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2.2. ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

2.2.3. PODER CRIATIVO DOS JUÍZES

parceria com o mesmo, também representa fonte do direito, especialmente quando se trata de normas vagas, obscuras, demasiadamente abstratas.121

Aliás, o aumento em importância do direito produzido pelos tribunais fez Mauro Cappelletti concluir que as duas grandes famílias jurídicas (Civil Law e Common Law) estão em vias de aproximação:

Com referência a essas duas famílias jurídicas [Civil Law e Common Law], contudo, parece-me justificada pelos resultados da presente investigação a seguinte conclusão geral: para além das muitas diferenças ainda hoje existentes, potentes e múltiplas tendências convergentes estão ganhando ímpeto, à origem das quais encontra-se a necessidade comum de confiar ao „terceiro poder‟, de modo muito mais acentuado do que em outras épocas, a responsabilidade pela formação e evolução do direito. Verdade é que essa necessidade, como vimos, constitui por si mesma a conseqüência da profunda e dramática metamorfose das sociedades modernas, e assim como a sua causa, tal necessidade é certamente um fenômeno arriscado e aventureiro. Não se trata, contudo, de um risco e de uma aventura despidos de promessas, se é verdade que semelhante fenômeno, no nosso mundo perigosamente dividido, já está conduzindo à aproximação dos sistemas jurídicos, aproximação que, à distância, pode talvez abrir um capítulo mais luminoso na história fascinante da civilização jurídica.122

Ressalte-se que esse fenômeno, no Brasil, vem sendo bastante acentuado nos últimos tempos em decorrência de significativas alterações legislativas que passaram a prever as súmulas vinculantes, repercussão geral, recursos repetitivos entre outros, que emprestam efeitos abstratos, e até mesmo vinculantes, às demais decisões do Poder Judiciário. Diversas vezes, diga-se de passagem, estes atos se aproximam muito dos atos normativos emanados do Poder Legislativo, inclusive com elevado grau de originalidade.

Nessa esteira, tal constatação leva invariavelmente ao desenvolvimento do poder criativo dos juízes.

Em sua obra, faz-se o discernimento quanto à passagem de um período em que os juízes eram considerados, por assim dizer, tímidos, para uma época em que o Judiciário, chamado de “Terceiro Poder”, posiciona-se de forma mais ativa na interpretação legislativa do que em momentos pretéritos.

A sua análise inicia-se num dado fato da realidade: “Por mais que o intérprete se esforce por permanecer fiel ao seu „texto‟, ele será sempre, por assim dizer, forçado a ser livre – porque não há texto musical ou poético, nem tampouco legislativo, que não deixe espaço para variações e nuances, para a criatividade interpretativa”.123

Em verdade, a interpretação tem implícita em sua atividade a necessidade de utilização das pré-concepções de mundo que o ator jurídico, especificamente o magistrado, possui. E como os homens não são máquinas, cada cabeça terá uma visão particular de uma determinada norma.

Pois bem, em sendo assim, a interpretação não prescinde de um ato voluntarístico por parte do intérprete, implicando-lhe a necessidade de promover uma escolha. Segundo o autor, sempre (ou quase sempre) há espaço para a utilização das experiências pessoais no ato de interpretar, demonstrando a existência de uma discricionariedade qualificada, na qual inúmeras circunstâncias da vida são levadas em consideração.124

Certamente não se há de generalizar todas as normas como capazes de se submeter à discricionariedade do juiz. Existem vários graus de discricionariedade em que o magistrado terá mais ou menos espaço para atuar. Nesse sentido, ganham cada vez mais importância as normas das Constituições modernas que estampam princípios programáticos, normalmente prescritos por meio de conceitos e palavras vagas e de grande abstração. Nesses casos é patente a imprescindibilidade da interpretação por parte do Judiciário na sua árdua tarefa de decifração do conteúdo da norma para o caso concreto. Esta abordagem já foi, de modo bastante clara, demonstrada por Mauro Cappelletti na seguinte passagem:

Em face de legislação social que se limita, frequentemente, a definir a finalidade e os princípios gerais, e diante de direitos sociais essencialmente dirigidos a gradual

123 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre:

Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 22.

