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CAPÍTULO 5 – AS RELAÇÕES DE FRONTEIRA ATRAVÉS DOS RELATOS ORAIS

5.4 O Poder da estância

A região de fronteira aqui enfocada tem sua economia historicamente calcada na produç

“estâncias”. O historiador Moacyr Flores (apud Albornoz, 2000: 13) faz uma bela descrição do processo de formação da região e do surgiment

Pode-se aproveitar a imagem do mar Mediterrâneo para examinar a Campanha com suas verdes coxilhas onduladas onde os rio-grandenses republicanos navegam com suas carretas morosas e seus fletes rápidos, traçando rotas em direção à periferia formada por brasileiros monarquistas que defendem o império absolutista, e por forças de caudilhos argentinos e uruguaios que buscam o poder político.

e iguais a piratas de terra, pilham e matam os viajantes.

Estânc

extensões variáveis. Umas das maiores estâncias onde estive durante minha pesquisa de osição dos diversos níveis presentes na fronteira: o estado nacional, o gional, o transnacional e o global.

,

dos, seja como aliados, seja como inimigos .

da Estância

ão agropecuária. A maior parte desta produção é ainda hoje desenvolvida em grandes propriedades de terra chamadas nos três países igualmente de

o das estâncias neste contexto:

Ao longo destas rotas surgem as estâncias como portos de arribação na imensidão da verde Campanha, percorrida por gaúchos, desertores, quilombolas e índios gaudérios, qu

ia é uma denominação que serve para designar propriedades de terra de

135 Sobre o efeito que esta multiplicidade de revoltas e revoluções ocasionou para a população desta zona de fronteira, Chindemi (2000: 94) escreve: “El fin de las guerras civiles ya no habilitaba el juego de alianzas

facciosas que a través de movimientos separatistas, montoneras y indefinición de límites complicaron los procesos de constitución de los estados nacionales, pero el mantenimiento de circuitos de bienes desterritorializados determinó la supervivencia de una dinámica fronteriza que diluía la percepción del no- ciudadano como extranjero y legitimaba las relaciones de dominación oligárquicas en la frontera.” Para

maiores informações históricas sobre a região ver: César (1970), Castello (2001), Ferreira Filho (1965), Palermo (2001), Sala (1991), Silva (1968).

campo possuía menores, com

são consideradas pequenas para os padrões da Campanha. A dinâmica de funcionamento de todas guarda b

de empregado especialização Foram

próprias, que as sociedades de fronteira se estabeleceram e se desenvolveram. As pequenas lome

cidades foram aqueles junto aos “passos” de rio, por onde podiam cruzar tanto as carretas

podiam deslocar-se mais rapidamente e os produtos locais também podiam ser transportados

essoas e mercadorias (cidades de Uruguaiana/BR e Paso de Los Libres/AR, entre outras). As cidades daí oriundas, portanto,

culadas ao campo, sofrendo influências do modo de vida que aí se desenvolve e tendo inclusive seu ritmo de funcionamento demarcado pela sazonalidade da produção rural. Os comerciantes das cidades, por exemplo,

arroz ou a tos prevenir-se pa

ficam mais caros, logo, carne e derivados também chegam com preço mais alto ao consumidor, etc... As cidades da região recebem tão constantemente os reflexos da vida no campo que segundo comentários de vários informantes, pode-se perceber se a safra do ano foi cerca de 60 quadras136, já outras atingiam entre 7 e 30 quadras. Propriedades 300 hectares, por exemplo, são chamadas de “estanciolas” e suas dimensões

astante semelhança e talvez a maior diferença entre elas se encontre no número s e na distribuição de suas funções, sendo que nas estâncias maiores há maior e nas menores poucos empregados acumulam várias atividades137.

nas estâncias, com sua divisão hierárquica de trabalho e sua organização social

ag ração urbanas da região cresceram em função das necessidades de abastecimento e de comercialização da produção das estâncias. Os locais privilegiados para o surgimento das

carregadas de mercadorias (tecidos, louças, perfumes, facas, etc.) como as tropas que eram vendidas ou compradas pelos estancieiros (localidade de Passo da Guarda, entre Quaraí/BR e Livramento/BR, por exemplo); junto às estações de trem, através do qual os moradores

(como Villa Indarte/UY), e finalmente junto aos grandes rios, como o Uruguai, propensos à navegação e, conseqüentemente, ao transporte de p

sempre estiveram e permanecem na atualidade fortemente vin

preparam-se para o maior consumo nos períodos que sucedem a colheita do a das ovelhas; se o preço da carne cai no mercado, os banqueiros tem de ra concederem novos empréstimo; se o dólar sobe, os insumos importados

Quase que invariavelmente as maiores estâncias são também aquelas pertencentes às famílias mais tradicionais da região e, no caso brasileiro, muitas ainda são heranças de sesmarias doadas no período colonial brasileiro. “Sesmaria”, inclusive, é um termo utilizado por vezes como medida semelhante à “quadra”, ou seja,

137 Faço uma descrição detalhada do cotidiano de trabalho e da organização social nas estâncias em minha 136

87 hectares de terra (1 hectare = dez mil metros quadrados).

boa pelo aumento de caminhonetes novas que passam a circular pelas ruas ou pelo aumento na freqüência de bares e restaurantes.

alho, nas narrativas que circulam pela onteira o fator “campo” – ou “campanha”, como é referido no discurso local – está sempre resente, seja no evento narrado (como locus de atuação dos protagonistas, como cenário de corrência do fato narrado, como tema das narrativas), seja no evento narrativo (como quando /gaucho e sua performance está relacionada às características comportamentos deste).

O modo de vida das estâncias, as relações sociais aí desenvolvidas e o tipo de trabalho í executado são, como vimos, um importante fator de identidade entre os povos da fronteira e

138

139

ificadas entre as mulheres), peão ou abalhador de estância, que tem um modus vivendi específico, relacionado à sua própria formação, a determin

éticas e corpo questionado so

quais se pode depreender parte da concepção local do “ser gaúcho”, como o faz Don Heber, de 60 anos – Minas de

A ruralidade, desta forma, exerce um peso tão forte na região que mesmo aqueles que não possuem vínculo direto com o campo recebem ou percebem suas influências. É graças à isso que, como será abordado na seqüência deste trab

fr p o

o próprio narrador é um gaúcho e

a

a figura do gaúcho é a grande representante deste universo . Há gaúchos ou gauchos nos três países em questão e quando a população refere-se a estes sujeitos está remetendo ao trabalhador rural, em geral ao homem (sim, a figura simbólica do gaúcho é majoritariamente referido no masculino, ainda que saibamos que muitas das características atribuídas aos homens também podem ser ident

tr

ados comportamentos, hábitos, maneiras de vestir e mesmo posturas rais. Apesar de, nas conversas com os contadores da fronteira, eu nunca tê-los bre este aspecto, alguns, em meio às suas narrativas, faziam comentários dos

Corrales/UY:

dicionalista gaúcho Barbosa Lessa (apud Oliven, 1993

138 O escritor e tra : 39) comenta da definição dada, durante o IV Congresso Internaci nal da Tradição Gaúcha, que contou com a presença de argentinos, brasileiros e uruguaios, sobre a área geográfica que abrangeria a cultura gaúcha: “Assim se chegou à configuração de um

círculo q

(referencial Sudoeste, na Argentina) e um pouco além de Sorocaba (referencial nordeste, no Brasil). Nessa ritual guarani do chimarrão (tradição inexistente noutras porções de nosso Planeta) e como objetivo maior a ternidade universal.” Numa perspectiva que vai mais de encontro ao que pretendo discutir nesta tese, no

, além de artigos da mesma autora (1992a, 1992b, 1992c). o

ue toma como diâmetro referencial o paralelo 30 de latitude Sul, passando pela localidade de Mendoza imensa área observa-se o congraçamento das tradições autóctones americanas, tendo por elemento em comum o fra

entanto, é a observação feita por Leenhardt (2002: 28) sobre a unidade cultural que transcende essas fronteiras inscritas sobre os mapas entre a Argentina, o Brasil e o Uruguai: “Aquilo que, entretanto, caracteriza este

território, culturalmente, é a unidade simbólica do universo ‘gaúcho’ tal como ele foi construído na prática e na literatura, ao passo que, politicamente, é a conseqüência de três entidades geopolíticas, uma zona de conflitos entre três soberanias.”

