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RELAÇÕES ENTRE EDUCAÇÃO E DISCIPLINA

68 Utilizamo-nos aqui de uma formulação elaborada por Ivan Dominges em O grau zero do conhecimento São

Ora, a empresa teórica foucaultiana conduz-se exatamente a partir de uma recusa: a abdicação da conquista de qualquer substância no campo das Ciências Humanas, seja a do objeto, seja a do sujeito, seja a da prática social, seja a da linguagem. E há nessa atitude uma diferença abissal frente à atitude marxista. Marx, em seu ímpeto iconoclasta frente à Filosofia, isto é, frente à Metafísica e à Ontologia, não pratica um recuo niilista. Nem de corte cético, nem de corte sofistico. O que ele faz é rejeitar a substancialização objetivista realizada pelo materialismo vulgar, tanto quanto a substancialização subjetivista empreendida pelo idealismo, abstrato, transcendental, tendo em vista a substancialização histórico-dialética da práxis.

Há, como vimos, na História da Educação Brasileira, uma perspectiva analítica sobre a Educação, um enquadramento teórico da prática educacional, que, a partir de um certo momento, consagra a postulação da inseparabilidade entre a dimensão política e a dimensão educativa na ação social humana. Daí em diante, como já observamos antes com certa minúcia, descobertos os conteúdos, as significações e as repercussões sociais da Educação, esse enquadramento passa a realizar-se por um procedimento segundo o qual a compreensão e o enfrentamento prático de qualquer tarefa pedagógica, desde as tarefas didáticas e curriculares até as tarefas da administração geral das unidades de sistemas escolares exprimirá todo ato educativo como ato político. Enquanto o Socialismo Real não chegou a sua fase de desmoronamento e enquanto não se desgastou a versão progressista pós-conciliar do catolicismo brasileiro, entre outras coisas, pela volta à disciplina que passou a vigorar no pontificado de João Paulo II, foi de vento em popa a transformação da Educação em Política e da Política em Educação. Mas quando a realidade começou a expressar o impacto desses dois fenômenos, no Brasil, a corrente pedagógica que postulava o caráter político da Educação entrou em crise. E daí em diante, o repertório teórico, a parafernália analítico-conceitual utilizada para tal, já não pode mais basear- se nos conceitos de classe, luta de classes, Estado como expressão dos interesses das classes dominantes, relações de produção, relações historicamente determinadas entre a infraestrutura econômica da sociedade e sua superestrutura jurídico-política ideológica. Ou pelos conceitos de Justiça, ou de Bem comum, de pobre, de opção preferencial pelos pobres, de libertação. Ou então, quando esses conceitos permanecem, ficam deslocados, e em contradição com os novos conceitos utilizados. O repertório muda. Uma nova concepção de epistéme. Discurso, práticas discursivas, práticas não discursivas, grades de significados, agenciamento enunciativo, estratégias

discursivas, disciplinas, disciplina como poder, tecnologia disciplinar, enfim, Microfísica do Poder. Passa-se a seguir de perto o roteiro foucaultiano. É com Michel Foucault que um número cada vez maior de educadores brasileiros vai, passando pela postulação de que a segregação dos loucos produziu a Psiquiatria, o encarceramento dos delinqüentes e a economia da punição aos atos anti-sociais o Direito penal, a medicalização da saúde a Medicina, chegar à postulação da seguinte idéia: o enquadramento disciplinar, entendida a disciplina como uma ordem que tudo quer esquadrinhar, classificar, regulamentar, não como uma realidade organicamente materializada numa classe dominante ou num Estado intencionalmente opressores, mas como efeito que dá operacionalidade e produtividade aos corpos, produz a indisciplina na escola. E as agressões, a depredação e a violência escolares, são efeitos de superfície da aplicação de uma tecnologia disciplinar e da sanha punitiva que esta tecnologia atualiza e torna operante.