124 “Escolha significa discricionariedade, embora não necessariamente arbitrariedade; significa valoração e

„balanceamento‟; significa ter presentes os resultados práticos e as implicações morais da própria escolha;

significa que devem ser empregados não apenas os argumentos da lógica abstrata, ou talvez os decorrentes da análise lingüística puramente formal, mas também e sobretudo aqueles da história e da economia, da política e da ética, da sociologia e da psicologia. E assim o juiz não pode mais se ocultar, tão facilmente, detrás da frágil defesa da concepção do direito como norma preestabelecida, clara e objetiva, na qual pode basear sua decisão de forma „neutra‟. É envolvida sua responsabilidade pessoal, moral e política, tanto quanto jurídica, sempre que haja no direito abertura para escolha diversa. E a experiência ensina que tal abertura sempre ou quase sempre está presente” (CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 33).

transformação do presente e formação do futuro, os juízes de determinado país bem poderiam assumir – e muitas vezes, de fato, têm assumido – a posição de negar o caráter preceptivo, ou „self-executing‟, de tais leis ou direitos programáticos. (...) Mais cedo ou mais tarde, no entanto, como confirmou a experiência italiana e de outros países, os juízes deverão aceitar a realidade da transformada concepção do direito e da nova função do estado, do qual constituem também, afinal de contas, um

„ramo‟. E então será difícil para eles não dar a própria contribuição à tentativa do estado de tornar efetivos tais programas, de não contribuir, assim, para fornecer concreto conteúdo àquelas „finalidades e princípios‟: o que eles podem fazer controlando ativamente na esfera social, um dever que, por ser prescrito legislativamente, cabe exatamente aos juízes respeitar.

(...) nessas novas áreas abertas à atividade dos juízes haverá, em regra, espaço para mais elevado grau de discricionariedade e, assim, de criatividade, pela simples razão de que quanto mais vaga a lei e mais imprecisos os elementos do direito, mais amplo se torna também o espaço deixado à discricionariedade nas decisões judiciárias. Esta é, portanto, poderosa causa da acentuação que, em nossa época, teve o ativismo, o dinamismo e, enfim, a criatividade dos juízes.125

A criatividade, palavra multireferida por Cappelletti, sintetiza a necessidade vivenciada pelo Poder Judiciário – o qual, nos últimos tempos, viu as suas portas serem escancaradas por uma ampla gama de novos clientes. Esses novos jurisdicionados são resultado daquilo que está escrito nas Constituições dirigentes; e se todo aquele que tem uma pretensão resistida pode se utilizar do Judiciário, tanto mais teremos uma enxurrada de novas ações propostas.

O Judiciário não podia, e nem pode (hoje ainda), olvidar o papel de fiel da balança entre o Estado e o povo, principalmente diante das nossas extensas Cartas de direitos.

Ressalte-se que neste trabalho não se está em plena concordância com tudo o que fora dito pelo autor Cappelletti; observe-se ainda que os apontamentos do mesmo se referem a um período de passagem entre a atividade anterior do Judiciário, mais recatada, e o seu novo papel determinado e consubstanciado nas Constituições modernas – as quais são tomadas por uma imensa plêiade de novos direitos, principalmente aqueles direitos sociais difusos e coletivos.

Enfim, o fenômeno compreendido pela acentuação do ativismo, aqui chamado de criatividade por Mauro Cappelletti, bem como da compreensão da discricionariedade que cabe aos intérpretes, é realidade que não pode ser ignorada pelos estudiosos e atores do direito.

Tentar repelir essa atuação criativa com simples argumentos de limitação orçamentária ou separação dos poderes não tem obtido sucesso perante os tribunais, e nem deveriam, por não enfrentarem os reais problemas do nosso país, quais sejam: o pleno (ou possível) cumprimento das normas estampadas em nossa Constituição. Aqueles argumentos não

125 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre:

Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 41-42.

ultrapassam questões formais e deixam de dar atenção ao próprio direito material, mais das vezes direito subjetivo dos autores.

Nesse sentido, tentando superar os argumentos que afastam as partes processuais, notadamente nas causas em que se debatem direitos difusos e coletivos, estuda-se um meio que torne possível justamente a aproximação. Assim, em prol da efetivação razoável dos direitos previstos constitucionalmente, a criatividade do Judiciário, então, tem que chegar a um grau ótimo de modo a possibilitar este inter-relacionamento.

O compromisso significativo, por sinal, tem sido utilizado com sucesso em outras áreas do mundo, e é justamente a utilização deste instituto que se pretende sugerir ao ordenamento jurídico brasileiro; principalmente porque se percebe uma ampliação da forma de abordagem das omissões inconstitucionais.126

Portanto, sendo inafastável a atuação criativa dos juízes em razão do atual estágio da jurisprudência, imprescindível o estabelecimento de critérios que disciplinem e criem balizas para essa prática, inclusive com a adoção de outros institutos.

2.3. ARGUMENTOS DESFAVORÁVEIS À JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS