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poema, após levantar um rol de autores e de questões polêmicas da arte da palavra, desemboca na poesia

No documento Para alem do "cisco do sol no olho" (páginas 103-153)

constrói mais uma imagem poética com toda a sua complexidade e beleza:

mi 1 imetricamente inscrita num grão de trigo no museu de cluny

poema, após levantar um rol de autores e de questões polêmicas da arte da palavra, desemboca na poesia

do próprio autor do poema. 0 poeta se auto-referencia e se auto-elogia no poema. E, assim, ele continua:

"já o sabes

a zorra na geléia geral

e todo o mundo querendo tricapitar há mais de trinta anos

esses trigênios vocalistas

/ que idéia é essa de querer plantar ideogramas no nosso quintal

(sem nenhum laranjal oswald)? e (mário) desmanchar

a comidinha das crianças?

um tom m e m o r i a l i s t a , autobiográfico nestes versos. Parece que o poeta deseja inserir a sua poesia na história, na tradição.

A "Ode (explícita) ..." é uma defesa teórica, um confronto entre dois tipos de poesia: uma engajada socialmente em oposição outra v oltada para si mesma, para seus procedimentos formais, a chamada poesia de invenção. De certa forma, Haroldo, criando esta polêmica, reivindica para a sua poesia um "lugar ao s o l ” no "panteão" da História da Literatura, que ele tanto critica. A contradição entre o que a poesia diz e o que ele realiza parece despontar novamente no texto de Haroldo de Campos. Ele encerra o poema com os versos de Augusto de Campos que delegam à poesia um caráter

a u t ô n o m o :

"porque não tens mensagem e teu contudo é tua forma e porque és feita de palavras

e não sabes contar nenhuma estória e por isso és poesia

como cage dezia ou como

há pouco augusto o augusto:

que a flor flore o colibri colibrisa e a poesia poesia"

No decorrer do texto o poeta revela sua resposta à pergunta crucial. A sua poesia, a poesia que ele defende, é a arte verbal da p l u r i s i g n i f i c a ç ã o , da transgressão. A poesia "dialética hermética prospéctica emética r ec alcitrante” , assim como quiseram Adorno, Jákobson, Khlébnikov, Benjamin e até o próprio Marx, que estão no texto de Haroldo para dar s ustentação a sua proposta de poesia. E por isso tudo, "A Ode (explicita) ...” , é um dos poemas menos poéticos do livro. É menos "ode", é extremamente discursivo, ele faz apologia e não poesia. 0 poeta propõe que a poesia não tem "mensagem", e que ela não conta nenhuma "estória", mas o que ele constrói neste poema é justamente a "história" dos "concretos", ou melhor, ele articula uma história da l i t er a ­ tura, uma tradição poética, que culmina na poeisa coricretü.

Depois da defesa e do ensinamento de lo i fura da poesia que considera como válida nos dois poemas que introdu-

zem o livro, seguem poemas curtos destoando da forma longa dos anteriores. "Tristia", poema com cinco versos, é a imagem da tristeza que tem de ser "inativada". 0 poema "Como ela é" enfatiza, ainda, o que é e como é a poesia válida para o poeta, retornando à dicotomia entre realismo e a "poesia à beira - fôlego". A ênfase sobre o que é e como é a poesia, é realizada através de sucessivas imagens que se justapõem, redimencionado o conceito de realismo ("realismo: a poesia como ela é"), e atingindo, r e i t e r a d a m e n t e , a imagem - síntese "fogo (é)/fogo/(a poesia)/fogo"- palavra-chave anunciada nas imagens dos versos anteriores, tanto por relação semânti­ ca - "raios cósmicos", como pelo deslocamento da paronomásia: "fôlego; "fole", "fogo". Este procedimento chama a atenção para o processo construtivo da poesia "como ela é " .