Uma inédita parafernália conceitual e uma nova cesta de termos, emergem do “Vigiar e punir”. Elas estão relacionadas, de um lado, com o intenso trabalho teórico, de pensamento, desenvolvido por Michel Foucault, de outro, com sua prática no G.I.P. (Grupo de Informação sobre as Prisões) em cujas ações, entre 1971 e 1973, segundo Giles Deleuze, seus protagonistas, entre eles Foucault, souberam evitar a recorrência de impulsos centralizadores e totalizantes, característicos da prática esquerdista.

Pois bem, tendo ficado bem estabelecido como se generalizou entre educadores brasileiros a concepção de inseparabilidade entre Educação e Política, como esta generalização se concretizou no emprego do repertório conceitual marxista e na tradição de militância política dos movimentos de esquerda, inclusive a esquerda católica, e como, no vácuo das transformações ideológicas do final dos anos 80, este repertório foi substituído por outro, de sentido absolutamente diverso ao primeiro, sem que a perspectiva em vista da qual ele é operado tenha mudado, e, por último, que um número crescente de educadores saca este repertório, particularmente da “Soberania e disciplina” e do “Vigiar e punir”, examinemos, para terminar, os fundamentos científico-filosófico sobre os quais estas obras apóiam sua elaboração conceitual.

Sabe-se que o “Vigiar e punir”, cuja primeira publicação no Brasil, feita pela Editora Vozes, é de 1977, representa um momento da obra foucaultiana que, embora seja o lugar de uma teorização do poder putativamente original, não é a obra teórica mais importante do autor. Foucault foi um autor profuso e a grande maioria dos textos que ele publicou resulta de pesquisas

sobre a loucura, os loucos e a Psiquiatria, sobre os doentes, seu tratamento e a Medicina, sobre os presos, seu julgamento, punição, encarceramento e o Direito penal, e também sobre a sexualidade, as práticas sexuais e seu enquadramento moral, político e científico, sem falar nos estudos a respeito da linguagem e Literatura, base importante de suas elaborações teóricas em todos os campos de saber pelos quais transitou. Mas essas obras resultaram de pesquisas que, como toda pesquisa, visa a realidade a partir de um determinado quadro teórico ou pelo menos de uma problemática cujo estabelecimento envolve alguma teoria. E o quadro teórico no qual ele ambienta suas pesquisas, ou na perspectiva a partir da qual ele as realiza, está em “Les mots et les choses” e no “Archéologie du savoir” publicados na França, respectivamente em 1966 e em 1969, e no Brasil em 1969 e 1972. As duas obras, contemporâneas da década de 60, são de uma época em que, a partir do aparecimento de “La pensée sauvage”, de Claude Levi-Strauss, em 1962, o estruturalismo lingüístico de Ferdinand de Saussure se estendeu como método às Ciências Humanas e passou a ser considerado válido para a aplicação em todo campo do saber.69 Transformou-se numa verdadeira moda acadêmica; assim como o Existencialismo de Jean Paul Sartre.

Ora, a atitude intelectual que viceja então é a da queda ou a do arrefecimento dos humanismos tradicionais, inclusive o Marxista. Esta atitude intelectual é o resultado do encontro de dois sentimentos que se contrapõem: de um lado o orgulho e o contentamento, e até uma certa empáfia, decorrentes da multiplicação do poder e da autonomia humanos consignada nas vitórias técnico-científicas, econômicas, políticas, e materializada na derrota do Fascismo, na prosperidade do pós-guerra, na descolonização, nos novos artefatos que estavam levando a uma verdadeira revolução na Comunicação, na Cultura, nas condições de vida material. De outro, a constatação de que o homem perdera a inocência e a ingenuidade, ou se desiludira da crença na Verdade, no Bem, na Justiça, ao mesmo tempo em que se libertava dos jugos político- econômicos. Já não era mais uma possibilidade e sim uma realidade o funcionamento de forças terríveis capazes de levar a humanidade ao auto-aniquilamento irreversível, definitivo, desde a explosão dos artefatos nucleares lançados sobre o Japão em 1945. E a reminiscência das imagens dos campos de concentração nazistas não apagara ainda das faces de quem os contemplou frontalmente, as marcas de horror, além do que a sensação da iminência de uma guerra que