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Pesquisas no Brasil a partir de estudos dos letramentos

Em contexto mundial, os estudos de letramento que ocorreram, principalmente, a partir das décadas de 1980 e 1990, buscaram investigar a relação entre leitura/escrita e seus usos sociais, ou seja, trouxeram à tona o fato de que, por um lado, o ensino e a aprendizagem de leitura e escrita não representavam apenas a apreensão de um processo de codificação e decodificação e, por outro, não nasciam e tampouco estariam reservados a práticas exclusivas do ambiente escolar. Práticas sociais de leitura e escrita implicam situações concretamente vividas pelos sujeitos na vida cotidiana, ou seja, na rede complexa de enunciados concretamente produzidos nas diferentes esferas de comunicação verbal (BAKHTIN (2003 [1952-1953]). Assim, a partir da primeira década do século XXI, alguns autores como Collins & Blot (2003a; 2003b; 2003c); Lankshear & Knobel (2007) e Street (2003a; 2003b) têm levado à reflexão de que não passamos por um único processo de

7 Neste Programa de Pós-Graduação, a partir de meados da década de 1990, começaram a surgir pesquisas

cuja bibliografia continha obras de Bakhtin, mas apenas em 1999, algumas pesquisas passaram a discutir o ensino e a aprendizagem da escrita segundo a Teoria de Gêneros na perspectiva bakhtiniana. Por exemplo, a dissertação de mestrado de Cecilia Vaz Pupo de Mello, intitulada “Tipologias textuais: um estudo, em escola de 1º grau (5ª a 8ª série), sobre formas de sua aquisição e de estratégias em seu uso” foi publicada em 1996, sob orientação da Profa. Dra. Raquel Salek Fiad. A autora se baseou nas obras de Bakhtin “Marxismo e Filosofia da Linguagem” (1979 [1929]) e “Estética da Criação Verbal” (1992 [1952-53]) para considerar questões ligadas à polifonia (p. 93) e à entoação como elemento que estabelece o elo entre o discurso verbal e o contexto extraverbal (p. 89). A fundamentação teórica para a análise dos dados baseou- se principalmente na Linguística Textual, segundo autores como Koch (1993) e Koch & Travaglia (1990 e 1993) sem considerar a Teoria de Gêneros como base para a análise.

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letramento, mas por processos de letramentos — processos de aprendizagem e uso de leitura e escrita, inseridos em um contexto social, cultural, político e econômico — que se estendem ao longo da vida conforme nossas inserções nos gêneros do discurso praticados nas diferentes esferas da atividade humana (BAKHTIN (2003 [1952-1953]).

Essa perspectiva social e histórica sobre estudos de práticas de letramentos influenciou tanto a produção acadêmica brasileira de pesquisas sobre escrita quanto sobre práticas pedagógicas de ensino e aprendizagem. Por conta disso, no segundo semestre de 2010, a partir de uma proposta de pesquisa desenvolvida pela disciplina LP211-Tópicos em Língua Materna II, ministrada pela Profª Drª Raquel Salek Fiad, no programa de pós- graduação em Linguística Aplicada/Língua Materna, no IEL/UNICAMP, fiz um levantamento sobre o estado da arte voltada ao tema “Letramento”, com o objetivo de entender como estava circulando no Brasil o conceito de letramento e o que era tido como pesquisas sobre letramentos. Através do portal da CAPES, elaborei uma busca com a palavra-chave “letramento” para encontrar teses publicadas entre 1990 e 2009, cujos resumos poderiam servir ao objetivo de traçar um percurso das tendências teóricas e dos eixos temáticos sobre esse tema. As análises se restringiram, no entanto, a trabalhos publicados entre 2000 e 2005, tidos como um conjunto representativo do período maior. Por ser intermediário em relação às primeiras teses publicadas em 1994 e às últimas, em 2009, esse período pôde nos fornecer uma perspectiva sobre as tendências de pesquisa em relação às mais antigas e às mais próximas de 2010, ano em que os dados foram coletados.

Considerando a perspectiva social, histórica e cultural das práticas letradas, para realizar essa investigação, propus três questões de pesquisa sobre as práticas sociais de leitura e escrita:

1. Entre 2000 e 2005, o que as pesquisas acadêmicas no Brasil

investigaram como tema a partir dos aportes teóricos sobre letramento?

