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Partindo das considerações teóricas que discutem questões referentes ao plano de texto do objeto de estudo deste trabalho, observamos que as cartas pessoais que fazem parte da correspondência partilhada entre Câmara Cascudo e Mário de Andrade são organizadas de maneira que podemos identificar tanto os planos articulados pela abertura, exórdio, corpo da carta, peroração e fechamento, quanto apenas pela abertura, corpo da carta (no caso, o desenvolvimento) e o fechamento.

De forma mais específica, a tabela, a seguir, revela que 64, 95% das escrituras analisadas apresentam em suas realizações planos de texto constituídos com zonas de transições entre o contato inicial e corpo da carta e entre a conclusão e o fechamento dessas.

Tabela 1 – Organizações dos Planos de Texto das cartas analisadas

Ocorrências nas cartas Número Absoluto Número Percentual

Cartas pessoais que apresentaram um plano de texto com zonas de transição (introdução-preparação e conclusão-fechamento).

63 64,95%

Cartas pessoais que apresentaram um plano de texto com abertura, desenvolvimento do objeto de

discurso e fechamento.

Total 97 100%

Fonte: Dados da pesquisa

Com vista a exemplificar a materialização das cartas pessoais que compõem o corpus da pesquisa, analisaremos os textos nº 141, 154 e 125. Destacamos que os transcreveremos na íntegra nos exemplos 1, 2 e 3, respectivamente, a fim de proporcionar melhor visualização dos segmentos que os organizam.

Exemplo 01

(Carta nº 141 p, 309-310) – Remetente MA 1. São Paulo, 29 de abril de 1941

2. Cascudinho

3. [1] estou lhe escrevendo mais por via da amizade que outra coisa, que 4. não devia escrever a ninguém, ir pra cama, dormir três dias e três noites, depois 5. mudar de nome e mandar esta vida nem sei onde. Não é crise mais, é coisa

6. muita, e coisa difícil que não consigo fazer. Devo estar muito cansado ainda e 7. o verdadeiro seria fazenda com um mês sem pensamento nem gente (Oh! os 8. intelectuais!).

9. [2] Seus mitos: ótimos. Já tinha lido nos Anais. A respeito do 10. Negrinho do Pastoreio, o Augusto Meyer escreveu recentemente dois artigos 11. que formam um ensaio de grande interesse. Não sei exatamente onde saí- 12. ram, que li os dois em manuscrito, se no jornal, no Diário de Notícias ou na 13. Revista do Brasil. Mas é fácil você mandar perguntar a ele. Instituto do Livro, 14. Biblioteca Nacional – se é que os não tem ainda.

15. [3] Quanto às suas consultas o caso da bag-pipe estou de acordo. No 16. outro, fracasso. Esse caso da viola brasileira acho tão complicado que ainda 17. não me animei a estudar a coisa. Tenho, ajuntada, alguma documentação 18 bibliográfica, puras fichas sem estudo de maneira que sou incapaz de lhe 19. dar um conselho seguro. Tanto mais que o excesso de ocupações do mo- 20. mento não me permite absolutamente me entregar a esse estudo. É certo que 21. no começo do séc. XIX também me chamava ao violão de “viola” no Brasil. 22. Von Martius, Von Weech o provam definitivamente e... a Viola de Lerreno 23. anterior. Mas se não me engano é Schilichthorst que pela mesma época já 24. fala francamente na viola de 12 cordas, que positivamente já não é guitarra 25. espanhola. É só oque lembro assim com minha péssima memória e meto a 26. viola no saco pra não sair besteira que te engane.

27. [4] Não é promessa, é juramento essa ideia de sua carta de, vindo ao 28. Rio, vir a S. Paulo também. Faça desta sua casa tudo o que quiser só me dará 29. alegria e à minha mãe. E terá toda a liberdade possível e imaginável: chave 30. pra entrar a qualquer hora, mesa e sala receber os seus amigos todos, 31. que serão nossos.

32. [5] E é só por hoje. Aqui lhe mando um trabalho que gosto. Se 33. suber coisas mais antigas a respeito, me avise.

34. [6] E ciao amigo velho. Lembranças pra todos daí. Me comovi lembrando, 35. o Jorge Fernandes que saudades! ... Um grande abraço deste sempre

36. Mário

No primeiro exemplo, a indicação de local e data “São Paulo, 29 de abril de 1941” e o vocativo “Cascudinho” revelam uma parte da carta nº141 organizada por um plano fixo. O exórdio [1] apresenta uma justificativa (linha 3-8), na qual o autor deixa claro a importância da amizade do interlocutor, uma vez que é a manutenção desse laço que promove a escrita do texto. As expressões “por via da amizade” e “Devo estar muito cansado ainda” fundamentam a justificativa que funciona como uma introdução e uma zona discursiva de transição entre o contato inicial e o desenvolvimento do texto.

