• Nenhum resultado encontrado

4.3. As regras do jogo: o marco legal normativo do relacionamento23

A atuação sócio-ambiental da CEMIG na construção da usina de Irapé não só é determinada pela sua consciência de atuação responsável, que caracteriza o histórico da empresa, mas responde em grande parte, à regulação da legislação brasileira para a construção de uma hidrelétrica, baseada em decretos, leis e deliberações normativas estaduais. O processo é o seguinte: o Ministério de Minas e Energia (MME) detém os estudos de estimativa do potencial hidrelétrico dos rios brasileiros. A partir desse levantamento, é feita uma análise de toda a bacia hidrográfica referente à exploração do empreendimento almejado, culminando nos estudos de inventário hidrelétrico (que no caso de Irapé foram concluídos na década de 1960 fundamentando-se somente nos potenciais hidroenergéticos). Baseados nestas informações, os interessados em explorar o potencial hidroenergético de certas localidades

23

Ainda que o objetivo da pesquisa não seja analisar o processo de licenciamento ambiental, considera-se importante a discrição do marco legal, para contextualizar ao leitor na complexidade do caso estudado.

precisam entrar com o requerimento de Licença Prévia para iniciar os estudos de viabilidade que, teoricamente, oferecerão suporte técnico para os processos de licitação da concessão. A outorga para concessão exploratória do ponto escolhido é deliberada por uma Portaria do Ministério de Minas e Energia, gerenciada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Esta Agência coordena todo o processo de licitação, desde o lançamento do edital até a assinatura do contrato de concessão - a outorga para a realização dos estudos da Usina de Irapé foi dada pelo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica através da Portaria no. 317 de 18/12/1991.

A partir dessas deliberações, o licenciamento ambiental segue as normas dos órgãos estaduais responsáveis pela concessão das licenças ambientais dentro do próprio estado, que em Minas Gerais é o Conselho de Política Ambiental (COPAM), que delibera a concessão ou não das licenças ambientais solicitadas pelos empreendedores. Para subsidiar essa deliberação, cabe à Fundação Estadual de Meio Ambiente (FEAM) analisar os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), apresentados pelo empreendedor, e emitir pareceres técnicos que subsidiam as decisões políticas dos conselheiros membros da Câmara de Infra-Estrutura (CIF) da COPAM (responsável pelas deliberações referentes ao licenciamento ambiental das hidrelétricas).

Uma vez concedida a Licença Prévia (LP) pelo COPAM, o empreendedor, no caso, a CEMIG, deve elaborar um Plano de Controle Ambiental (PCA) com informações mais detalhadas sobre o projeto executivo e submetê-lo à apreciação da FEAM para a emissão de um novo parecer técnico que sustentará ou não a concessão da Licença de Instalação (LI), etapa subseqüente. Com esta licença, o empreendedor pode dar inicio à construção do empreendimento mas, quando a obra estiver pronta, deve submetê-la novamente a avaliação da FEAM e da CIF para a concessão ou não da Licença de Operação (LO). Somente com esta

última licença ambiental obtida, pode-se dar início ao enchimento do reservatório e o conseqüente funcionamento da usina(LEMOS, 1999; ZUCARELLI, 2006).

4.3.1. O Termo de Acordo: o resultado formal da negociação de interesses

Como já pôde ser percebido, o processo de licenciamento ambiental de uma hidrelétrica está inserido em uma complexa estrutura de relações conflitantes, “na qual estão em disputa modos diferenciados de apropriação, uso e significação do ‘espaço ambiental’” (ACSELRAD, 2004; MARTÍNEZ-ALIER, 2002).

No caso de Irapé, esse cenário levou ao estabelecimento compulsório de um relacionamento com dimensões legais, sociais e comunicativas entre a empresa e as comunidades a serem atingidas visando um acordo de interesses que, quando obtido, veio a ser institucionalizado em um documento rotulado Termo de Acordo.

Como já foi dito, a idéia da construção da Usina de Irapé já existia desde a década de 1950, mas foi fortalecida em 2001 pela ocorrência da ‘crise energética’, que estimulou o racionamento de energia elétrica imposto pelo governo federal a partir das estimativas de crescimento econômico do país. Na época, os argumentos para maiores investimentos em infra-estrutura, em prol do chamado progresso, passaram a propor à sociedade o ‘abrandamento’ das normas ambientais vigentes em detrimento do efetivo cumprimento da legislação pertinente e de direitos constitucionais específicos (ZUCARELLI, 2006:19).

Há uma divisão entre os envolvidos no processo; de um lado, existe uma disputa por um espaço a ser ocupado; desta vez, para construção de uma usina hidrelétrica cujo objetivo final é fornecer insumos energéticos às indústrias, conforme a ‘demanda’ de crescimento econômico industrial do país. O espaço que é visto como possível ‘espaço vazio’, interessante aos anseios mercadológicos da empresa; mas que adquire significação social distinta para as comunidades, que vêem naquele mesmo espaço, atribuições ecológicas para manutenção de

seus modos de vida. “São [pessoas] que constroem socialmente diferentes concepções deste mesmo ‘espaço’” (ZUCARELLI, 2006:25).