2. O que se tem considerado como pesquisa de letramento nesse período?

3. Como o tema tem se constituído e se transformado ao longo desse

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Para responder a essas questões, investiguei os resumos, baseando-me nas três categorias propostas por Gomes-Santos (2005): enfoques temáticos, aportes teórico- disciplinares e dados de investigação. Através dessas categorias, foi possível verificar se as pesquisas tiveram foco sobre questões relacionadas a práticas sociais de leitura e escrita, se foram fundamentadas em autores que teorizam sobre letramento e se consideraram para a análise dados relacionados a práticas sociais de leitura e escrita. Através da palavra-chave “letramento”, foram inicialmente computadas 66 teses, no entanto, ao investigar os resumos a partir dessas categorias, apenas 34 trabalhos foram considerados sob o eixo temático “letramento”. Apesar de fazerem parte do resultado da pesquisa no portal da CAPES, tendo ou não entre suas próprias palavras-chaves o termo “letramento”, muitas teses:

(i) tiveram sua inclusão nos resultados da busca com a palavra-chave

“letramento” embora claramente não fossem pesquisas sobre “letramento”;

(ii) investigaram questões relacionadas à escrita e à leitura, mas não tinham

como base de reflexões os aportes teóricos sobre letramento; ou

(iii)mantiveram dúvidas se eram de fato pesquisas com temas e aportes

teóricos do letramento.

O que essa análise propõe é que o termo “letramento” em pesquisas acadêmico- científicas nem sempre tem sido usado para abordagens sobre as práticas de leitura e escrita e segundo um quadro teórico relacionado aos estudos do letramento ou aos NLS. Uma constatação semelhante foi feita por Brian Street quando, em 2009, ao conceder uma entrevista à Revista Cultura Escrita (2009b), fez uma crítica à associação do termo “letramento” a “metáforas” que estão longe de se relacionar a práticas sociais letradas:

Recentemente, ouvi a expressão “Palpatory Literacy” (letramento tátil) que se referia às habilidades de uma pessoa especializada em massagens. A palavra letramento nesses contextos simplifica o uso do termo para significar apenas ‘habilidades’, mas não se refere aos traços específicos da língua escrita originalmente previstos para o conceito. Essa mesma ênfase nas habilidades pode ser verificada em expressões como ‘letramento político’, ‘letramento emocional’, dentre outras. Embora tenha argumentado em favor de um modo mais amplo de

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conceituar o letramento, principalmente em oposição à forma restrita presente nos modelos autônomos, agora me vejo na condição de ter que argumentar em favor de uma abordagem mais limitada, que reconhece os componentes de leitura e de escrita no letramento (...).

(STREET, 2009b: 90)

De forma análoga a essa constatação feita pelo autor, em minha pesquisa sobre os resumos de teses no portal da CAPES, verifiquei que, em muitos casos, as pesquisas não se encaixaram no tema “letramento”, mas, mesmo assim, ocorreu a sua inclusão nos resultados da busca com a palavra-chave “letramento”. Há casos mais contraditórios em que os próprios pesquisadores utilizaram o termo “letramento” de forma nem sempre clara ou condizente com a concepção sociocultural de práticas sociais relacionadas à leitura e à escrita ou de maneira a traçarem uma concepção desviante de letramento, ou uma espécie de amplitude ou ainda uma recolocação do conceito como sinônimo de:

(1) Processo de alfabetização que ocorre nas fases iniciais de aquisição do código de leitura/escrita: em muitos casos, nos resumos, há designações como “fase de letramento”, “durante o letramento” ou “apropriação do

letramento”.

(2) Ambiente escolar: fala-se em letramento por considerar o espaço escolar, mas as pesquisas não se ligam a teorias de letramento ou a seus eixos temáticos, ou seja, não são pesquisas sobre práticas de leitura e escrita.

(3) Situações de aprendizagem: são pesquisas concentradas nos processos

cognitivos de aprendizagem ou em práticas pedagógicas de

ensino/aprendizagem ou, ainda, em representações ou significações que um sujeito ou determinado grupo fazem da linguagem, ou da escola, ou de si mesmos.

Há uma diferença entre essas concepções e aquelas cujo conceito de letramento gera investigações relacionadas aos usos sociais de leitura e escrita e às necessidades de os

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sujeitos aprenderem segundo esses usos ou segundo suas inserções em determinados espaços sociais de práticas letradas. Como existem infinitas práticas e necessidades ao longo de toda a vida, dada a relativa infinidade e inconstância dos gêneros (BAKHTIN, 2003), não é possível considerarmos termos como “fase de letramento” e “apropriação do

letramento” como foram encontrados nos resumos. Tampouco, como sugerem os Novos

Estudos do Letramento (NLS), é condizente a essa perspectiva apenas o uso do termo “letramento” no singular, uma vez que as pesquisas avançam considerando os usos, as práticas, a multiplicidade de gêneros e sua relativa instabilidade e os diferentes e múltiplos processos de inserção dos sujeitos e dos grupos nas esferas de atividades sociais do mundo da escrita.