No que se refere ao corpo da carta, entendemos que se configura como um plano ocasional, pois é constituído por macrossegmentações, ou seja, partes que se materializam em três segmentos textuais. Esses correspondem aos parágrafos marcados no desenvolvimento da escritura pelas ocorrências linguísticas [2] “Seus mitos: ótimos”, [3] “Quanto à suas consultas o caso da bag-pipe estou de acordo” e [4] “Não é promessa, é juramento essa ideia de sua carta de, vindo ao Rio, vir a S. Paulo também”.

No segmento [2] (linha 9 -14), notamos que após fazer o comentário avaliativo “ótimos” a respeito dos seis mitos gaúchos escritos por Câmara Cascudo, o enunciador informa a esse que “Augusto Meyer” escreveu artigos que considera “de grande interesse” sobre um mito específico, o Negrinho do Pastoreio. Em seguida, argumentando que não recorda “exatamente” o veículo em que leu os artigos, Mário de Andrade sugere ao interlocutor que envie carta para “Augusto Meyer” perguntando.

O terceiro segmento [3] (linha 15-26) apresenta opiniões do enunciador quanto às consultas feitas em uma carta anterior. Isto é, “o caso do Big-pipe estou de acordo. No outro, fracasso. [...] Mas se não me engano é Schlichthorst que pela mesma época já fala francamente na viola de 12 cordas, que positivamente já não é guitarra espanhola.” Esses enunciados deixam evidente explicações de Mário de Andrade a respeito do caso do “Big- pipe” e também do uso do termo “viola”.

No quarto segmento [4] (linha 27-31), o autor da escritura em análise faz questão de frisar que considera a ideia da visita explicitada pelo interlocutor não apenas como uma promessa, mas como um juramento. O uso do verbo ser na forma do presente do indicativo “é” exprime o sentimento de anseio do interlocutor ao declarar “Não é promessa, é juramento essa ideia de sua carta [...] também”. Em seguida, o enunciado “Faça desta sua casa tudo o

que quiser isso só me dará alegria e a minha mãe” revela uma espécie de súplica de Mário de Andrade para que Câmara Cascudo o visite.

A Peroração [5], que corresponde à conclusão, pode ser observada no seguinte enunciado: “E é só por hoje”. Este evidencia que o destinatário já havia falado tudo o que desejava. Assim, após essa conclusão o interlocutor informa sobre o envio de um trabalho e faz um pedido ao remetente: “Se suber de coisas mais antigas a respeito avise”.

As expressões “Ciao amigo velho”, “Lembranças para todos daí”, “Um grande abraço” e a assinatura “Mário” constituem o segmento fático de encerramento [6] da carta.

Exemplo 02

(Carta nº 154 p. 328) – Remetente MA 1. São Paulo, Carnaval [22 de fevereiro] de 1944. 2. [1] Cascudo, meu velho,

3. como que tu vai? e o meu afilhado? Me mande sempre fotografias 4. dele pra eu sentir ele crescer. E com que ternura, que carinho...

5. [2] Estou escrevendo só pra lhe mandar um artigo meu em que discordo 6. de você. Tenho aliás citado com frequência você nos meu artigos. Mas como 7. é pra elogiar, ou me apoiar em você, descuido de enviar. Mas como este discor- 8. da, eu mesmo mando, pra não fazerem intriga.

9. [3] Aliás estive outro dia na Livraria Martins e ele me mostrou as provas 10. da sua antologia folclórica, vai sair um livrão nos dois sentidos. Estive compul- 11. sando o seu trabalho. Franqueza: é excelente. Quanta gente agora vai bancar o 12. ‘científico’ citando as fontes através do canal que você lhes abriu ...Vai ser uma 13. inundação e gozaremos com os afogados.

14. [4] Um abraço afetuoso pra todos os amigos e ‘parentes’ daí. A benção 15. de Deus sobre o Fernando Luís e mais este abraço particular,

16. seu mano, 17. Mário.

No exemplo 02, a indicação do local e data “São Paulo, Carnaval [22 de fevereiro] de 1944” e as expressões de fechamento “Um abraço afetuoso [...] seu mano, Mário” na carta nº 154 evidenciam partes que apresentam em sua materialização constantes textuais de um plano fixo. Contudo, conforme podemos notar, tal texto não apresenta uma introdução, como apontada por Adam ([2008]2011). Dessa maneira, entendemos que os questionamentos “Como que tu vai?”, “e o meu afilhado?” e o pedido “Me mande sempre fotografias [...]” feitos nas linhas 3 e 4 ainda fazem parte da interlocução inicial da interação.

