• Nenhum resultado encontrado

RELAÇÕES ENTRE EDUCAÇÃO E DISCIPLINA

51 Jean Piaget Biologia e conhecimento: ensaio sobre as relações entre as regulações orgânicas e os processos

respectivamente, ao elemento feminino ou masculino e, no século XVIII, partidários da preformação a partidários da epigênese.52

Ora, como vimos, esta configuração inclui a opção pela hipótese da epigênese frente à hipótese da preformação. Inclui também a idéia de uma inelutabilidade dos passos e da seqüência pelos quais o ser vivo constitui-se morfológica e fisiologicamente como tal num organismo. Inclui, ainda, a idéia de que há, no ser vivo, dois dinamismos, contrapostos, mas equilibrados: um, endógeno, pelo qual, por uma parte, os órgãos são suporte de funções que se complementam para formar uma unidade estrutural, funções pelas quais o todo, resultando da interação entre as partes, é mais do que sua soma, no interesse de manutenção da estabilidade estrutural ou do sistema, e a isto se chama regulação, e, por outra, as funções pelas quais a formação de um órgão, ou de uma outra função, demandados por algo que os precede, demanda, por sua vez, algo que lhes sucede, e a isto se chama indução; outro, exógeno, pelo qual nada está definitivamente predeterminado no ser vivo em geral, como o mostram as teses evolucionistas, e menos ainda o está no caso da cognição, revela-se como auto-regulação no processo de ação do organismo sobre o meio e de retroação do meio sobre o organismo. É a assimilação e a acomodação.

E se o indivíduo, nesse processo de desenvolvimento, que opera internamente pela regulação e pela indução, e externamente pela assimilação e acomodação, não está preformado no zigoto ou no seu germe inicial, também nenhuma habilidade ou caráter, ou capacidade, estaria no educando antes que ele percorresse seu processo de maturação. Por isso seria vã e ineficaz em Educação a tentativa de impor ao educando, qualquer tarefa, qualquer conduta, qualquer idéia, qualquer conceito, que não fossem adequadas ao nível de desenvolvimento desse educando e, mais do que isso, compatíveis com a espontânea expressão de seus interesses. Assim tornar-se-ia, além de inócua e contraproducente, imoral, a imposição de regras, de “verdades” sem significação, isto é, regras e “verdades” incapazes de realizar uma função psicogenética, e, por isso, desprovidas de operacionalidade cognitiva. Outrossim, tornar- se-ia antipedagógica a desconsideração do que é espontâneo, natural, uma vez que, conceitos, regras lógicas e “verdades”, por um lado, e, por outro, valores, regras comportamentais, regras de conduta, ou tarefas, só teriam condições de compreensão aqueles, profissão e cumprimento estes,

52

A. M. Moulin. Développement [bio]. In: ENCYCLOPÉDIE Philosofique Universelle, v.II. Les Notions Philosophiques: dictionnaire. Tome 1. Volume dirigé par Sylnvain Auroux. Presses Universitaires de France. 2ème édition. Paris, 1998, p.626 ( tradução do autor ).

à custa de violações que desestabilizariam e corromperiam, tanto o corpo, quanto o espírito, quanto a inteligência. Além disso, a concepção segundo a qual o educando é um ser vivo altamente plástico, cuja inteligência constitui-se no e pelo dinamismo auto-regulador e auto- regulado da ação desse mesmo educando sobre o ambiente e da retroação do ambiente sobre o próprio, desencoraja toda adesão a valores definitivamente postos, numa espécie de segunda sofística, uma vez que valores são conhecimentos e conhecimentos são apenas estratégias de equilibração pelas quais se mantém o dinamismo da vida em sua expressão mais complexa que é exatamente a cognição, vale dizer, conhecimentos são modos de obter mais conhecimento e, portanto, não há que se aprender isto ou aquilo, ao contrário, há que se aprender a aprender.

