÉTICO

A aceleração do processo de globalização, nas décadas de 1970, 1980, e 1990 do século XX, internacionalizou a pesquisa clínica e suas formas de financiamento. Na atualidade, os investimentos privados são mais significativos que os estatais, situação que tem sido apontada como responsável pela diminuição do poder do Estado em estabelecer prioridades e controlar a ética em pesquisa.

A pesquisa clínica originou-se no final século XVIII, quando se apropriou do saber probabilístico. Cada dado constatado em um exame podia ser confrontado com os dados de exames de outras pessoas e assim era medida a ocorrência de sinais e sintomas. Devido a isso, o ser humano deixou de ser simplesmente um sofredor e tornou-se um objeto da construção do saber médico, passou a ser objeto de estudo (92, 120).

Lorenzo et al. (121) registram que, com a industrialização, as pesquisas biomédicas passaram a atender à lógica do mercado, que tem imperado com a disseminação empresarial da saúde, representando o fortalecimento do paradigma capitalista na saúde, onde esta deixa de ser um direito e passa a ser um produto de consumo.

Como consequência, resulta pequena a proporção de investigações conduzidas por laboratórios multinacionais com a finalidade de produção de medicamentos que atendam às necessidades epidemiológicas dos países mais pobres, onde realizam seus estudos, já que os ganhos financeiros não compensam, gerando as chamadas “doenças negligenciadas”. Apesar de a regulamentação para as pesquisas científicas ter sido criada com vistas à proteção dos participantes na sua autonomia e com seu consentimento, estas atividades migraram para o ramo empresarial e transformaram-se em um dos negócios mais prósperos do mundo contemporâneo, o da indústria farmacêutica. No caso do Brasil, a maior parte dos ensaios clínicos é realizada com o patrocínio da indústria farmacêutica e poucos são financiados por empresas nacionais e instituições públicas de fomento (92, 121, 122).

Assim, a discussão das questões éticas e morais relacionadas às pesquisas mantêm-se atual e com pertinência frente ao ocorrido com a Declaração de Helsinque, havendo o rompimento do universalismo ético estabelecido pela associação entre a ética e os direitos humanos. Para Tealdi (29), as mudanças consolidaram o imperialismo moral da concepção pragmática- liberal do duplo standard. Com isso, houve a incorporação do que é referenciado como contextualização da pesquisa, na qual a análise dos conflitos éticos vai ser influenciada pelo contexto real e específico onde acontece, possibilitando menores cuidados aos participantes.

A aceitação internacional do duplo standard canaliza as pesquisas para os países periféricos, onde as condições de saúde por vezes são muito precárias ou

até ausentes. Cria-se justificativa para o uso de placebo, que é de interesse das indústrias farmacêuticas. Esse método permite delineamento mais claro dos mecanismos do tratamento e garante sucesso nas conclusões das pesquisas e aprovação para comercialização. Outro aspecto é que permite a realização do estudo a um custo muito inferior ao dos países desenvolvidos (121).

O surgimento da ideia de autonomia serviu como linha mestra da organização das sociedades ocidentais, principalmente no ideário do liberalismo dos países capitalistas, baseado em um sujeito individual com vida privada protegida e estimulada. Mas, ao mesmo tempo, prosperaram as desigualdades, com países ricos explorando os mais pobres, gerando condições reconhecidas como de vulnerabilidade social. Esta situação tem se repetido no mundo da ciência como demonstram os relatos sobre as pesquisas clínicas aqui citados e que apontam a continuação de pesquisas antiéticas (61, 62).

O que se constata é que a participação nessas pesquisas nem sempre representa escolha e consentimento voluntários, haja vista muitos sujeitos terem nelas a única oportunidade de assistência em saúde. Aceitam sem questionar o que lhes é ofertado, enquanto outros com pouca compreensão das informações consentem na participação sem uma decisão que represente, de fato, opção autônoma.

No entanto, as pesquisas multinacionais podem trazer benefício às populações de países pobres se oferecerem soluções para problemas de saúde que a falta de recursos financeiros não permite serem resolvidos. Nesse sentido, é importante a regulamentação das pesquisas nestes países, com a garantia de transferência de tecnologia e equipamentos de saúde (121).

As diretrizes de ética em pesquisa clínica recomendam quatro procedimentos de minimização de riscos para proteção dos participantes desses estudos: seleção apropriada de sujeitos, monitoramento clínico dos participantes, rede de comunicação efetiva entre participantes e pesquisadores e, por fim, capacitação para o controle social do estudo pela comunidade onde é realizado. Entretanto, neste tipo de estudo, deve se ter atenção aos riscos relacionados ao modo de vida dos participantes e aos contextos em que vivem. Por isso, não há como estabelecer procedimentos padrão de minimização para estes tipos de pesquisas (121).

Os documentos que estabelecem as diretrizes para as pesquisas devem cada vez mais estar adequados aos contextos diferenciados da sua realização, no sentido da proteção dos participantes e não dos interesses de patrocinadores; a participação social no controle dessas atividades deve ser estimulada com representantes dos diferentes segmentos sociais (61).

Para Kottow (123), a representatividade internacional de alguns organismos relacionados à regulamentação da pesquisa em seres humanos tem sido questionada. Segundo o autor, é desejável a existência de padrões diferentes na realização das pesquisas e que não se pode falar de um standard ético único para a prática e investigação biomédica, já que se encontram diferenças radicais entre as culturas.

Sugere Kottow (123), um novo modelo de organização internacional no qual cada nação elabora o seu delineamento bioético de pesquisas, podendo coincidir em alguns pontos com o das nações que patrocinam as pesquisas, porém mantendo suas peculiaridades no que fossem discrepantes. Desse modo, seria construída uma regulamentação internacional, oriunda de colegiados com representações nacionais e culturais de caráter plural, embora sem haver caráter vinculante, a servir como orientação.