O corpo da carta é constituído pelos segmentos [2] e [3]. No segmento [2] (linha 5-8), o advérbio “só” revela que Mário de Andrade escreve apenas com o propósito de registrar o envio de um artigo “Notas sobre o cantador nordestino” em que ele discorda das ideias

defendidas pelo interlocutor em “Vaqueiros e Cantadores”, entretanto, não é isso que ocorre, tendo em vista que ele aborda ainda como objeto de discurso “A antologia Folclórica”. A informação explicitada é seguida dos argumentos “Tenho aliás citado com frequência você nos meus artigos. Mas como é pra elogiar, ou me apoiar em você, descuido de enviar. Mas como este discorda, eu mesmo mando, pra não fazerem intriga”.

No segmento [3] (linha 9-13), percebemos os comentários avaliativos “vai sair um livrão nos dois sentidos” e “Franqueza é excelente” do enunciador sobre “Antologia Folclórica” escrita por Câmara Cascudo. No segmento textual em questão, Mário de Andrade expressa também o seu ponto de vista sobre os efeitos da publicação da referida obra: “Quanta gente agora vai bancar o ‘científico’ citando fontes através do canal que você lhes abriu [...]”.

As expressões no segmento [4] “Um abraço afetuoso pra todos os amigos e ‘parentes’ daí. A benção de Deus sobre o Fernando Luís e mais este abraço particular, seu mano” e a assinatura “Mário” compreendem os elementos fáticos visualizados na conclusão da carta.

Exemplo 03

(Carta nº 125, p. 284) – Remetente MA 1. São Paulo, 23 de outubro de 1936.

2. Cascudinho.

3. [1] recebi a couvade e recebi sobretudo a figurinha do Nando, que mara- 4. vilha! Foi um reboliço na minha casa de gente com propensão pra avós, mamãe, 5. minha tia, eu, isso ficamos gemendo do entusiasmo – Mamãe, será que se pode 6. comprar uma roupinha pra ele pela fotografia. Tem cinco anos. – Pode Mário. – 7. Mas quero o que houver de mais fino. – Tá claro, Mário, sossegue. Irá o que hou- 8. ver de mais fino nesta cidade de S. Paulo. É engraçado ... sempre na perspectiva de 9. ir pra aí, vou comprando brinquedos pro Nando. Brinquedos, besteiras. Depois 10. envelhecem, dou pros priminhos da idade. Agora não: o Nando está tão querido, 11. tão lindo, que vão os presentes jogados sozinhos nas ondas do mar. [2] E a couvade? 12. Tá bem bom. Sairá no número de janeiro, com a inauguração do “Arquivo etno- 13. gráfico” da revista. [3] Quanto à separata, ainda não posso garantir. Do outro 14. trabalhão eu dava na certa, era pedir demais. Mas este é menor e desde tempo 15. que venho brigando com o Sergio Milliet secretário da Revista, e seu organizador 16. financeiro, por causa disso. Eu quero dar as separatas, ele objeta que não, causa do 17. preço. Aliás aqui vai separata junto, mas o caso é outro: paguei do meu bolso e 18. aliás só pela obrigação em que estava de distribuir o trabalho pras alunas diplo- 19. madas. Em todo caso, em qualquer caso você terá quantas revistas quiser pra dis- 20. tribuir. [4] Ciao acabou a folha e o bloco! Vou mandar buscar outro, mas acabo 21. mesmo a carta aqui que tou com pressa. Fale de mim pro Nando e Deus abençoe 22. a filha nova pela qual vão mais abraços pra você, sua dona, nossa mãe e todos. 23. Mário.

24. Cascudo. Acabo de ver que já mandei a separata Cultura Musical pra você. 25. Recebeu? meu Deus que vida minha estou penando atrapalhada atrapalhada! ...

Na carta nº 125, exemplo 03, os termos de indicação de lugar e data e vocativo “São Paulo, 23 de outubro de 1936. Cascudinho” correspondem às constantes fixadas na abertura da carta. Mas, essa carta específica realiza-se de modo que podemos identificar um bloco central marcado pelos seguintes segmentos: [1] “recebi a couvade e sobretudo a figurinha do Nando, que maravilha”; [2] “E a couvade? Tá bem bom [...]”; “[3] Quanto à separata, ainda não posso lhe garantir[...]”; [4] “Ciao acabou a folha e o bloco![...]”.

