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RELAÇÕES ENTRE EDUCAÇÃO E DISCIPLINA

30 D Vernant Epistémologie In: ENCYCLOPÉDIE Philosophique Universelle, v.I Les Notions Philosophiques:

científicos, envolvem, em seus diversos aspectos, o futuro efetivo das ciências”.31 Não seria este, outro modo de dizer Teoria da Ciência? E não é esta a locução com que se encerra a definição lexical? Isto significa que os comentários expendidos acerca da definição lexical, ainda que não se apliquem pontualmente, termo a termo, ao equacionamento que levou a uma definição técnica, são a ela extensível. Ou seja, o termo Epistemologia, mesmo em seu uso técnico, é impreciso, e, na verdade, tautológico.

Óbvio é que nesta introdução explicativa não poderia haver nenhuma intenção de elucidação definitiva das dificuldades que enredam quem se aventure a considerar o “problema da Epistemologia”, seja porque a empresa aqui é de muito menor envergadura, seja porque, propriamente falando, não há questão epistemológica enquanto tal. Equacionar a problemática do conhecimento de tal modo que suas variáveis principais sejam os significados adquiridos pelos enunciados ou saberes no interior de um conjunto qualquer definido em termos de funções e relações, ou então a verificabilidade ou falseabilidade dos enunciados ou saberes no interior de um conjunto ou universo, quer dizer, sua funcionalidade operativa num determinado jogo de convenções, outra coisa não representa senão uma forma de contornar a obstinada insistência com que as perguntas sobre o Uno e o Múltiplo, sobre o Ser e o Pensamento, sobre o fundamento e o sentido, obsedam as mentes daqueles que fazem alguma indagação científica. O mal-estar da crítica científica contemporânea é o mal-estar provocado pela impaciência, pelo açodamento, diante do reencontro com a consciência da inarredável imperscrutabilidade do Ser tão logo começou a soçobrar o projeto moderno de substituição da Ontologia pela Antropologia. Seja na vertente pós-moderna do desespero da Razão, seja na vertente do relativismo ou do indeterminismo na Física contemporânea, seja na fuga para a Estética e para os estados etéreos da experiência e da palavra, o projeto é sempre o da supressão, do banimento do Ser, mesmo que esse esforço de baní-lo e suprimí-lo apresente-se sob a aparência de um retorno ao “ao ser mesmo das coisas” pela desconstrução de todo o edifício do saber científico e filosófico sob a alegação de que na construção desse saber houve um esquecimento do Ser. As vertentes contemporâneas desse projeto dão visibilidade, exprimem e concretizam, o mal-estar perante o fato de que “em tempo algum, nesses vinte e cinco séculos em que há filósofos e filosofia, jamais se ultrapassou esta dificuldade: ao contrário, a reflexão filosófica sempre se nutriu dela, descobrindo-se a si

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própria, una e múltipla, desde que ela descobriu, uno e múltiplo, todo problema filosófico”.32 E nada pode fundar, até aqui, um prognóstico de seu deslindamento.

Deve, pois, restar claro que o nosso problema aqui não é um “problema Epistemológico”. É um problema característico da reflexão filosófica. Os educadores vêm estudando o fenômeno sócio-educacional identificado como o da disciplina/indisciplina na educação escolar. Nesse estudo constituem, como o indicamos acima, modelos de interpretação, teorias cuja função é permitir-lhes, maior inteligibilidade do próprio fenômeno, maior capacidade de intervenção na realidade educacional em que esse fenômeno se manifesta, de modo a que o processo educativo não se afaste de suas finalidades. Dito isso, nossa tarefa, agora, diz respeito à análise dessas teorias e visa, não a discussão de sua epistemologia, mas o exame das bases científico-filosóficas desses modelos interpretativos constituídos nessas teorias.

Dessa forma, veremos como a escolha das perspectivas científico-filosóficas, dos marcos categoriais a partir dos quais se estudam as relações entre Educação e disciplina, das opções metodológicas assumidas nesses estudos, é função e depende, diretamente, da reflexão e do conhecimento a respeito do conteúdo dos problemas constituintes desse campo movediço e minado de saber denominado “Epistemologia”. Mais do que isso. Tal escolha afeta decisivamente os resultados alcançados nesses estudos: de modo elucidativo e profícuo, quando a análise exprime um domínio amplo e profundo desse problema, de modo infecundo e deletério, quando ela, a escolha, negligencia a necessidade de enquadramento crítico do mesmo. Feitos esses esclarecimentos, vejamos como, entre os educadores, as claudicações relacionadas ao domínio da chamada “questão epistemológica”, que na verdade exprimem o problema da precisão ou imprecisão no enquadramento científico-filosófico do fenômeno educativo, manifestam-se quando eles tratam das relações entre Educação e disciplina. Tal problema aparecerá, por exemplo, na tendência, senão a reduzir a Educação à sua dimensão psicológica, pelo menos a sobrevalorizar essa dimensão, até se chegar ao culto mítico do querer pessoal, ou então na tendência a reduzi-la à sua dimensão política até à mistificação da ação educativa em luta pelo poder.