Sobre as 34 pesquisas consideradas sob o eixo temático “letramento”, a investigação sobre os enfoques temáticos, aportes teórico-disciplinares e os dados de investigação permitiu-nos ― ainda que nos limites de um breve período considerado para

análise ― fazer o levantamento dos seguintes enfoques/eixos8 temáticos dessas pesquisas:

1. Letramento e Práticas Sociais de um Lugar/uma Comunidade/um Grupo: este é o principal eixo temático das pesquisas de letramento, provavelmente por ser intrinsecamente relacionado ao conceito de que as práticas de letramento são situadas, ou seja, estão inseridas em contextos que as fazem social, cultural e historicamente localizadas (HEALTH, 1982 e 1983) e ideológicas (STREET, 1984). São estudos que buscaram investigar as práticas sociais de leitura e/ou escrita em um determinado espaço social, referentes, pois, a um determinado grupo, geralmente investigado em suas práticas fora da escola, mas que podem também incluir pesquisas relacionadas ao âmbito escolar. São exemplos as pesquisas sobre práticas de leitura e escrita em uma comunidade de meio rural; práticas de leitura e escrita em comunidades de assentamentos de terra; práticas de leitura e escrita em um grupo bilíngue de surdos; práticas de leitura e

8 Os itens a seguir são nomeados segundo os termos encontrados nos próprios resumos, respeitando, portanto,

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escrita em um grupo de afásicos; práticas de leitura e escrita em fases escolares; etc.

2. Letramento, Tecnologia e Surdos, Afásicos ou PNEE (Pessoas com Necessidades Educacionais Especiais): são pesquisas referentes à investigação do desenvolvimento, interação e/ou inclusão em processos de letramento de surdos, afásicos e/ou PNEE a partir do uso de tecnologias computacionais, como o uso de CD-Room ou a inclusão digital de pessoas com necessidades educacionais especiais em um cenário informatizado de aprendizagem.

3. Letramento e Oralidade: são estudos que buscam investigar a influência da oralidade ou a necessidade de reconhecer as práticas orais para o processo de letramento.

4. Letramento Matemático: refere-se a um trabalho que buscava investigar práticas de numeramento/letramento do grupo indígena Kaiabi no contexto de formação de professores índios do Parque Xingu.

5. Letramento e Gêneros: são pesquisas que buscam analisar e discutir práticas de letramento escolar em que as atividades propostas para o ensino de leitura e de produção de texto estão relacionadas aos gêneros de textos/de discurso.

6. Letramento e Gênese da Escrita: pesquisas que buscam investigar como se chega à elaboração de textos escritos segundo as práticas de leitura e escrita de um grupo/comunidade.

7. Práticas de Letramento na Escola: investigações sobre (i) práticas de leitura e escrita nas séries escolares; (ii) a experiência da criança na escola; (iii) a leitura nos primeiros anos de escolarização; (iv) análise de práticas de letramento de leitura e escrita de jovens do EM.

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8. Letramento Científico: refere-se a um trabalho que buscava investigar o desenvolvimento de aspectos sociocientíficos do letramento científico na prática de ensino de professores e na prática de aprendizagem de alunos. 9. Letramento e Relações de Poder: investigações sobre as formas como a

instituição escolar regula os gestos de interpretação, definindo sobre o que se interpreta, como se interpreta, quem interpreta, em que condições. 10. Letramento e Leitura: pesquisas que partem das teorias de letramento

para investigar especificamente práticas de leitura em relação a processos de ensino e aprendizagem ou produção de significados considerando as especificidades dos grupos/comunidades.

11. Letramento e Concepções: representações dos sujeitos sobre conceitos relacionados a leitura/escrita/letramento/escola; histórias de vida que se relacionam a processos de letramento, tanto para ensinar quanto para aprender; processos de identidade do sujeito.

12. Letramento Digital: tendência crescente de pesquisas nesses últimos anos, as quais buscam refletir sobre as novas práticas sociais de leitura e escrita em ambientes digitais ou por conta do desenvolvimento das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICS), relacionando-as ou não a contextos escolares.

Certamente, há muitos outros eixos temáticos conduzidos por pesquisas publicadas fora do período considerado de 2000-2005, como é o caso de pesquisas sobre letramentos acadêmicos. Fundamental a esse levantamento, no entanto, é o fato de que, de uma perspectiva sociocultural, as pesquisas sobre escrita que se integram ao tema “Letramento” buscam investigar a maneira como o social, o histórico e o cultural interpenetram-se, caracterizando os diferentes processos e práticas letradas na diversidade de grupos sociais. A partir desse prisma, Lankshear & Knobel (2007:1-2) afirmam que

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Understanding literacies from a sociocultural perspective means that reading and writing can only be understood in the contexts of social, cultural, political, economic, historical practices (…) of which they are a part. This view lies at the heart of what Gee (1996)9 calls the “new” literacy studies, or socioliteracy studies. (…) there is no reading or writing in any meaningful sense of each term outside social practice.10

Essa perspectiva teórica leva a pesquisas sobre ensino e aprendizagem de escrita a partir do reconhecimento da diversidade de práticas letradas em seus contextos reais e, ao mesmo tempo, a necessidade de tê-las como parte de processos de ensino- aprendizagem. Por isso, pressupõe como essenciais os estudos de base etnográfica para mapearem as práticas sociais reais de leitura e escrita e contribuírem para a compreensão dos processos de letramentos da atualidade e para a fragilização das relações de poder que determinam previamente o conteúdo e a forma a serem ensinados/aprendidos.