O conflito se estabelece a partir dos diferentes sentidos dados para o uso desse espaços e os agentes em interação são levados a participar de uma luta política pela redistribuição do poder sobre os recursos territorializados, pela legitimação e deslegitimação das práticas de apropriação da base material das sociedades e/ou de suas localizações (ZUCARELLI, 2006:26).

Como forma de definir formalmente um ponto intermédio entre os interesses da empresa e as demandas das comunidades atingidas, cria-se um Termo de Ajustamento de Conduta -um termo de acordo, num processo de elaboração complexo, cuja assinatura trouxe para o processo de relacionamento duas importantes significações: a primeira, refere-se ao teor simbólico do documento, que reflete a existência de uma conduta transgressora daquele que descumpriu um direito fundamental da coletividade; e a segunda, é o reconhecimento das comunidades rurais do Vale de Jequitinhonha enquanto atingidas pelo projeto hidrelétrico e, como tal, portadoras do direito ao reassentamento para continuidade da reprodução social das famílias (ZUCARELLI, 2006:112).

O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) da instalação da Usina de Irapé foi instituído pela lei 7.347/85, com redação dada pela lei 8.078 de 11 de setembro de 1990, que confere aos órgãos públicos o poder de obter “um ‘compromisso de ajustamento de conduta às exigências legais’ daqueles que estejam atuando ou com possibilidade de atuar em descompasso com as regras de proteção dos direitos transindividuais” (ZUCARELLI, 2006:114). No caso de Irapé, o TAC acabou assumindo a forma de um ‘Termo de Acordo’, onde muitas das condicionantes foram impostas pela FEAM e outras a partir do processo de negociação com as comunidades. Segundo ZUCARELLI (2006:115), isto poderia representar

uma normatização procedimental do transgressor que assume o exercício de uma conduta fora dos parâmetros exigidos em um processo de licenciamento ambiental, transforma-se, num segundo momento, em um processo de ‘conciliação (ZUCARELLI, 2006:115).

A atuação ambiental e social da CEMIG na região, no empreendimento da Usina de Irapé, que caracterizou a relação empresa – comunidades atingidas, foi desenvolvida dentro das condicionantes do ‘Termo de Acordo’ que devia ser cumprido para obter o licenciamento da geração de energia na Usina. O Termo foi assinado o 5 de julho de 2002, entre a CEMIG, a Fundação Estadual do Meio Ambiente, com a intervenção da Fundação Cultural Palmares, a Associação Quilombo Boa Sorte e a Comissão de Atingidos pela Barragem de Irapé, sob o controle do Ministério Público Federal e a Procuradoria da República de Minas Gerais. Grosso modo, esse Termo de Acordo procura a adoção de medidas que visem à melhoria da qualidade do meio ambiente e a reconstituição de direitos das populações atingidas pela barragem de Irapé.

Segundo proposta da Cemig, as famílias atingidas tinham três modalidades de opção para reconstituição de seu direito de posse e uso da terra:

(1) Reassentamento, onde foram considerados os proprietários das áreas afetadas; os posseiros, junto com as suas entidades familiares; parceiros e agregados junto com entidades familiares que residam e/ou trabalhem no espaço impactado, e os membros de famílias ou grupos de parentes que não residam ou trabalhem no espaço impactado, mas que tenham mesmo grau de parentesco em relação a proprietários ou posseiros de terras havidas por herança e mantidas em comum, que residam e/ou trabalhem no espaço24. No total foram 632 famílias que escolheram pela modalidade de reassentamento.

(2) Realocação na área remanescente da propriedade atingida, onde eram considerados os proprietários e posseiros de terras afetadas que optassem por permanecer na propriedade;

24

Os reassentados tiveram direito a definir o tipo de casa em que pretenderam morar e puderam construir a sua moradia com esforço próprio ou a obra a terceiros.

os não proprietários na área afetada em acordo com o proprietário do imóvel. Esta modalidade consistia na realocação das benfeitorias não reprodutivas dentro da área remanescente da propriedade afetada e considerava a possibilidade da continuidade da produção nessa área e que as famílias residentes queiram permanecer na propriedade.

(3) Troca por outra terra (Permuta). Essa opção considerava a mudança para outra terra de valor socioeconômico equivalente àquela afetada pelo reservatório, que permitisse a viabilidade da agricultura familiar. Foram considerados os proprietários e posseiros de imóveis, e parceiros que desenvolviam suas atividades em terras localizadas no espaço diretamente impactado pela UHE Irapé.