"Portrait of the artist as an old m a n " ; "Je est un autre: ad a u g u s t u m " ; "Mínima Moral ia"; "De um leão z e n " ; "Os opúsculos goetheanos"; "1984: ano I ...", são poemas que remetem a outras questões. A discussão sobre a poesia, sobre o fazer poético ou ainda, sobre como ler a poesia que se considera válida, isto é, a tarefa de educar os cinco sen­ tidos, perde espaço para outros elementos, de cunho confessional. Surgem, ora de forma sutil, bastante mediatizada, ora com maior transparência, elementos envolven­ do questões pessoais do poeta, como por exemplo: a sua velhice - "a palavra lumbago/ataca de arco e flecha" (p.23),

"dos meus cabelos/a asa (arco)/os anos (íris)/ (castanhos)/ e m b r a n q u e c e r ã o :/o coração n ã o ” (p.33); a relação com o irmão Augusto - "irmão/neste re/verso do ego/te vejo/mais plus que

mim/.../ siamesmos/uni - /somos outro" (p.24); seu signo - "O olho não pode ver-se/a si mesmo/ o leão de ouro não é o ouro/ do leão de ouro" (p.26) "é o mesmo fogo no signo do leão" (p.24); ou ainda sua preocupação cora a morte - "a enteléquia/mantê-la/viva" (p.29). Já nos outros poemas que completam a primeira parte do livro, a propriamente dita "A educação dos cinco sentidos", há uma ênfase maior nos p r o­ cedimentos formais, na construção do poema, acentuando-se o jogo da linguagem e de seus efeitos sonoros e visuais, bem como a insistência em determinadas imagens - o olho e a luz, o branco e o amarelo/ouro - imagens, aliás, que se reiteram, em inúmeros poemas ao longo do livro. Curiosa e significativamente, deste conjunto, apenas um poema recebeu "nota" explicativa: sobre "Mencius: Teoria do Branco" (p.27), o poeta elucida a quem se refere o título e indicação bibliográfica a respeito do filósofo ali mencionado. Como o título sugere, o poema, através de versos em paralelo e do jogo com a palavra "branco", constrói um "teorema" sobre o sentido do branco, mas não para precisar um sentido. 0 que se demonstra aqui, pela interrogação que se repete nos versos finais, é que não há um sentido para a(s) palavra(s):

"o branco da pena branca

é igual ao branco da neve branca? é igual ao branco do jade branco? de quantos brancos se faz o branco?"

0 branco volta em "Le don du poéme" e em "Brancu­ si" (p.35), contrastado ao negro e reiterado no "dáctilo

prateada", d escrevendo uma figura feminina "uma cabeça b r a n c u s i n a / .../ o l h a r : uma rainha em armas/ (descendo do metrô em sèvres - /babylone)". "Tenzone" (p.35) se faz de cor ("um sol queimado") e som, (a "rima em e n ç a " ) , "que doura e aden­ sa" e se desdobra em "Provença: Motz E.l son" (p.36), poema constituído de três partes que se distinguem pela distri­ buição, em blocos, no branco da página e em que, a partir do mote "contra uma luz/ sem falha "surge o jogo de palavras: "o olho/se esmeralda" (12 bloco), "o o l h o / (...)/se esmigalha (22 b l o c o ) , "o olho de esmeralda" (32 b l o c o ) . 0 "ouro" rea­ parece, ainda, em "Klimt: tentativa de pintura (com modelo a u s e n t e ) ” (p.37) " l o u r ov i o l e t a : um monstro uma/figura em' ouro im ...". Aqui há o contraste entre o que porpõe o título uma "tentativa de pintura" - e o que se realiza no poema. O enfoque é deslocado do quadro para a linguagem, o poeta desmonta o sentido dos versos. O leitor acaba por fixar seu olhar nos procedimentos de construção do texto, como por exemplo os versos cortados forçando a rima em "e" na primeira estrofe; e a excessiva utilização de parêntesses, na segunda estrofe, introduzindo qualificativos aos substantivos p r e c e­ dentes .

Se Haroldo inclui na A educação dos cinco s enti­ dos, alguns textos que falam muito de suas inquietações pessoais, pode-se constatar, aí, o desdobramento das contra­ dições e tensões entre aquilo que é dito e o que é realizado entre o lirismo e a proposta de racionalidade no poema. Existe a recorrência ao lirismo, não a um lirismo indulgente, " s en t im e n t al d id e " , mas sim um lirismo contido e escamoteado.

Haroldo tem como mestre deste lirismo Fernando Pessoa, que propõe que o poeta finge a dor sentida para realizar a p o e­ sia. A função poética da linguagem tem de ser predominante. Mesmo que o poeta fale de seu eu. O eu lírico, para Haroldo, só existe enquanto eu lírico no poema, sob a forma de versos, submetido à equação do poema.

Sendo assim, submetendo seu eu lírico à equação de seu poema, Haroldo disfarça sua inquietação sobre a velhice e a razão de seu trabalho poético na voz de Goethe, e outros. O eu lírico do poema de Haroldo ganha um disfarce erudito e t e x t u a l . Os poemas que mais incorporam esta tensão entre o ato c onstrutivo do poema e o ato de expressão do lirismo são os "Opúsculos goetheanos" I e II. Nestes poemas se a usurpação da autoria: Haroldo introduz suas inquietações pessoais através de um outro texto. A usurpação é ralizada da maneira mais lieterária possível : com refererências aos textos que geraram o poema. Nas "Notas", se encontram os textos usurpados : fragmentos de uma carta que Goethe escreve a Eckerman, e um relato de um momento em que Goethe presencia um fenômeno metereológico que interpretou como sinal de uma "puberdade afetiva". Essas duas notas remetem aos dois textos que deram origem aos "Opúsculos". Estas "Notas", juntamente com os epígrafes, compõem os disfarces e eruditizam o lirismo. 0 leitor não terá os olhos voltados apenas para a expressão lírica, mas também para o aspecto intelectual que se impõe após a leitura das "Notas":

N O T A S :

Opúsculo goetheano (1)

Goethe a Eckermann em 4.2.1829: 'A convicção de nosso perdurar nasce para mim do conceito de factividade; pois, se eu, até o fim, mantiver-me infatigavelmente em ação, a natureza será deste modo obrigada a atribuir-me uma outra forma de existência, guando a atual não possa conter meu e s p í r i t o . ’ A Eckermann, em 10.9.29: 'Não tenho dúvidas nosso perdurar, pois a natureza não pode dispensar a enteléquia (...)’ Cf. Goethe, Faust, Munique, Goldmann Klassiker, W. Goldmann Verlag, 1978.

Opúsculo goetheano (2)

Marianne Jung é a Zuleica do Divã ocidental- oriental. 0 velho Goethe, viajando para Frankfurt, onde conhe- eria a jovem Marianne, presenciou um singular fenômeno meteorológico - um 'arco-íris branco' - e interpretou-o como sinal de uma segunda puberdade afetiva. Senesco sed amo: 'Envelheço mas amo': provalvelmente Anacreonte (Anakréon), o lírico grego do 62 séc. A . C., citado por E. Pound em versão (...) W. Carlos Williams:

'Saxifrage is my flower that splits/the rocks...' (Saxífraga é minha flor que fende/as rochas...'). Sousândrade (da 'Harpa XLV'): '... e as brisas tépidas/Que os meus cabelos pretos perfumavam, /Dos meus cabelos velhos e asa trêmula / Embranquecerão...'" (pp. 107-108)

Como mencionei, os dois possuem epígrafes do próprio Goethe, nas quais estão expressas sua preocupação com a morte. Estas epígrafes selam a relação intertextual entre o texto de Haroldo e o texto de Goethe reiterando o título e as notas. No primeiro poema a epígrafe, um fragmento da carta a Eckermann, acaba por constituir-se num tipo de mote deste

"livreto" goetheano. Veja o poema:

... die Natur kann die

Entelechie nicht entbehren ... ( . . . a natureza não pode dispensar a enteléquia ...) manter a enteléquia ativa quero dizer como o fósforo (branco)

que acende dentro d'água como o fogo no pórfiro

(dentro) a pala d'oro * a enteléquia: o que enracina e desraíza o que centra e descentra o que imã e desimanta o que no corpo desincorpa e é corpo: áureo aural aura * mantê-la viva

no arco voltaico dos c i n q u e n t 'anos consona a lira dos vinte

e vibra

é o mesmo fogo no signo do leão para a combustão desta página v ir g em

o mesmo soco no plexo solar a mesma questão (combustão) de origem

*

a enteléquia mantê-la viva

*

entre larva e lêmure viva

entre treva e tênue viva

entre nada e nênia viva

*

a enteléquia

esse fazer que se faz de fazer *

talvez um pó

depois que a asa cai e desala

(cala)

um íris um cisco luminoso

um último rugitar dos neurônios farfalhados um nu de urânio alumbrando

sensório: pala d 'oro ou a chama que tirita no âmago do pórfiro *

mantê-la ativa a enteléquia *

rosácea de nervuras negras vapor de ouro

por onde o azul e o roxo coam vê-la para além transvê-la chuva de rosas destenebrantes aspirar esse aroma

viva mantê-la viva a enteléquia

*

uma forma do transcender no descender *

poeira radiosa quartzo iridescente

a natureza incuba a metáfora da forma e tresnatura: formas em morfose * a t i v a : a enteléquia ativa: a música das esferas *

não há anjos nessa drbita querúbica há poeira (poesia) radiante

casulos resolvidos em asas um comover de harpa eônia

um riso onde a dissolta enteléquia (nd desfeito no apds do pd)

p r i m a v e r a .

("Opúsculo gotheano", p p . 28-31)

São 13 partes que compõem o poema : em todas elas se repete a mesma idéia: "manter a enteléquia ativa". Estes versos a cabam por contituir-se no refrão do poema.

A primeira estofre (que é também a primeira parte) inicia-se pelos versos que atuarão como refrão do poema, seguida de versos em que o poeta constrdi uma imagem que p arece exemplificar os dois primeiros versos, precedida de um v erso explicativo:

"manter a enteléquia ativa

Após o verso ’’quero dizer" d ^ ) ^ segue outro que é introduzido pelo pronome comparativo "como'', para então as duas comparações serem construídas:

"como o fósforo (branco)

que acende dentro d'água como o fogo no pórfiro

(dentro)

a pala d'ouro"

São as imagens do fogo imortal que resiste à água e à rocha: "a e n t e lé q ui a/ at iv a” .

A segunda parte do poema que se segue a esta estrofe, 3e inicia pelo verso "a enteléquia:". Os dois pontos p a re ce m mais uma vez introduzir um raciocínio explicativo consti t uí d o através do jogo de contrários que leva a idéia de p a ss a ge m de um estádo para outro.

S uma estrofe toda ela marcada pelo prefixo " d e s " :

"o que enracina e desraíza

o que centra e descentra o que imã e desimanta"

Na estrofe seguinte, o raciocínio explicativo prosseque, mas agora o jogo da passagem é acentuado pela repetição da palavra "corpo":

”o que no corpo desincorpa

e é corpo: á u r e o ”

(16) Este verso "explicativo" assemelha-se, em função, aos "veja/como se junta esta palavra "do p o e m a ” A educação..." e aos " (veja-se a conversa de Benjamin" do poema "Ode (explícita) mas enquanto estes últimos possuem um tom "professoral, este "quero dizer" aproxima- se do confessional.

E, novamente, os dois pontos introduzem uma d efinição em meio ao jogo com a forma: "a enteléquia: .../ e é corpo: á u r e o / a u re a l/ a u r a" . Este jogo nos permite ler, ainda, "e é corpóreo", que reitera a materialidade proposta pelo mote: "manter a e n t el éq ui a /a t iv a " .

A terceira parte do poema é introduzida pelo verso que mantém viva, pela reiteração, a idéia da epígrafe: "mantê-la viva". Este verso, isolado, consitui-se numa estrofe que, na sua forma, cotrapõe-se às demais desta ter­ ceira parte» As três estrofes que se seguem possuem estrutu­ ras paralelas: os primeiros versos de cada estrofe são versos mais longos, todos os segundos versos, mais curtos em relação aos primeiros; e toda amarrada no seu aspecto estrutural: terceira parte, três estrofes, três versos, anunciados pelo "mote": "mantê-la v i v a ”

Como observamos, o "eu lírico" deste poema declara-se, na epígrafe e nas "Notas", um fingidor. O "poeta" assume o "t r av es ti me nt o ": Goethe fala por ele. T o ­ davia, esse " eu ” é tão concreto no poema, que permite que a leitura saia do poema e vá até a pessoa do "Haroldo" poeta.

As imagens construídas nestas estrofes remetem ao aspecto autobiográfico que passa pelo poema. O verso "no arco v ol taico dos c i n q u e n t 'anos” se remete à pessoa do poeta, que em 1982, quando escreveu os "Opúsculos", entrava nos seus 50 anos. E, "é o mesmo fogo no signo do leão", parece c onfi­ gurar um aspecto da pessoa do poeta. Haroldo de Campos é de signo de leão, regido pelo sol, e imagem do fogo, da a u to ri ­ dade, do poder. Esta imagem do fogo, da claridade intensa

retorna era outros momentos deste poema: "como o f ós f or o ” , "como o fogo"; ”um íris um cisco / luminoso''; "ou a chama que t i r i t a ” ; "poeira radiosa". Em outros poemas do livro esta imagem também reaparece, como em "como ela é " :

"como ela é (a poesia) fogo (é)

fogo

(a poesia) fogo"

e como já vimos na "A educação dos cinco sentidos" e na Ode (explícita) ...” :

"um cisco do sol no o l h o ” "ou um fiapo de sol no olho"

E a pergunta novamente se constrói: o que estas imagens "solares", "epifânicas” representam no livro? Seriam elas o momento de origem d linguagem ("urspr u ng ") , ou o

momento da língua pura ("ursprache”)? Talvez esta resposta se encontre nos versos que se seguem após as imagens do "arco voltaico" e do "fogo no signo do leão":

"consona a lira dos vinte e vibra

para combustão desta página virgem

o mesmo soco no plexo solar a mesma questão (combustão) de o r i g e m ”

Estas imagens parecem evocar a noção de origem em Walter Benjamin d'7) . a "ursung" está ligada ao "Ti ger-spung"

(17) Cf. BENJAMIN, Walter. Prefácio, in

Origem do drama

barroco alemão.

São Paulo: E d . Brasiliense, 1984.

(salto do tigre no passado); o salto tem uma função de r es ­ gate salvador que permite ao passado ressurgir e ser salvo no m omento atual. 0 momento epifânico é aquele de revelação do p a ss ad o e de sua transformação em presente. A noção de origem é transpassada pela questão religiosa em Benjamin. O salto no passado é motivado pela lembrança e pela leitura dos signos. Haroldo recupera estas questões em Benjamin: o salto tigrino" é evocado através da tensão entre a sensibilidade e a racionalidade, entre as "lembranças” em "Proust" e "sensações" enquanto "consciência" em Pierce; e as metáforas solares de Haroldo configuram o momento sagrado da revelação:

"ou um fiapo de sol no o l h o ” um iris um cisco

luminoso”

"o cisco do sol no olho

- claritas : jato epifânico"

Todavia, se a relação do momento epifânico com a "ursprung" benjaminiana parece estar declarada pelo próprio poema, uma outra leitura destas imagens solares se estabelece a partir daquilo que o poeta não diz. O lirismo fingido (que não é tão fingido assim) transpassa estas imagens. O sol, o fogo, o amarelo, cisco, a poeira são metáforas pessoais, elas recuperam pontos da sensibilidade lírica do poeta "Haroldo". Os versos: claritas: jato epifânico!" e os "cisco/fiapo de sol no olho", estão exercendo a funsão de expressar um momento de "êxtase" na criação poética. Este aspecto confes­ sional destas imagens haroldianas vêm, conforme demonstrou a análise, mediatizadas pelo aspecto erudito e racional d e cl a ­

No poema "Opúsculo goetheano" o aspecto confessio­ nal vem da inquetação do poeta com o processo da morte, que a vê (com olhos de goethe) como passagem. No decorrer do poema uma eterna recorrência a prefixos que levam à idéia de passagem, como nos versos.