Os segmentos enumerados não estão distribuídos em parágrafos como nas cartas analisadas anteriormente. Assim, percebemos que o primeiro [1] compreende o contato inicial com o interlocutor (linha 3), no qual se tem a confirmação do recebimento de um livro “couvade”, de uma fotografia do “Nando” e um comentário a respeito da foto do afilhado recebida “que maravilha!”. Após esse segmento observamos ocorrências em que Mário de Andrade focaliza a reação de familiares em relação ao recebimento de tal fotografia, bem como questões referentes ao Nando “Foi um reboliço na minha casa de gente [...] mamãe, minha tia, eu”.

No segmento [2], o autor da carta reporta-se ao livro recebido mencionando o seguinte comentário: “E a couvade? Tá bem bom”, em seguida, tem-se informações acerca da publicação por meio de uma revista “Sairá no número de janeiro, com a inauguração [...] da revista”. O segmento [3] faz referência a outro trabalho, no entanto, dessa vez de Mário de Andrade. Assim, o terceiro segmento é constituído pelas explicações a respeito do envio da “Separata”: “Quanto à separata, ainda não posso lhe garantir [...] você terá quantas revistas quiser pra disponibilizar”. Ressaltamos que os enunciados de [2] e [3] abrangem o desenvolvimento do texto.

No segmento [4], identificamos elementos fáticos que materializam o encerramento da carta “Ciao acabou a folha e o bloco!”, “abraços pra você, sua dona, nossa mãe e todos. Mário”.

Após o encerramento, o plano de texto da carta analisada evidencia em sua realização o post scriptum que é compreendido como um elemento alternativo, conforme aponta Andrade (2010). Tendo em vista o plano de texto da forma epistolar proposto por Adam ([2008] 2011), entendemos que tal elemento não se trata de uma constante fixa, mas sim de uma ocasional. O post scriptum é usado pelo autor da carta em questão para retomar a interação. No caso, específico, constitui-se como um pedido de informação a respeito do envio de uma determinada revista “Cascudo. Acabo de ver que já mandei a separata Cultura Musical pra você. Recebeu? meu Deus que vida minha estou penando atrapalhada atrapalhada!...”.

Com relação aos propósitos comunicativos, percebemos que, além do intercâmbio das referidas cartas terem propiciado que os autores em questão mantivessem o laço de amizade, elas possibilitaram desde o compartilhamento de momentos de dificuldades pessoais até do cenário literário, político e cultural dos estados em que residiam e do país. O excerto no exemplo 04 mostra que Câmara Cascudo, por meio da carta nº 130, relata a Mário de Andrade que se encontra em uma situação em que o salário é uma “miséria” e, por isso, solicita que lhe consiga colaborações remuneradas em jornais. Notamos que nessa solicitação, o interlocutor ressalta detalhes da vida pessoal.

Exemplo 04

(Carta nº 130 p. 291)

“Velho Mário [... Minha situação aqui é asfixiante e besta. Ganho um miséria como professor e as dez pessoas de família que sustento não podem esperar pão de outra parte. Nada posso nem devo solicitar ao governo e o mesmo à oposição. Venho pedir-lhe que V. “persona gratíssima” em São Paulo consiga de algum jornal daí uma colaboração remunerada para este seu velho companheiro. Até 100$ servir-me-ão para o leite de Ana Maria.”

Destacamos que em tais textos os participantes das interações também partilham histórias de vida, rememorando, por exemplo, lembranças de quando Mário de Andrade visitou o tão estimado amigo na cidade do Natal. No enunciado da carta nº 43, a seguir, aquele autor reporta-se a uma determinada situação para relembrar um momento que vivenciou com Câmara Cascudo ao visitá-lo na capital do estado do Rio Grande do Norte.

Exemplo 05

(Carta nº 43 p. 135)

“Luís, [...] E se eu sinto não ter podido ficar mais tempo na companhia de você e do Jorge Fernandes isso nem se pergunta. Aquele momento vivido naquele sótão de vocês, foi vivido mesmo, que ritmo harmonioso de nós três apesar de tão distantes um do outro como psicologia, você pegando fogo, eu gozando, o Jorge Fernandes calmo... Ah, vida vida, vida comovida!”