O processo de negociação para se chegar aos termos que vieram a ser consolidados no Termo de Acordo exigiu a realização de reuniões da empresa com as comunidades e a Comissão de Atingidos e incluiu ações como de cadastro de terras em processos de discussão com as comunidades e a Comissão dos Atingidos mediante a apresentação do Projeto Executivo de negociação. Nesse projeto, foi estabelecido que o reassentamento deveria ser reconhecido como o mecanismo principal de reconstituição dos direitos dos atingidos e a CEMIG se comprometeu a constituir uma equipe multidisciplinar responsável pelos programas de remanejamento, garantido a presença permanente de representantes da empresa junto às comunidades, o que levou a empresa a instalação de dois escritórios no local, um em cada uma das duas margens do Rio, respectivamente, nos municípios de Turmalina e Cristália – Grão Mogol (MINAS GERAIS, 2002:8).

Entre as condições exigidas da CEMIG pelo Estado para a autorização de construção da Usina, estava a assinatura de um convênio com a Empresa de Assistência Técnica de Extensão Rural do Estado de Minas Gerais – EMATER/MG para garantir a presença da organização na região por um período de oito anos, dando prosseguimento ao processo de

mudança sócio-econômico estimulado pela influência da Usina na região e nas comunidades reassentadas.

Dentro das condições negociadas para a reposição da terra a ser alagada pela represa da Usina, foi estabelecido que o tamanho a ser comprado pela CEMIG em reposição devia levar em consideração o reduzir ao máximo os impactos sociais e manter as relações sociais nas comunidades atingidas, com disponibilidade de água, acesso aos núcleos urbanos mais próximos e proximidade à rede de energia elétrica. No processo de negociação a CEMIG apresentou três opções de terra para cada família escolher aquela de sua preferência, seja por localização, laços familiares ou características da terra.

Quanto à indenização a ser recebida por cada família, além dos 50 hectares de terra, foram considerados: valor do imóvel possuído; dados de cadastro; benfeitorias reprodutivas e não reprodutivas; recursos extrativistas vegetais; características da terra; culturas perenes (aquisição de mudas, sementes, insumos, plantio e tratos culturais); pastagens, matas plantadas.

Além das condições negociadas, o Termo de Acordo considerou a definição de ações socioambientais a serem implementadas pela CEMIG como complemento do Plano de Controle Ambiental25 da Usina de Irapé. Essas ações são relativas ao impacto da implementação da Usina no ambiente e na sociedade, tentando minimizar as ações que prejudiquem tanto a qualidade de vida da população da região, quanto às condições ambientais. As ações definidas foram:

a) Ações de geomorfologia/geologia: relativas aos impactos, medidas de segurança e controle de eventuais ‘sismos induzidos’ e modificações geológicas na área de influencia da Usina de Irapé.

25

O licenciamento ambiental da CEMIG é conduzido e orientado de forma a assegurar a análise adequada de todos os estudos e relatórios desenvolvidos, a observância de legislação ambiental e o pronto atendimento aos órgãos competentes pela questão ambiental. Os estudos e monitoramentos são desenvolvidos com a contratação de especialistas, que inclui empresas de consultoria, centros de pesquisa e universidades (Relatório, 2004).

b) Saneamento e qualidade da água: que inclui ações de controle da qualidade da água, sistemas de esgoto, considerando o aumento no volume de pessoas por causa da obra e os possíveis impactos da UHE Irapé. Paralelamente, inclui ações de avaliação da relação população – rio, procurando evitar acidentes nas áreas de movimentação por causa da obra e pelas alterações do lençol freático.

c) Flora/vegetação: avaliação dos impactos ambientais, incluindo ações de recuperação e proteção nos locais próximos ao empreendimento.

d) Fauna terrestre e ictiofauna: ações de monitoramento, resgate de espécies de fauna, identificando o local adequado para a reabilitação dos animais resgatados. Elaboração do Plano de Manejo da Unidade de Conservação.

e) Programa de recrutamento e qualificação de Mão-de-Obra.

f) Programa de reestruturação socioeconômica: convênios que garantam linhas de financiamento, reinserção nos mercados produtivos e aproveitamento do potencial de integração do empreendimento à região.

g) Melhoria da Infra-Estrutura Econômica e Social dos Núcleos Urbanos que receberam um volume maior de população por causa do empreendimento.

h) Projeto de Vigilância Epidemiológica e Projeto d Adequação da Infra-estrutura de Saúde.

i) Programa de Comunicação Social: A CEMIG propôs apresentar ao Conselho Estadual de Política Ambiental – COPAM, até 30 de novembro de 2002, a revisão completa do Programa de Comunicação Social inicialmente proposto, ampliando o seu escopo em termos de objetivo principal, atividades estruturais e cronograma, de maneira a contemplar todos os compromissos assumidos pela Companhia no documento intitulado “Respostas às Informações Complementares ao Plano de Controle Ambiental” (elaborado pela CEMIG) e relatório das ações até então realizadas.

j) Projeto de Relocação da Infra-estrutura Econômica e Social Afetada pela Formação do Reservatório: relativo à capacidade e estado das estradas.

k) População atraída: direta e indiretamente pelo empreendimento, reavaliação dos serviços de saneamento, habitação, saúde, segurança e educação.