139 Sobre a constituição da masculinidade entre os sujeitos gaúchos ver a tese de Leal (1989), Gauchos: Male

(...) que os costilhares do Prata significa: Buenos Aires, Banda Oriental e parte do Rio Grande, que era nosso também, né? Que o gaúcho, passando de Porto Alegre prá diante, assim já em Santa Catarina, não são mais gaúchos. Ainda algum toma chimarrão, mas são poucos.

Tomazito Berruti, de 80 anos – Rivera/UY, também comenta a respeito da formação do gaucho:

Bueno, eso del gaucho hay que hablar mucho, porque el gaucho tampoco es sólo la

com quem era o gaúcho, quem é o ser gaúcho. Prá vir prá cá, prá se meter nessas escaramuças, prá agüentar esse clima que é bem, vamos dizer, bem desgastante, tinham que ser homens

contra as mulheres. Agora esses bandos sim. Então por exemplo, assaltavam, tavam brigando com as Bandas do Uruguai, tomavam aqui por exemplo duas ou três estâncias de Livramento,

Yo te cuento que una de las estancias más famosas de allí fue atacada por bandoleros. Era un numero importante de bandoleros – según ellos y según todos los relatos que hacen. Y que, como habían muerto peones, habían quedados muy heridos los hijos del estanciero, herido cruza del indio con el español, el gaucho es un tipo, un producto de un ser que vivió en un determinado medio ambiente, condicionado a ciertas costumbres impuestas por la naturaleza...

Já Simone Loss, de 49 anos, Livramento/BR, relaciona o ethos gaúcho com a questão da violência e mais especificamente a violência contra a mulher:

Olha, na verdade violência contra a mulher só havia numa situação, porque tem ver

duros, porque senão não agüentavam. Então eles se juntavam em bandos e hora brigavam pelos brasileiros, hora brigavam pelos uruguaios. Na verdade, a grande parte do exército era de homens que tinham como emprego brigar. Se engajavam hora de um lado, ora de outro. Patriotas mesmo haviam sim, uma grande quantidade. Esses não cometiam nenhuma violência

aí eles violentavam todas as mulheres.140

No entanto, quando questiono Ruben, de 56 anos, de Rivera/UY, sobre esta forma de violência, ele reproduz uma narrativa corrente na região na qual a mulher não é vitimizada, ao contrário, imbuída do mesmo ethos (corajoso, destemido, guerreiro, ...) em geral relacionado ao homem, é a principal agente na resolução de um conflito violento:

el estanciero, la mujer del estanciero ha podido vencer a los bandoleros. Según cuenta ese relato, no? Que ella en ese momento era la que cargaba las armas y alcanzaba las armas, y que

140 A violência sexual contra as mulheres é utilizada historicamente como uma estratégia de guerra e já em minha dissertação de mestrado abordo esta questão tal como aparece na historiografia gaúcha (Hartmann, 2000: 36)

después ella a dos manos tiraba también y con las dos manos hería y mataba a bandoleros. A los bandoleros que habían llevado creo que una semana de asedio a la estancia, en un par de minutos la señora pudo liquidar con todos ellos y los que quedaran [faz gesto indicativo de fuga com as mãos] se fueran. A partir de ahí la estancia, en honor de esa señora, va tomar el

u filho nasceu quase arriba de um cavalo, desde cinco anos andando à cavalo.

prêmio ele já tem. (Margarita, 50 anos – Cerro Pelado/UY)

Hay un viejito, vive ahora en un hogar de ancianos, acá lo mandaron. Porque claro,

A minha mãe saía a assistir [realizar partos] looonge! Olha, ela às vezes tinha tro. Saía de um lado, ia prá outro, saía de uma lado, ia prá outro... Olha, ela tinha 80 anos e ela andava de a cavalo sentada! E ela correu uma carreira [corrida] nombre de ella.