"... e desala

vê-la para além transvê-la

uma forma do transcender no descender

e tresnatura: formas em morfase"

No "Opúsculo goetheano", onde mais se ressalta a idéia de passagem é a segunda estrofe da décima primeira p a r t e :

"a natureza incuba a metáfora da forma

e tresnatura: formas em morfose"

Os dois primeiros versos expressam a mesma idéia dos dois últimos: a natureza contém os elementos para o m o ­ vimento de transcendência, de mudança. 0 jogo de palavras e sons trazem consigo a interdependência de sentido: "natureza" está para "tresn at ur a” , que está para "meta (morfose) fora", que está para formas. Aqui o poeta condensa a sua metáfora da passagem da morte: ela relaciona-se à metamorfose que a natureza realiza - não há morte, o que existe é a passagem.

de passagem. Apds a repetição do mote do poema: "a entelé- q u i a / m a n t ê - l a / v i v a " , o leitor tem a sua frente uma estrofe que, semelhante à terceira parte, possui versos em paralelo. Todavia esta quinta parte não contém metáforas, a cada dois versos se repete a mesma estrutra de verso: um verso com cinco sílabas e outro com duas. São três grupos de versos. Há uma insistência, nos versos mais longos, na aliteração:

"larva e l ê mu re ” , "treva e t ên ue ” e "nada e n ê n i a ” . A inten­ sificação da aliteração nesta quinta parte leva ao quase abandono do sentido. 0 que fica é a idéia de estado de p a s s a­ gem, um estado intermediário: "entre larva e lêmure/(a enteléquia) viva".

A questão do elemento racional passa também pelo "Opúsculo g o e t h e a n o ” : na sexta parte do poema, aparece a definição de enteléquia do poeta Haroldo - "esse fazer que se faz de fazer", é o produto do trabalho intelectual.

A sétima parte do poema parece ser uma resposta a uma suposta pergunta: o que é a enteléquia? 0 que é "esse fazer que se faz de fazer"?

A cada estrofe ensaia-se uma resposta: na primeira estrofe - "talvez um pó"; na segunda - "um íris um cisco"; na terceira - "um Ultimo rugitar dos n e u r ô n i o s ” ; e na última estrofe desta parte se estabelece a dúvida - "ou a chama que t i r i t a " .

Na primeira estrofe, desta sétima parte, a tentativa de definição para a enteléquia está relacionada ao rito de passagem, que se concretiza no poema através dos v e r s o s :

"depois que a asa cai e desala

(cala)"

Estes versos tem algo de tristeza, o de sentimento de impotência "(cala)” , a terceira estrofe, também nesta parte, contém palavras que trazem consigo um conto triste:

"um último rugitar dos neurônios"

Entretanto, a segunda e a quarta estrofes inter­ calam estas "nênias". As imagens solares levantam o tom do poema, com a promessa de perenidade da "chama” que se mantém no interior do "pórfiro". Os versos "um íris um cisco/no olho". Todas as estrofes desta sétima parte parecem ser da transformação de seu corpo e a esperança da imortalidade. A esperança é reforçada, logo a seguir, pelo mote que mantém a idéia da imortalidade goehteana acesa: "mantê-la ativa a enteléquia" .

Na nona parte, desponta mais uma vez o aspecto i n t e r - t e x t u a l , mas agora uma a u t o - i n t e rt e x t ua l id a d e . Haroldo vai buscar no lacunae (1969) d ® ) , elementos para construção de uma nova metáfora solar. 0 " po e ma n d a la " , um poema que contém aspectos do haicai, como a concisão da imagem, tem como centro uma mônada chinesa, que também possui uma forma parecida com um sol. No "poemandala", a mônada vem denominada de " r o s á c ea ” . "Rosácea" é a palavra que introduz a metáfora da nona parte do "Opúsculo ...":

(18) Cf. CAMPOS, Haroldo de. Xadrez de Estrelas, percuso textual 1949/1974. São Paulo: E d . Perspectiva 1976.

No documento Para alem do "cisco do sol no olho" (páginas 103-153)