As cartas revelam, também, o compartilhamento do conhecimento comum entre enunciador e enunciatário, como pontua Andrade (2010). No excerto da Carta n º 31, percebemos que, ao explicar a Mário de Andrade suas impressões acerca de um poema

específico, Câmara Cascudo faz referência a esse apenas pelo título “Raça” e ao escritor deste pela abreviação do nome “sr. Gui”. Isso mostra que os participantes da interação partilhavam informações, de modo que, maiores explicações sobre o poema e o autor dele não eram necessárias. Exemplo 06 (Carta nº 31 p. 111- 112) “26 de junho de 1926. Em Natal. Mário de Andrade. [...]

Estou ciente da defesa ao sr. Gui e com a agravante de não ter sido atacado. Direi a V. que Raça é tronco de raminho fino. Laranja muito doce fica seca. [...]”

Compreendemos que os diálogos instaurados entre os interactantes por meio desses textos desenvolveram-se motivados por diferentes propósitos: para agradecer o recebimento de livros, solicitar e enviar livros, poemas, fotografias e outros materiais, declarar saudade do amigo, reclamar sobre o não envio de cartas, compartilhar opiniões, fazer convites, questionamentos sobre a família, esclarecer dúvidas, explicitar impressões à respeito de lugares e pessoas, abordar questões literárias e políticas, etc. No exemplo 07, constituído por excertos das cartas nº 37, 87 e 12, observamos alguns desses.

Exemplo 07

(Carta nº 37 p. 122- 124)

“Luísico! Mas que foi que sucedeu que você não me escreve mais mesmo! Ora se é zanga desembucha logo por que está zangado que me desculpo logo se estiver culpado ou passo uma bruta de caçoada em você. Deixe disso e escreva homem!”

(Carta nº 87 p.216) “Gostou da Poética Sertaneja? Estimo. Não conheço em folclore coisinha parecida com aquele jeito.”

(Carta nº 12 p. 60-62) “Estou no meio de vaqueiros e cantadores. Não há luz elétrica. A coisa que me lembra, e detestavelmente, o progresso, é o meu Ford que está parado debaixo do telheiro.”

É importante destacar que a maioria das cartas investigadas apresentam mais de um propósito comunicativo em suas materialidades. Em alguns casos é possível identificar que um propósito se sobrepõe a outros, conforme lembra Silva (1997). O excerto do texto nº 63

revela que a escritura de Câmara Cascudo a Mário de Andrade apresenta vários objetos de discurso que são abordados em tópicos: “Colaboração”; “Ingratidão”; “A CASA DE MÁRIO EM AREIA PRETA!”. No entanto, o último desses é posto em letras maiúsculas com um ponto de exclamação que confere um certo sentimento de entusiasmo ao enunciado, podendo ser entendido como sobreposição em relação aos demais. Nessa direção, compreendemos o tópico destacado como a informação sobre algo que era desejo do amigo.

Exemplo 08

(Carta nº 63 p. 172 -174) – Remetente LCC 1. Natal, 9 de maio de 1930.

2. Mário, bestão querido. 3. Colaboração.

4. Aceito. Dou-lhe mil e um abraços. Mando duas crônicas para 15 e 22. Aceito 5. as quintas e os 200$. Aceito o procurador para receber os “arames”. Mande-me 6. um exemplar de cada Diário Nacional que publique coisa. (Coisa, mi-

7. nha coisa está na moda. Vide Graça Aranha.) 8. Ingratidão.

9. Improvada. A sua última carta pedia esclarecimento à respeito de Pé-quebrado 10. e lhe enviei notas e exemplos vários.

[...]

36. A CASA DE MÁRIO EM AREIA PRETA!

37. Segure as fotos que lhe mando e cante; V. está vendo esta casinha, simplizi- 38. nha que parece de Sapê? Diz que ela vive no abandono, não têm dono, e, se 39. Têm ninguém não vê!

40. Pois é sua bestão, querido e oxalá. Estou “oficialemente” autorizado a 41. mandar-lhe as fotos da casinha. Dr. Lamartine já tem a escritura que eu rece- 42. berei na próxima semana e mandarei registrar em cartório. Para sossegar-lhe o 43. ânimo susceptível. [...]

67. Abraço afetuoso deste seu 68. Luís

Como podemos acompanhar nas análises apresentadas nesta seção, a carta, enquanto uma forma comunicativa que viabiliza a manutenção de relações sociais à distância, possibilita que as pessoas, por meio de seu intercâmbio, (com)partilhem de um espaço privado e íntimo em que podem interagir com os mais diferentes propósitos. Quanto ao plano de texto que essas escrituras se materializam, identificamos que eles podem evidenciar ocorrências

linguísticas fixas como as constantes visualizadas nas aberturas e nos encerramentos e também ocasionais como o post scriptum.