Um outro aspecto também recorrente nos discursos dos habitantes da fronteira diz respeito à profunda relação dos gaúchos/gauchos com o cavalo, motivo pelo qual receberam a alcunha de “centauros dos pampas”141:

O me

Nas criollas ele gineteia com outros ginete. Gineteia em potro, gineteia em vacuno... Quatro

Eu nasci e me criei em estância. Com cinco ou seis anos eu andava no campo, eu andava à cavalo campereando. (Seu Luiz M. Leão, 100 anos – Uruguaiana/BR)

primero el es invalido... Y la mayor amargura del viejo es que no pueda montar a caballo. La mayor tortura, la mayor tristeza de él es por no poder subir en su caballo y salir. (Alejandro, 32 anos – Rivera/UY)

compromisso com três, qua

com um ermão mais véio meu por cinco litro de vinho, numa égua baia, e ganhou! (Dona Nair, 69 anos – Cerro Pelado/UY)

141 “Centauro” teria sido a denominação dadas aos gaúchos que nas revoluções lutavam à cavalo (Nunes & Nunes, 2000: 102). A referência, portanto, é bastante antiga e constantemente reiterada tanto na literatura quanto nas obras antropológicas produzidas sobre a região. Bastide (1980: 177), por exemplo, comenta dos gaúchos que acompanhavam os enterros à cavalo: “como se esses centauros não soubessem mais andar a pé”; Leal (1989) intitula um dos capítulos de sua tese de The Gaucho as the Centaur of the Pampas.

Bastide (1980: seu cavalo”. P

permitia usufruir as características geográficas favoráveis deste ambiente (planície) e também exerceu importante papel no alargamento do círculo de sociabilidade pois diminuía as distâncias, aproximando vizinhos.

A partir destes comentários, pinçados de um universo bem mais extenso, é possível verificar a existência de alguns referenciais que servem para identificar o ethos gaúcho/gaucho – que pode, como vimos, ser associado tanto a homens quanto a mulheres: a idéia de forma

com o ambiente (aqui a importância da ruralidade), o hábito, comum nos três países, de tomar chimar

versas formas de conflitos violentos e a relação com o cavalo. Estas são algumas das características que aparecem com maior constância nos

considerá-las como aspectos importantes na análise da cultura da região. Devo lembrar, entretanto, qu

contexto inves Atualmen séculos depois

fazendeiros fracionam as terras e perdem poder econômico e político” (Mendes, 11/02/2001). Num processo que mais uma vez aproxim s sociedades da fronteira, nos três países irmanados no Pampa as grandes propriedades – calcadas no latifúndio e em formas

177) também atentou para este “amor profundo [que] une o gaúcho ao ara o sociólogo, o cavalo, como meio de transporte privilegiado no Pampa,

ção a partir do cruzamento de culturas, o comportamento moldado pela relação

rão ou mate, o desprendimento em relação à uma determinada nacionalidade (antes de tudo eram da fronteira/da campanha), a convivência com di

causos e cuentos da fronteira e sua abordagem aqui vem no sentido de

e a cultura da fronteira não se resume à cultura gaúcha/gaucha, ainda que no tigado (meio rural), esta seja preponderante.

te percebe-se uma crise no modo de viver e de pensar da região. Agora, dois de seu domínio absoluto na região, “os herdeiros das sesmarias e dos grandes

a a

tradicionais de manejo com o gado entram em declínio, e junto com elas um modo de ser, de pensar e de viver na fronteira, como veremos a seguir.

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