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Jacques Rolland de Reneville. L’un et le multiple. In: ENCYCLOPÉDIE Philosophique Universelle, v.I. L’Univers Philosophique. Volume dirigé par André Jacob. Presses Universitaires de France. 2ème édition. Paris, 1998, p.87 ( tradução do autor ).

2.2 A ABORDAGEM PSICOLÓGICA DA EDUCAÇÃO

No capítulo 2 tomamos conhecimento de que duas perspectivas predominam nos estudos sobre o tema da disciplina na educação: a psicológica e a política. Além disso, demos destaque ao fato de que, na perspectiva psicológica, todo privilégio foi concedido à noção de espontaneidade, enquanto na perspectiva política, a precedência recaiu sobre a noção de poder. Mas não foi só isso. Assinalamos que espontaneidade e poder transformaram-se, nesses estudos, em categorias. Não no sentido aristotélico ou kantiano do termo categoria, nem no sentido em que o empregam os lingüistas, ou a psicologia cognitiva, mas segundo seu uso nas “epistemologias contemporâneas”. Destarte, espontaneidade e poder constituem-se em chave interpretativa do fenômeno a ser estudado e passam a exprimir sua estrutura, quaisquer que sejam suas formas de manifestação.

Deveríamos tomar agora diretamente a nossa tarefa de examinar as bases científico-filosóficas que ancoram a abordagem psicológica do referido tema, bem como o encargo de averiguar os procedimentos analíticos que a ordenam e estruturam a partir da noção de espontaneidade. Todavia, como o adjetivo psicológico(a) recobre uma gama muito variada de significações, devemos, aqui, esclarecer-lhe o sentido para delimitar com clareza a que nos referimos quando usamos a expressão abordagem psicológica do tema das relações entre Educação e disciplina.

É lugar-comum a referência à dimensão psicológica do ato educativo. Mas, ainda que assim seja, o compromisso com a exatidão obrigar-nos-á a mais uma digressão heurística e semântica pelo fato de que as referências à dimensão psicológica da Educação têm dado margem a muitas confusões. Realizaremos nosso intuito, mais uma vez, se pudermos explicitar o equacionamento do problema, de preferência a buscar sua resolução definitiva, ou, pelo menos, se pudermos indicar as raízes que validariam suas soluções neste ou naquele universo. Não se trata de realizar uma história da Psicologia, mas de fazer demarcações pelas quais se revele o fato de que a abordagem psicológica da Educação levada a efeito na teoria

educacional brasileira recente acerca das relações entre Educação e disciplina não decorre diretamente, nem da tradição filosófica do racionalismo ideal-inatista cartesiano, nem da tradição filosófica do racionalismo empírico-associacionista inglês, nem tampouco da tradição científico- positivista comteana presente em alguns aspectos da chamada psicologia experimental.

A palavra psicologia deriva dos termos gregos que, transliterados ao Português, dão-nos psiquê e logos. Quanto a logos fiquemos com os comentários e esclarecimentos já feitos. Quanto a psiquê deveremos tentar seguir sua semântica, ou seja, o processo pelo qual um significado surge, e não se exprimindo sempre num mesmo significante, segue um dinamismo de alta complexidade. Destarte, não só varia o significado, mas, igualmente, ele se vai exprimindo em diversos significantes.

Comecemos pela lembrança de que, psiquê – alma –33, designa, já em Homero, a força vital que abandona o vivente na ocasião da morte. Notemos também que o termo deriva de um verbo grego apropriado para exprimir a ação de soprar, e que, em mais de uma circunstância, emprega-se-o como pneûma, quer dizer, ar, sopro, respiração.34 Nesse caso, pneûma pode significar, tanto a alma na qualidade de um sopro originário, o ar em movimento, quanto um elemento vivificante, ou a realidade espiritual. Assim é que psiquê e pneûma, e também o latim anima (sopro, vida)35, são variações semânticas nas quais se manifesta o rico dinamismo pelo qual a linguagem tenta apropriar-se de uma realidade que está no centro da atividade humana do pensamento desde que o homem percebe-se enquanto tal. Esse dinamismo inclui, em suas origens, tanto o pitagorismo quanto o orfismo, fontes inesgotáveis de cujo conteúdo se alimentam as reflexões filosóficas socrático-platônico-aristotélica que nos legaram um conjunto de instrumentos conceituais, operativos, representativos e valorativos, das realidades do mundo e do homem. Acrescente-se que, nos textos bíblicos do Antigo Testamento, o adjetivo pneumático não é raro, e significa espiritual, donde pneûma significar, também, espírito, mas não a alma. A variabilidade lexical e semântica, em que pese o fundo nocional comum, dá-nos já o