E aqui chegamos ao busílis. Encontramos, na realidade concebida pela Biologia, sob o nome de desenvolvimento, particularmente no campo da Embriologia, e em sua problematização, a impressão digital – hoje diríamos o código genético –, da operação judicativa e argumentativa que funda, suporta, sustenta, duas idéias fundamentais no campo das teorias educacionais ditas modernas: a atribuição de um sacrossanto valor de virtude inconspurcável à manifestação espontânea dos interesses dos educandos e a postulação de uma invencível superioridade moral e técnico-didática das pedagogias que conferem papel central a esta valoração.

Ocorre que tal conceito de desenvolvimento, forjado no século XIX, constituiu- se durante a fase experimental da Embriologia, cujos primeiros passos foram dados no século XVIII, como o indicamos. Ora, como também já o vimos, o crescente prestígio científico da hipótese evolutiva, bem como o recurso a novos instrumentos e técnicas de observação e experimentação, além dos novos conhecimentos proporcionados pela Biologia Celular, uma vez que a moderna teoria celular aparece em 1838/39, pela obra de T. Schwann, induziram, no âmbito específico da Embriologia, a passagem de uma fase analítico-descritiva a uma fase experimental. Quando isso ocorre, renova-se, enfaticamente, o problema representado na indagação acerca da presença virtual do ser real no ser vivo ab ovo, tal qual ele será em sua vida adulta, ou de uma determinação progressiva, realmente posta, em fases sucessivas no tempo, vale dizer, o problema da disputa entre preformação e epigênese.

Quanto à Embriologia experimental é preciso dizer que, até hoje, não há solução definitiva para o confronto entre a hipótese epigenética e a hipótese preformacionista

frente à ontogênese. Os estudos empíricos empreendidos por Conklin, Chabry e Dalcq, relativos às acídias, apontam que o ovo apresenta potencialidades totais iguais às suas potencialidades reais, e que, estando os territórios do germe preformados, o ovo se comportaria como um mosaico. Já os experimentos relacionados ao ouriço do mar, que Driesch e Horstadius fizeram, mostram que o sistema embriológico é capaz de regulação e, sendo assim, as potencialidades totais dos germes seriam superiores às suas potencialidades reais.53 Nem as experiências levadas a efeito por Spemann, nem a elaboração do modelo físico-químico da estrutura em dupla hélice do DNA, nem mesmo a recentíssima revelação a respeito das células-tronco (stem cells) feita por James A. Thompson na Universidade de Wisconsin, nos EUA, em 1998, trazem uma solução definitiva às discussões no campo da conquista de um elemento explicativo estritamente científico quanto ao vivente no que diz respeito à ontogênese. Nesse terreno as conquistas experimentais não parecem suficientes para banir definitivamente a querela entre mecanismo e vitalismo, entre preformação e epigênese, impondo, a qualquer uma das posições uma derrota comparável à que a teoria neuronista, defendida por Santiago Ramon y Cajal, impôs à teoria reticulista, na discussão sobre a contigüidade das células cerebrais umas em relações às outras, ao final do século XIX, ou proporcional àquela que a concepção heliocêntrica copernicana impôs à concepção geocêntrica ptolomaica. Ao contrário, nesse campo, as conseqüências práticas dos avanços vêm alimentando e realimentando polêmicas como as que assistimos recentemente no debate sobre a clonagem patrocinado pela Academia Nacional de Ciência dos EUA, ou a que está, atualmente, também em pleno andamento nos EUA, quanto ao financiamento governamental das pesquisas com células-tronco e quanto ao patenteamento do processo de isolamento e de manipulação dessas células, cuja posse está dividida entre a fundação de pesquisa da Universidade de Wisconsin e a Geron Corporation, uma empresa estadunidense de biotecnologia. E como se não bastasse, uma tal descoberta revela que as células-tronco, são pluripotentes, isto é, podem-se transformar, depois, em células de qualquer órgão ou tecido do corpo, originários de qualquer um dos folículos embrionários, o que pode, perfeitamente, levar a formulações preformacionistas.54

Destarte,

53 Charles Houillon,. Embriologia. Trad. Alfredo Yazbek Junior. São Paulo: Editora Edgard Blücher, 1972.